quarta-feira, 29 de abril de 2015

Oliver Nelson e A Verdade Abstrata - Por Bruno Vitorino


O saxofonista, compositor e arranjador Oliver Nelson.

É interessante perceber como alguns discos mudam totalmente a nossos ouvidos com o passar do tempo: de uma ilha erma e isolada nos confins da sensibilidade humana, que aparentemente nada revela ou comunica, a uma imensa metrópole sonora que constrói inúmeros vínculos com nossos sentimentos mais pessoais. A depender do trabalho, é necessário que o ouvinte tenha alguma familiaridade com o artista e certo conhecimento da linguagem utilizada por ele, para que a mensagem codificada em sons, que é a música, seja transmitida, e o elo emocional seja, enfim, estabelecido entre esses dois atores da escuta, num processo que chamamos de experiência artística.

No entanto, artistas de fato criativos e compromissados tão somente com a expansão de suas fronteiras expressivas podem deixar desamparados, do ponto de vista estético, até seus fãs mais devotados e continuar a surpreender o público ao longo da história no momento que instituem nela um marco. Imaginem, por exemplo, o impacto causado pelos Beatles quando eles apresentaram ao público, que até então os tinha como um grupo de “Iêiêiê” que cantava a três vozes sobre paixões adolescentes balançando os cabelos em sincronia, o revolucionário Revolver em 1966. E mais ainda: imaginem o choque que esse disco continua a provocar naquele que descobre o quarteto inglês por estes dias. É de perder o chão! Por isso, afirmo que o tempo desempenha um papel fundamental nesses casos, pois esse estranhamento inicial só pode ser vencido pelas transformações internas que só ele, o tempo, nos proporciona, alterando inclusive a nossa compreensão de música, nosso gosto e juízo de valor.

Eu poderia escrever aqui linhas e mais linhas sobre as incontáveis vezes que isso aconteceu comigo: ouvir um disco, não entender absolutamente nada, deixá-lo de lado e, depois de um bom tempo, como numa revelação dos Céus, achá-lo espetacular numa audição despretensiosa e não compreender como eu pudera não ter gostado dele logo de primeira. No entanto, pretendo falar de minha última descoberta “tardia”, por assim dizer, que por sinal nada mais era do que um clássico absoluto: The Blues and The Abstract Truth do saxofonista, compositor e arranjador Oliver Nelson, lançado em 1961 pelo selo Impulse!.

A primeira vez que ouvi esse disco faz uns dez anos. Naquela ocasião, tinha lido bastante a seu respeito em artigos e livros que destacavam sua importância por retornar às raízes e investigar minuciosamente os pilares do blues - plataforma fundamental ao jazz -, apontando com isso novos direcionamentos na composição jazzística ao incorporar princípios da harmonia modal no blues e se valer de uma arquitetura que ia além da forma básica do gênero; na interpretação dos temas por conta do escrutínio nos arranjos e na distribuição das vozes, enfatizando cores obscuras e criando tessituras inesperadas; na improvisação devido aos solistas presentes na sessão fortemente ligados ao avant garde e às novas abordagens como o Jazz Modal e o Third Stream (a grosso modo, a junção do jazz com a música erudita). Tudo isso, diga-se de passagem, numa época em que o Free Jazz, sob a égide do grande Ornette Coleman, subvertia os alicerces tradicionais do jazz como a forma chorus, a ideia de progressão harmônica e a noção de swing e dominava a atenção da cena de então como uma novidade irresistível, uma revolução em curso. Contudo, apesar de todas essas qualidades, lembro-me muito bem de não ter ouvido “nada do outro mundo” no álbum e de tê-lo achado, devo confessar, um tanto convencional. Pus o disco num canto esquecido de minha coleção por quase uma década, e só pela ação silenciosa do acaso é que pude, finalmente, vislumbrar toda a sua dimensão e depurar sua mensagem.

