domingo, 29 de março de 2015

Variações em 5/4 - Céu Ao Vivo





Na coluna deste mês, os editores do blog lançam um olhar coletivo sobre o recém-lançado disco “Ao Vivo” da cantora paulista Céu.

Boa leitura!

- Giba Carvalho:

Quando Bruno Vitorino sugeriu o trabalho novo de Céu como pauta para coluna deste mês, confesso ter sentido um frio na espinha. A dúvida permeou meus ouvidos e minha cabeça de modo intrigante: “o que falar de uma cantora que acho excelente em estúdio e que não rende o esperado ao vivo?”. Pois bem. A cantora paulista fez uma síntese dos três primeiros álbuns para comemorar os dez anos de sua carreira que continua bastante promissora. Deixou de lado os aspectos dub-ragga de “Vagarosa” (2009) e priorizou o lado mais “pop-sedução” de “Caravana Sereia Bloom” (2012). Escolheu o aconchego do Centro Cultural Rio Verde e sua capacidade de 400 pessoas para fazer uma gravação mais intimista, do que o delírio frenético das grandes plateias. Este foi o primeiro grande acerto do trabalho. O segundo ponto positivo foram as versões escolhidas por Céu. Como principais destaques do trabalho, a excelente versão de “Mil e Uma Noites de Amor” (Baby do Brasil, Pepeu Gomes e Fausto Nilo) e conhecida do público oitentista na trilha da novela “Roque Santeiro” e a espetacular versão de “Visgo de Jaca” (Rildo Hora e Sérgio Cabral) que já conhecemos desde Vagarosa. No mais, conforme citado acima, um compilado de seus maiores sucessos executados de modo bastante peculiar e competente.

Reconheço que da geração pós-Los Hermanos, Céu seja o nome de maior destaque do cenário pop nacional. Particularmente, gosto muito de sua ousadia nas composições e gravações dos seus trabalhos, mas dois pontos específicos me incomodaram sobremaneira. Primeiramente, a queda para elementos extremamente bregas nos arranjos. A versão de “Cangote” (uma das minhas preferidas do Vagarosa – 2009) é de revirar morto no caixão. Do balanço cadenciado de um reggae de categoria, para uma guitarrada sem pé nem cabeça, fruto da mentalidade “cafuçú” que permeia como “CUltura” na mentes “privadizadas” da turminha descolada. Aqueles que fingem ser alegres às custas da desgraça alheia. E segundo, as vinhetas patéticas que existem nos hiatos e introduções das músicas.

No mais, as pessoas precisam entender que mesmo sendo uma gravação de show, o trabalho foi mixado, as falhas usuais e constantes da cantora “na febre do ao vivo” foram maquiadas, e assim o CD e DVD serão um sucesso absoluto.


- André Maranhão:

Quando conheci o trabalho de Céu, a partir do seu disco de estreia em 2005, me pareceu que sua arte se encaixava muito bem numa estética glocal (uma mediação entre traços do global e local da cultura). A cantora quase sempre cruzou ritmos, artistas e idiomas diversos nos seus álbuns. Em seu novo disco (Ao Vivo) acredito que o glocal ainda persiste. Porém, em alguns momentos, Céu e os seus bons músicos (Dustan Gallás; Lucas Martins; Bruno Buarque e o DJ Marco) perderam (ou não procuraram) a possibilidade de se conectarem com a inventividade do Jazz ou da improvisação – coisa que seria bastante pertinente ao longo do disco. Senti a falta de tudo isso em “Teju na Estrada” (instrumental) e “Streets Bloom”: ambas são faixas caídas e que não me empolgaram, talvez justamente por não se improvisar mais. Em “Rainha”, um Afrobeat que por vezes Céu dedica a Fela Kuti, também seriam bem-vindas mais improvisações dos músicos, frases cheias – além, é claro, do vocalise menos tímido por parte da cantora.

Ao longo de sua carreira, Céu migrou paulatinamente dos backing vocals para o lead. Quiçá por dispor de uma voz bem favorável ao estilo de cantora crooner, que Céu consegue interpretar um estilo como o Brega com tanta finesse. Isso ocorre em “Retrovisor”; “Amor Antigo”; “Baile da Ilusão”. Mais além, a faixa “Cangote”, junta o canto de Céu com traços da música paraense, de uma linhagem Brega Cult e que se assemelha bastante aos trabalhos de Felipe Cordeiro.

