segunda-feira, 24 de junho de 2013

O retorno do Xamã - por Giba Carvalho



     Segundo os siberianos, o significado da palavra Xamã (ou Shaman) é – “aquele que enxerga no escuro.”

     Malcom John Robbenack tem 71 anos, e destes, mais de 50 dedicados a música. Notadamente, ao jazz e ao blues. No entanto, depois de tanto tempo na ativa, é normal uma certa acomodação. Aquela velha história de ficar na zona de conforto. Foi aí que entrou a pessoa de Dan Auerbach, guitarrista e vocalista da aclamada banda The Black Keys. Fã confesso do trabalho do “Doc”, o músico teve certo trabalho até convencê-lo a topar um trabalho novo em parceria. O mais interessante nesta história, é que foi necessário uma das netas de Malcolm falar bem do trabalho do The Black Keys e ainda colocar um CD dos mesmos para que fossem aceitos.

     O grande mérito do "black key" para esta excelente produção foi o modo utilizado para que a mente do Xamã fosse aberta novamente. Numa destas "sessions", o mestre ouviu um disco de um craque africano chamado Mulatu Astatke, saxofonista etíope que levou um balanço diferenciado para dentro do jazz. Sem falar de todo misticismo envolvido no experimentalismo musical que se propunha. Temos que ressaltar também, a liberdade artística e a verba necessária para que o projeto saísse. 

Mulatu Astatke - The Way to Nice:


     A bolacha foi totalmente produzida no Estúdio - Easy Eye Sound, em Nashville, mas teve seu início na mítica New Orleans, cidade que jamais foi abandonada pelo Xamã. Durante mais de dez dias, todos os membros em estúdio se entupiram de comida etíope e ouviram toda a obra do saxofonista africano. Obviamente que a idéia não era fazer uma cópia do que já foi feito, mas sim, utilizar um caminho diferenciado para as criações musicais que viriam a surgir. De imediato, as bases começaram a ser compostas e não demoraram muito a sair. No DNA de Dr. John já corre um mar de traços africanos e isto facilitou bastante o processo. Outro ponto a ser ressaltado, foi a troca do tradicional piano que sempre o acompanhou por um órgão Farfisa (especialmente utilizado para criações "funky-psicodélicas").

     As letras tornaram-se um capítulo a parte neste disco. Como é de conhecimento da maioria, mesmo sendo umas das figuras mais importantes da música estado-unidense dos últimos 40 anos, o "Doc" não é um "frontman". O Xamã gravou com inúmeros mestres de New Orleans tais como: Professor Longhair, The Meters e Alain Touissant, além de outros nomes como - The Rolling Stones, The Band, Eric Clapton, passando até por Cristina Aguillera. Memórias intermináveis e amargas foram trazidas à tona novamente. Tal como uma tentativa de exorcizar os próprios demônios que tantas vezes nós mesmos criamos. Lendo uma entrevista do mestre atentei para uma frase que explica claramente isto:

     "Vivi muito tempo na estrada, cometi muitos erros, me envolvi com pessoas e entidades estranhas e, acima de tudo, deixei minha família de lado várias vezes — reconhece ele, que escreveu para 'Locked down' músicas como 'My children my angels' (...Tell me about your desires right now. Don´t trip on this wire, I´ll show you how. My baby wish I never, made you loose. My children, my angels, talking to you.) e dedicou o disco a sua família. — Arrependimento é uma palavra forte porque ela nem sempre conserta algo. Vivi o que tinha que viver. Mas hoje tento recompensar isso dando todo o amor aos meus netos e a quem de fato me ama."

Dr. John - My Children My Angels:


     Voltando a falar do disco, é inevitável perceber sua ligação total a cidade do “Doc”. New Orleans sobra no disco. Aos ambientes burlescos do Mardi Gras, aos famosos 'medicine shows' teatrais que mais pareciam um circo disfarçado de concerto rock e à aos mistérios do 'Voodoo', ou Hoodoo como é apelidado nos estados do Luisiana.” Talvez por isto, a crítica americana considere “Locked Down” o retorno à forma. Muito embora os trabalhos de Dr. John nunca tenham sido considerados abaixo de uma linha no mínimo mediana (escutem também o “Tribals” de 2010).

     Locked Down é indiscutivelmente o melhor disco que ouvi em 2012. Rico em arranjos, com uma grande performance de guitarra, com a pimenta natural de um nativo de New Orleans e com uma “classe gangsta” que cabelos e barbas brancas ajudam a imortalizar no tempo e fazem com que enxerguemos que ainda há esperança para a música.

     Quem se aventura na revolução?