Semana passada, estava folheando o primeiro volume do Real Book, uma espécie de livro sagrado do jazz que compila inúmeras composições, em busca de uma música para estudar harmonia (o modo dórico, mais especificamente) e improvisação. Do nada – se é que isso existe -, lembrei-me que Stolen Moments, tema composto por Oliver Nelson e que abre The Blues and The Abstract Truth, flerta com o modal. Toquei a introdução (claramente em C dórico - Cm7 / Dm7 / EbMaj7), dei uma olhada na melodia, conferi seu encadeamento de acordes e quando dei por mim estava longe de casa, totalmente imerso no mundo imaterial da composição. “Realmente, esse tema é massa.”, disse a mim mesmo. Tinha de reouvir a gravação original para ver o que os instrumentistas faziam, como se comportavam na transição do tema ao momento dos improvisos sobre a forma minor blues, etc.

Foi um choque! Primeiramente pelo o time magistral que Nelson escalou para a sessão: o incendiário Freddie Hubbard no trompete, a lenda Eric Dolphy tocando sax alto e flauta, o toque impressionista de Bill Evans ao piano, e uma cozinha sublime formada por Paul Chambers no baixo e Roy Haynes na bateria[1]. Depois, pela maestria na interpretação do tema que eu acabara de visitar: a ambiência profunda do estúdio, a completa atenção dos músicos às nuances e expressões que Oliver Nelson põe no arranjo, conferindo-lhe força, a atmosfera cool que envolve o tema, o quanto é dito nos silêncios e o quanto é subtendido nos fraseados. Cada improviso parece ser melhor do que o outro, e à medida que os solistas mandam seu recado inevitavelmente me lembro da perplexidade do escritor Alex Ross ante a capacidade da música de, numa breve sequência de notas ou acordes, assumir as peculiaridades de uma pessoa, traduzir num mundo abstrato a personalidade de um artista[2]. O que fica extremamente claro quando o tenor de Oliver Nelson se apresenta para improvisar neste tema. Ele dá ao todo apenas quatro giros sobre a breve estrutura minor blues, e faz uma improvisação quase motívica, com padrões baseados em arpejos de tríades e figuras rítmicas simples (tercinas) que vão criando tensão à medida que o encadeamento harmônico se desenrola – especialmente quando ele insiste na tríade de Ebm enquanto a progressão vai de Ab7 para G7, remetendo à escala aumentada -, mas que, para muito além da análise técnica e da radiografia musicológica, traz em si uma profundidade emotiva que as palavras jamais conseguirão exprimir. E é justamente neste aspecto que reside toda a sua beleza, porque seu improviso fala sem reservas a todo aquele que estiver disposto a ouvir, independente de educação formal, provando que a música não é uma esfera autossuficiente, e sim uma maneira de apreender a realidade a nossa volta e de partilhar da condição humana que nos define.

Desde essa (re)descoberta, venho ouvindo compulsivamente o disco todos os dias, faixa a faixa, com a maior atenção que consigo dar aos detalhes, como que para recuperar o tempo que perdi sem me dar conta da grandeza desse clássico, e pensando, ao final de tudo, como esse mesmo tempo que nos turva a visão pode nos ensinar lições valiosas sobre aquilo que julgamos sempre saber.





[1] Há também George Barrow no sax barítono, contudo sua participação fica restrita aos naipes.
[2] Ver ROSS, Alex; Escuta Só: Do Clássico ao Pop, Companhia das Letras, 2011, São Paulo. 

quinta-feira, 16 de abril de 2015

Tostão: A Perfeição Não Existe - Por Fernando Lucchesi



Estou muito longe de ser um fanático ou mesmo entendido de futebol. Admiro muito o jogo, tenho os meus times, mas estou longe de entender de esquemas táticos, escalações de jogadores, posicionamento dentro de campo, mas acompanho as notícias, as polêmicas do cotidiano dos clubes e nos dias seguintes aos jogos com mais interesse. Uma das perguntas mais recorrentes sobre futebol, feita a todo aquele que têm um mínimo de interesse pelo jogo, é “qual seu ídolo no futebol?”. A resposta de cada um leva os mais diversos fatores em consideração: as jogadas brilhantes produzidas por determinado jogador, a quantidade de títulos, uma atuação decisiva num jogo importante, a quantidade de gols marcada ou até mesmo o comportamento fora de campo. A maioria dos meus contemporâneos aponta Zico ou algum jogador do seu clube de coração.