“Lenda” permanece bem fiel às apresentações de Céu antes de lançar o álbum Ao Vivo. “Contra Vento” e “Comadi” conectam a música nordestina com o Indie, e “Em Piel Canela” (um clássico escrito por Bobby Capó, e gravado por outros nomes consagrados, tais como o trio Los Panchos e Nat King Cole), Céu mantém a suavidade e a leveza da sua interpretação. Em “Mil e uma Noites de Amor”, seu tom é bem próximo ao de Pepeu Gomes, e a versão é boa (ainda que eu considere a versão de Pepeu mais marcante).

Às vezes, acelerar a batida de uma canção não é garantia de que ela melhorará; principalmente em um ritmo como o Reggae. É o que acontece em “Concrete Jungle”. A versão do álbum Céu (2005), além de conter uma harmonização mais rica, com oitavadas, mais acordes e uma cadencia desacelerada, funciona bem melhor do que a do álbum Ao Vivo.

Ultimamente, alguns artistas que pretendem se aproximar de uma forma / fórmula emepebista da canção, têm cometido o seguinte equívoco: enxugar demais ou até excluir os instrumentos acústicos de suas interpretações, assim como tornar excessivo o uso de recursos eletrônicos. Bom, no disco “Ao Vivo” de Céu, isto ocorre em 10 Contados (uma vez que as versões do álbum de estreia da cantora e o dueto com Paulinho Moska no programa Zoombido, do canal Multishow são bem melhores); Malemolência (que apesar da novidade de Céu citar Mora na Filosofia, de Monsueto e Arnaldo Passos, a versão original do álbum de 2005 traz consigo a frase do cavaquinho – tão legal, porém esquecida nas posteriores apresentações da cantora). Em "Visgo de Jaca" (de Rildo Hora e Sergio Cabral), pode-se conferir na versão de estúdio anterior ao disco Ao Vivo, a diferença que fazem o pandeiro e as congas em certas canções.

- Fernando Lucchesi:         

Dentre as várias cantoras surgidas no final dos anos 2000, sem sobra de dúvida, Céu é a que mais se destaca. O CD/DVD “Céu Ao Vivo” faz um apanhado da consistente carreira da cantora, iniciada com o disco homônimo “Céu” (2005).  O disco, especificamente, tem uma mistura bem interessante das canções dos três discos lançados por ela. O início é de tirar o fôlego com três belíssimas canções. “Falta de ar” inicia com uma pegada roqueira setentista, desacelera e se enche de solos de guitarra. “Amor de Antigo” com sua levada meio brega e aquele famoso teclado de churrascaria, embalam uma linda melodia e “Contravento” parece uma cúmbia desacelerada, com inserções de guitarras psicodélicas.

Céu também não se contenta em ficar em sua zona de conforto e transforma um dos seus maiores sucessos, a balada “Cangote”, em um carimbó/guitarrada paraense. Funciona muito bem. A influência paraense/caribenha também está presente em “Baile de Ilusão”. O que não funciona bem no disco é a cover de “Mil e Uma Noites de Amor” de Pepeu Gomes. Muito similar ao original, sem nenhum toque de ousadia, algo que se espera de uma cover, principalmente ao vivo. O que falta de ousadia em “Mil e Uma Noites de Amor” é compensado na interpretação e arranjos de trip hop para lindíssima “Visgo da Jaca” de Martinho da Vila, que infelizmente está apenas no DVD.

Na segunda metade do álbum a cantora deixa um pouco de lado a influência caribenha nos arranjos das músicas abre um espaço maior para outros gêneros muito presentes na carreira de dela. Há espaço para o Hip Hop (“Malemolência” e “Lenda”), Reggae (“Concrete Jungle”, cover de Bob Marley) e até uma pouco de soul, nos arranjos de “Rainha”. A julgar pelo apanhado das músicas do CD e DVD “Ao vivo”, Céu está no caminho certo com seu caldeirão de influências musicais.

- Bruno Vitorino:

O disco “Ao Vivo” da paulista Céu chega para marcar a exitosa trajetória de dez anos de uma cantora que soube ao longo de sua carreira articular suas influências de música internacional às raízes de sua cultura numa produção autoral do seu tempo, sem saudosismos caricatos e mercadológicos, e que se materializa num formato pop urbano, mas que – eis aqui o mais importante e raro - ainda se preocupa com o conteúdo. Por essa razão, vejo a cantora com o nome mais interessante do mainstream nacional dos últimos tempos. Seu talento para a composição, suas angulosas melodias que serpenteiam por uma harmonia intuitiva, sua voz falha, roufenha - não pasteurizada pelo tecnicismo lírico ou pela artificialidade da impostação exagerada à Ana Carolina –, mas educada e de belo timbre, e sua sensível qualidade de intérprete resultam numa música que tem identidade própria e méritos estéticos, como atestam seus discos “Céu” (2005), sua obra-prima “Vagarosa” (2009) e o dançante “Caravana Sereia Bloom” (2012).