Dr. John - Revolution:

quarta-feira, 19 de junho de 2013

O Gigante - Por Bruno Vitorino


No íntimo, eu já sabia... Sempre soube, na verdade, que era apenas uma questão de tempo. Algo inevitável. Demorou pouco mais de um ano, mas finalmente aconteceu: ontem à noite, virei estatística. Voltando para casa depois de mais um dia de trabalho, fui reduzido da minha condição de pessoa a mero número e passei a ser mais um ciclista atingido por um carro na cidade do Recife.

O local do ocorrido foi a rua Hoel Sette – pertinho da Praça da Jaqueira. Eram 18:30. O trânsito, para variar, estava entre o caótico e apocalíptico. O fluxo, parado ou quase isso. Eu vinha calmamente à direita, com a bicicleta devidamente sinalizada, com capacete, seguindo as leis de trânsito e os protocolos da boa convivência nas ruas, quando, a uns quatro carros à minha frente, percebi que tinha um veículo há um bom tempo com a seta ligada tentando entrar na via. Nenhum carro deu a vez e logo eu, idealista que só vendo, fui inventar de ser gentil e dividir o espaço público com um cidadão igual a mim... Deixei ele passar. Foi o meu erro. O carro que vinha na minha cola não quis esperar, acelerou e me atingiu. Só me restou ficar puto!

Por sorte, tudo não passou de um susto. Não me machuquei, tive apenas prejuízo material. Contudo, experimentei a imensa frustração compartilhada por muitos que, como eu, procuram uma maneira alternativa de se locomover em sua cidade e que também foram vítimas da negligência de outrem. Nesse dia, esbarrei na velha questão do típico motorista que se julga senhor de engenho, vê as ruas como seu latifúndio e, por fim, utiliza o carro como insígnia de poder e diferenciação social. Ciclistas são apenas intrusos e estão sujeitos a uma truculência cínica que sorri silenciosamente a cada acidente. Não deveriam sequer existir. “Sai da rua, filho da puta” é a frase carinhosa que provavelmente todo ciclista urbano já deve ter ouvido. O ranço aristocrático dos tempos de colônia segue firme.

Caminhei eternos 15 minutos até minha morada, carregando minha bicicleta como se fosse um companheiro ferido de guerra - alegoria mais do que apropriada já que o trânsito brasileiro matou, só no ano passado, mais de 40.000 pessoas. Meu corpo era uma sombra esmaecida. Minh'alma, um vórtice a sorver a realidade. O Aleph... Enquanto andava, via pessoas correndo na rua, um carro a avançar o sinal vermelho, gente jogando lixo no chão. Pensamentos invasivos me assaltavam... Lembrei-me do momento que vive o país; do aparente despertar político-social; da imagem de pessoas insatisfeitas indo às ruas, cobrando das instituições e dos donos do poder ações contundentes para a solução efetiva dos problemas que há muito atingem o Brasil. A contradição latente da imagem de indivíduos transgredindo regras básicas da vida em sociedade com a ideia de pessoas que reclamavam aos governantes um país melhor se misturava em minha cabeça num turbilhão. Algo não batia. O gigante acordou! Será mesmo?

As manifestações que eclodem em todo o país são lindas (ainda mais por serem apartidárias) e enchem meu coração de orgulho e esperança, mas isso é apenas uma parte importante do processo de transformação, por uma razão simples: não é possível haver nova política e se não houver nova sociedade. Parece-me imprescindível que as pessoas repensem individualmente o seu papel enquanto cidadãos e qual sua importância na construção de uma comunidade de fato voltada para o bem comum. É preciso, antes de tudo, uma revolução particular, interna, íntima. Extirpar o "jeitinho brasileiro", o chorume aristocrático de nossa sociedade e abraçar a plenitude da igualdade democrática que delimita direitos e deveres para todos independentemente de classe social. As transformações perenes e mais efetivas precisam começar nas micro-relações, do reconhecimento do Si e do Outro como equivalentes no processo político que fundamenta a Nação, o Território e o Estado. Da base ao topo. Do lixo no lixo ao dinheiro para a educação. Do povo para as instituições e seus representantes. O gigante acordou? Não! Ele ainda está em coma e respira por aparelhos. Mas, ao menos, abriu um dos olhos.