O meu ídolo no futebol jamais o vi jogar, a não ser por alguns poucos videotapes.  Ele também não pertence a nenhum time pelo qual torço. Tostão significa algo mais do que o jogador que venceu a Copa do mundo de 70 e fez parte de um dos maiores times da história do futebol. Sua carreira foi bruscamente interrompida em virtude de uma bolada que atingiu o seu olho e provocou o descolamento da retina. Assim, em Fevereiro de 1973, Tostão, 26 anos, aconselhado pelos médicos, abandona o futebol.

Mas o “mineirinho de ouro”, como era conhecido, fez algo pouco usual para um ex-jogador de futebol. Foi aprovado na faculdade de medicina e em 1981 obtém graduação e passa a atuar como médico, deixando o futebol de lado por um bom tempo. Em 1994, Tostão é convidado para comentar a Copa dos Estados Unidos pela rede Bandeirantes e atuar como colunista de vários veículos impressos pelo Brasil.

Lançado em 2011, “A perfeição não existe” reúne algumas de suas crônicas escritas e publicadas em jornais entre 2000 e 2011. Tostão nos presenteia em cada uma dessas crônicas com seu olhar voltado para o humano, no qual o futebol é apenas uma parte. Ele discorre com desenvoltura desde esquemas táticos utilizados por treinadores ao prazer da vida quase campestre que leva junto com a família. Não tente o leitor buscar uma espécie de “padronização” nas crônicas, pois isso é algo com que Tostão não se preocupa. Escreve sobre   o que bem entende e quando quer. Abaixo vão algumas análises contidas no livro que considero pertinentes:

“Aprendo com as críticas, desde que elas não sejam apenas de torcedores parciais. Interessante é que há um grupo de torcedores que é excessivamente duro com os jogadores e com seu time, mas que não aceita as mesmas críticas de comentaristas. Acha que queremos menosprezar seu time de coração.”

“Parece que algumas pessoas acham que o comentário técnico é uma coisa chata, pouco intelectual, menor. Estranho! Como se fôssemos obrigados a escolher entre a beleza, o espetáculo e a técnica. Com raras exceções, não existe arte sem técnica.”

“O perfil ideal de um atleta seria o q associasse talento com garra, que fosse emotivo sem perder o controle de suas emoções, guerreiro e tranquilo, disciplinado e ousado , ambicioso, sem esquecer que o conjunto e a união são fundamentais no sucesso de um time. Evidentemente, esse super-homem não existe.”

“Precisaria de dezenas de crônicas para descrever tantos momentos inesquecíveis. Temos sempre de lembrar que o futebol, antes de ser uma competição, um jogo de técnica e de tática, é um esporte lúdico, belo e emocionante. Os lances espetaculares são os que ficam na história.”

“O futebol e a vida continuam prazerosos e bonitos porque mesmo em situações previsíveis, comuns e repetitivas, haverá sempre o acaso e um artista, um craque para transgredir e reinventar a história.”

Algumas chegam a surpreender como a crônica que dá título ao livro:

“Compreendo as atuais críticas (a crônica é de 2000) de que a seleção de 70 não era tão maravilhosa. Imaginaram um time perfeito. Não foi perfeito, mas foi uma equipe espetacular e irresistível para aquela época. A perfeição só existe na nossa imaginação. A seleção de 70 teve um grande defeito: seus jogos são constantemente reprisados pela TV. A imagem destrói a fantasia, que é sempre melhor que a realidade.”

Sem dúvida há ainda muitos pensamento e reflexões que mereceriam citação, mas deixo os leitores com a curiosidade conhecê-los.