Tive a oportunidade de assistir à cantora em ação no festival Rec Beat no ano de 2013, mas creio que a dispersão do palco grande combinado à euforia de um grande público a dominaram. Sem falar que a banda no palco era bastante reduzida em relação àquela que se ouvia nos discos, sempre repleto de convidados em cada faixa. Assim, em poucas palavras, o que vi foi uma Céu desconcentrada amparada por uma banda que não conseguia preencher os espaços e atingir o nível de execução que se ouvia nos discos em estúdio. Saí antes de o show terminar. Daí meu medo que o fenômeno “brilhante em estúdio, terrível ao vivo”, algo tão comum em tempos de músicos que não sabem o que fazem e focam no hype, se repetisse com esse novo projeto da cantora. No entanto, não é o que acontece. Imagino que o ambiente controlado, com uma produção disponível e vasto background ao alcance, a responsabilidade de uma gravação de um DVD/CD, que não deixa de ser sinônimo de prestígio na carreira de qualquer artista, o caráter intimista do Centro Cultural Rio Verde, local escolhido para a gravação de sua apresentação, e, por fim, um público empolgado ma non troppo criam as condições ideais para que Céu se mostrasse focada e confiante, e sua banda, mais audível e comprometida com a execução. E o repertório é simplesmente matador! Destaque para o clima tropicalista de “Contra Vento” e samba-dub de “Malemolência”.

Recomendo!

- Rógeres Bessoni:

Por razões de cunho pessoal, o sr. Bessoni não conseguiu escutar e escrever na coluna de março. No próximo mês, o colunista está de volta com suas observações perspicazes.


domingo, 22 de março de 2015

Um Salto no Vazio: Ernesto Jodos em Recife - Por Bruno Vitorino

Ernesto Jodos. Fonte: Google Imagens

Diana Krall ecoava no sistema de som do Teatro Luiz Mendonça, embalando o ambiente com sua releitura à Spettus Steak House do clássico “Fly me to The Moon”, de Bart Howard. Sofisticação e requinte era o que sua versão industrializada desse standard consagrado por Frank Sinatra parecia derramar sobre o público. Sentado na extremidade esquerda de minha fileira, tentava entrar no clima de descontração e leveza que parecia envolver os presentes. Ainda estava um pouco agoniado, talvez por causa da meia hora que passei em pé na fila devido ao atraso de uns trinta minutos na abertura dos portões. Quando finalmente meu espírito chegou ao teatro, já ribombava, como um sinal dos deuses, o segundo gongo de advertência - aquele toque que anuncia à platéia que em breve as apresentações irão começar. “Que bom! Não vai atrasar tanto.”, pensei. Neste mesmo instante, reparei que todos, repito, todos!, os casais que estavam à minha volta, sacavam de seus celulares para tirar uma selfie e imortalizar no Instagram esse momento íntimo e fugaz que, outrora destinado a quedar esquecido nos porões da memória, convertia-se em acontecimento real, fato histórico na biografia dos enamorados, pelo seu registro e publicação nas redes sociais. “Não imaginava que éramos assim tão positivistas...”, lembro que cheguei a pensar.