Amanhã (20/06) será dia de ocupar as ruas do Recife. De manifestar pacificamente nossa insatisfação nos rumos que estão sendo dados ao Brasil. Gritar por hospitais públicos “padrão FIFA”, real inclusão social, educação de Primeiro Mundo, transporte coletivo barato e de qualidade, fim da corrupção e tudo mais. Motivos não faltam e eu estarei lá a ajudar a despertar esse gigante que há muito se encontra "deitado eternamente em berço esplêndido". Mas, sinceramente tenho a esperança de que alcancemos a maior das vitórias: o revolucionar-se.

terça-feira, 11 de junho de 2013

Vivendo o Porto: Chocolateria Equador - Por Dom Angelo



Com este post inaugural, começo uma coluna onde darei algumas dicas de locais que acredito serem legais para se visitar aqui na cidade do Porto (Portugal). Não posso dizer que sou um guia expert, mas conversando com alguns tripeiros (pessoas nascidas no Porto), vejo que para passeios alternativos, estou mais antenado que muitos.
Inspirado na visita que fiz a Bruxelas e Bruges neste final de semana, indicarei uma chocolateria excelente aqui no Porto, que digo por experiência própria, não fica atrás das estabelecidas na Bélgica.
A Chocolateria Equador fica na rua Sá da Bandeira, 637. Pertinho do centro histórico, a idéia é aproveitar o passeio na baixa (downtown) e visitar essa lojinha. De preferência, como é óbvio, depois do almoço.
 
O que considero chocolate de verdade (que fica na margem de 70% de cacau ou mais) é muito bom e o estabelecimento ainda disponibiliza ótimos kits para se presentear. As trufas também são excelentes e o design das embalagens são belíssimos, inspirados em ilustrações do início do século.
Buscando um diferencial, ao contrário dessas lojas mais convencionais do Brasil (tipo Cacau Show, Kopenhagem, etc.) a trilha sonora da Chocolateria Equador é só Jazz! Principalmente coisas mais trad da Ella, do Armstrong, do Goodman, do Duke e coisas cool do Miles, do Chet e do Brubeck. Nada melhor do que comer um doce fabuloso, curtindo um som de primeira.
Abraços!
 

segunda-feira, 3 de junho de 2013

Dave Holland & Pepe Habichuela - por Dom Angelo



Posso dizer que algumas semanas atrás tive um dos grandes prazeres musicais de minha vida até hoje. Assistir o concerto do baixista Dave Holland em parceria com o violonista Pepe Habichuela.
Em termos de estrutura, tudo impecável. A organização da Casa da Música, a educação do público, o controle técnico do som (nem um triz de microfonia), a qualidade do som em termos de equalização, por fim a qualidade dos instrumentos e dos instrumentistas.

Holland, um imponente e lúcido lorde inglês com mais de cinquenta anos de carreira é considerado um dos principais jazzístas em atividade, tendo em seu currículo trabalhos com Miles Davis (na lendária época do Bitches Brew), Thelonious Monk, Chick Corea, Kenny Wheeler, Stan Getz, Bill Frisell, dentre outros grandes. Mestre do som e do ritmo, de timbre suave e improvisações inspiradas, teve sua carreira marcada por uma longa relação com a gravadora ECM onde participou de álbuns lendários.
Habichuela pertence a uma das grandes dinastias da música flamenca. É da geração de Paco de Lucía e de Camarón de La Isla, porém manteve-se sempre atualizado, acompanhando os novos rumos tomados por esta linguagem musical. Em trabalhos anteriores com o trompetista Don Cherry, já tinha buscado a fusão do jazz com a música flamenca. Mais recente, alguns anos atrás, experimentou a fusão com a música clássica indiana nos seus trabalhos com o músico Nitin Sawhney.

Acompanhados de Josemi Carmona no segundo violão e dos percussionistas Juan Carmona e Bandolero, o concerto de Holland & Habichuela foi uma verdadeira aula de maturidade musical. Bom gosto de fraseados, instrospecção e ao mesmo tempo comunicação musical entre os integrantes, controle técnico e acima de tudo, bom gosto artístico.
Viu-se o Holland descobridor e pesquisador, pois a música era exclusivamente flamenca. Apesar de ficar claro em suas improvisações que é de base jazzística o seu idiomatismo musical. Viu-se o Pepe como a personificação do espírito flamenco. Ao mesmo tempo que era extremamente técnico e veloz, era doce e sentimental, fazendo-nos lembrar dos verdadeiros propósitos da arte de fazer música. Viu-se o Josemi Carmona com um toque singular de violão, enquadrado na escola do Nuevo Flamenco e os percussionistas Juan e Bandolero delicadamente confirmando o dito popular que na música: menos é mais.

Como o Holland dispensa apresentações, segue abaixo um vídeo do Pepe Habichuela pra quem quiser conhecer melhor o mestre:
http://www.youtube.com/watch?v=fl9YTIvZa1s