Foi aí que ouvi de passagem, para meu espanto: “É o Hermeto que vai tocar agora, véi!”. Descendo as escadas, um jovem hipster de bigodes eriçados nas pontas e barba vultosa que parecia ter acabado de acordar, pois trajava uma calça de pijama, com uma camisa regata furada e um chinelo de dedo, prenunciava o que eu temia: que a ordem das apresentações fosse invertida e eu tivesse de assistir ao concerto do duo Hermeto Pascoal e Aline Morena. Justamente o único que não queria ver. Mas, calma! Antes que seu cenho ganhe rugas de desaprovação, leitor, faço questão de esclarecer o óbvio: amo a música de Hermeto Pascoal! Tive verdadeira uma epifania com o concerto de seu grupo na MIMO em 2009, com direito a torpor, perplexidade e uma noite inteira de reflexões sobre a arte, o sentido da vida e qual seria, depois de ter presenciado tamanho milagre artístico, minha relação com a música. Sempre me intrigaram a complexidade arquitetônica de suas composições, a maneira como ele conferia um novo sentido à tradição ao fazê-la dialogar com o contemporâneo, a infinidade de seu vocabulário sonoro que incorporava todos os sons possíveis em sua música, daqueles gerados pelos instrumentos convencionais aos oriundos dos objetos mais improváveis – no álbum Slaves Mass, ele usa até um porco! -, e como, por fim, dentro de todo esse universo inóspito os músicos compartilhavam tanta liberdade e exercitavam com tanto ímpeto o risco. E o Hermeto lá guiando tudo! Vê-lo ao vivo com seu grupo foi, portanto, uma experiência indescritível. No entanto, com o duo Hermeto/Aline não sinto isso. Nem de longe vislumbro toda essa dimensão. Vejo apenas um happening que prima pela espontaneidade em si mesma, sem propósito estético definido, irmã gêmea do excêntrico. De resto, sinceramente, acho que a Aline, por mais que tente e se esforce, não consegue acompanhar o “Bruxo” (e o grupo, quando presente) em suas explorações e mais atrapalha do que contribui para música que ali está sendo feita. Enfim, não pude deixar de sentir certo alívio quando veio então o terceiro e último gongo, e com ele o anúncio da primeira atração da noite: Alex Corezzi e Jean Kapsa.

O projeto do saxofonista Corezzi, mineiro radicado em Pernambuco e a mente iluminada por trás da produção do Recife Jazz Festival, com o pianista francês Jean Kapsa foca em reinterpretações mais abertas de temas clássicos da música instrumental brasileira. E por “mais abertas” deve-se entender que os instrumentistas se valem de uma célula melódica de determinada composição, apoiando-se na harmonia que lhe é implícita, para a partir desta estrutura mínima se lançarem nas improvisações e empreenderem um diálogo intenso na construção espontânea das formas. Dentro dessa perspectiva, o mais que conhecido frevo “É de Fazer Chorar” foi revisitado num andamento moderado, com os músicos a flutuar em rubato sobre o pulso estabelecido que delimitou o clima emotivo apropriado para receber um sax tenor vigoroso o qual percorria de forma assimétrica determinado trecho pinçado da melodia, enfatizando assim seus grupamentos rítmicos, ancorado num piano frenético que abusava de pontilhismos, clusters e acordes estendidos que de tão imensos desabavam sobre si. Depois disso, alternância de improvisações individuais e reexposição do motivo ad libitum. No entanto, o que à primeira vista me pareceu uma abordagem corajosa e exploratória de temas tradicionais e vastamente tocados, à maneira do que fizera, por exemplo, o grande Albert Ayler com seu mergulho no spiritual, no gospel e na creoule music, revelou-se um quê burocrática e repetitiva. Lá pela terceira música, percebi que aquilo que se pretendia free e pautado no imprevisível acabava sempre por repousar sobre uma confortável e protegida fórmula estrutural: o sax livremente tocando a melodia sobre um piano tempestuoso; aumento da tessitura sonora como ponte para os solos; seção de improvisos do tenor; solo de piano sobre um vamp que estabelecia o lugar harmônico; retorno ao tema com a mesma pegada da abertura. Ou seja, um formalismo disfarçado que ia totalmente de encontro aos preceitos da improvisação livre, que nega justamente o preconcebido ao focar no imponderável e seus desafios. Vale ressaltar, porém, que se do ponto de vista musical a apresentação do duo Corezzi/Kapsa me pareceu um tanto morna, repetitiva e carente de um diálogo mais propositivo, reconheço o grande mérito didático de apresentar a um público pouco afeito à música instrumental uma abordagem não convencional dos temas que interpretou, convidando os ouvintes a fruir a música sob um viés certamente inesperado por eles, como denunciou o calor dos aplausos ao final do set. Mas, nesse momento, eu já ansiava pelo concerto que me fizera sair de casa e encarar uma longa viagem à zona sul da cidade. Em breve, subiria o palco para escrever/declamar sua poesia em primeira pessoa o argentino Ernesto Jodos.

Formado na prestigiosa Berklee College of Music, Jodos é uma das figuras principais da rica cena jazzística argentina surgida em meados dos anos 1990, a qual fora responsável pela ampliação das fronteiras estéticas dessa música no país ao combinar a tradição dos standards a uma produção autoral que carregava em si as inquietações de uma geração de instrumentistas que investigava, inquiria e ressignificava os cânones de suas próprias raízes culturais. Desde então, o pianista vem atuando em diversos projetos como líder, co-líder e sideman, angariando inúmeros prêmios ao longo de sua trajetória e documentando numa discografia que já se avoluma sua música introspectiva e personalíssima, que se põe em xeque a todo instante, seja em contextos mais dentro da plataforma chorus ou naqueles de total desprendimento de qualquer alicerce preconcebido. Particularmente, tomei conhecimento da existência de Jodos num disco do excelente saxofonista Rodrigo Dominguez (também argentino) intitulado “Tonal” (2004). Nesse projeto, em que o tradicional combo “sax/órgão hammond/bateria” abandonava o hard bop que o consagrou, bem como sua estrutura “tema – improviso – tema”, e se lançava em voos arriscados pelas paisagens sonoras abstratas da improvisação coletiva; pude perceber a destreza técnica de Jodos e como ele a utilizava em prol de expressar o que sentia a cada momento da música executada. Estava tudo lá: seu jeito de harmonizar melodias aparentemente incompatíveis com o rigor estrutural dos acordes, o modo como ele respondia às investidas dos músicos e contribuía para a atmosfera emotiva do que estava sendo tocado, sua capacidade impressionante de criar todo um discurso improvisativo a partir do mais singelo e despretensioso motivo, o uso que fazia dos espaços, os silêncios que tocava. Tudo isso num contexto de muita incerteza, como se a música estivesse prestes a fugir do controle a qualquer instante, e de tensão a níveis elevados, com uma permanente sensação de que não houvesse qualquer zona de repouso para onde os instrumentistas pudessem levar os temas à conclusão. Por todas essas razões, ver Ernesto Jodos em ação era para mim apenas uma questão de oportunidade.


O concerto foi baseado no mais recente trabalho do pianista, o disco “Actividades Constructivas”, lançado ano passado pela label argentina BlueArt. Nesse álbum, Jodos, sozinho, propõe-se a investigar a tênue fronteira que divisa composição e improvisação, colocando essas perspectivas frente a frente em sua odisseia sonora: a primeira enquanto lugar objetivo da expressão musical, esquema previamente definido, fruto do processamento do impulso criativo pelas estruturas do pensamento, ou seja, improviso escrito; e a segunda enquanto discurso libertário, rompante criativo em estado bruto que vem dos mais recônditos confins da memória, o qual carrega em si uma peculiar carga emocional justamente por ser não refletido, e materializado no ato da execução, isto é, composição instantânea. Ao se valer da colisão desses extremos, Jodos apresentou em Recife uma música abstrata, exigente, de difícil assimilação, totalmente dissociada da sensibilidade estética banal que se entranhou em nossa cultura e do lugar comum daquilo que se consolidou Jazz no espírito coletivo fomentado pelo establishment. No entanto, uma música imensamente bela, dialógica, imaginativa e profunda que convidava o ouvinte mais curioso a abandonar o conforto de seus (pre)conceitos artísticos, daquilo que sempre conheceu por música, e celebrar na transcendência a condição humana que nos iguala, nos define e nos une. Era impressionante como a cada tema, o pianista parecia se concentrar para limpar de sua mente qualquer vestígio de estratégia na abordagem da música, que podia rutilar de uma exígua estrutura melódica ou ser iniciada da inteira negação a qualquer material prévio, e transpor a alma para a ponta dos dedos, como se escrevesse, nas palavras de Machado de Assis, “uma poesia austera e pura” que versava sobre as mais íntimas aspirações. Um mergulho desmedido dentro de si mesmo, um salto no vazio. Cada composição, cada improviso descortinava um universo novo cheio de nuances e sentido interno, como uma afirmação contundente de que na arte toda a repetição é nula. A polidez dos aplausos, contudo, fez-me suspeitar que fora mais respeitado pela condição de artista do que compreendido enquanto tal.

Não fiquei para os dois últimos concertos. Não tinha como. Depois desse recital, só me restou voltar para casa com a música que acabara de ouvir ainda reverberando em meu âmago e um sorriso de menino no rosto por ter conseguido comprar uma cópia do disco de Jodos - graças à boa vontade, vale ressaltar, de um dos membros da produção do evento.

Foi mais uma longa e agradável noite de reflexões sobre arte, vida, sentido e gratidão.