sábado, 27 de fevereiro de 2016

Oscar 2016: Os Indicados a Melhor Filme - Por Fernando Lucchesi


Aqui estamos mais uma vez para dar nossa impressão sobre os indicados a melhor filme do ano de 2015 (veja AQUI o texto do ano passado), de acordo com a academia de artes e ciências cinematográficas de Hollywood. Entre os indicados tivemos gratas surpresas e algumas produções decepcionantes.

A ordem dos filmes no texto está em conformidade com os meus favoritos, começando por “A Grande Aposta”. E você, leitor? Concorda? Discorda? Dê a sua opinião!


A Grande Aposta


Sem dúvida alguma o grande filme do Oscar. É inacreditável como Adam Mackay e Charles Randolph adaptaram o livro The Big Short de Michael Lewis e deram uma fluidez impensada para um tema espinhoso: a crise financeira de 2008. Além de um roteiro extremamente bem feito, o filme conta com uma edição vigorosa que prende a atenção do espectador a cada nova cena e intercala várias histórias sem perder o rumo delas. O elenco do filme é simplesmente excelente. É difícil destacar apenas um. Possivelmente perderá o prêmio de melhor filme para “O Regresso” (já que a academia gosta dessas histórias clássicas de vingança e redenção contra as adversidades), mas se a academia fosse premiar ousadia daria o prêmio para “A Grande Aposta”. Deve levar o prêmio por roteiro adaptado. Pode levar o prêmio de montagem (embora nessa categoria, “Mad Max - Estrada da Fúria” seja favorito).

O Quarto de Jack


Um dos filmes mais humanos e comoventes dos últimos anos, “O Quarto de Jack” conta a história de um garoto de cinco anos e sua mãe que vivem o cotidiano dentro de um quarto. O que o público não percebe, de início, é o terror da situação: Jack e sua mãe não vivem ali por vontade própria, mas por que estão encarcerados, vítimas de um sequestrador. Jack é, na verdade, filho do sequestrador, já que sua mãe foi sequestrada há 7 anos. Para que Jack não veja “Old Nick” (nome pelo qual a mãe de Jack se refere ao sequestrador), ela o mantém dentro de um armário sempre que seu algoz entra no quarto. A “realidade” para Jack é o seu quarto e o que é visto na televisão. O diretor Lenny Abrahamson opta por contar a história do ponto de vista do menino, o que faz um contraponto muito bom entre a inocência e o terror que ele não compreende. Tudo bem que esse recurso não é novo, mas imprime certo lirismo ao filme, que por si só já aborda um tema pesado. Brie Larson é uma grata revelação como atriz. É um papel carregado de dramaticidade e ela consegue imprimir a intensidade certa, sem exageros. É favorita ao Oscar de melhor atriz merecidamente. Destaque também para o garoto Jacob Tremblay, que interpreta Jack. Por se tratar de uma produção menor (leia-se: de baixo custo) não deve levar o Oscar de melhor filme, mas é uma grata surpresa entre os indicados.

MAD MAX - Estrada da Fúria


O diretor George Miller (realizador da trilogia original de Mad Max) parece que pegou o que o interessava dos filmes anteriores, jogou em um liquidificador e criou o filme de ação mais interessante dos últimos anos. É bem verdade que o filme aborda questões como o fanatismo, a falta de água, a mulher como objeto, mas o que torna “Mad Max - Estrada da Fúria” um grande filme são as suas espetaculares sequências de ação. O cenário árido escolhido por Miller nos dá a ideia de um mundo pós-apocalíptico, em que água, combustível e armas são itens de primeira necessidade. A trama se resume basicamente a tentativa da Imperatiz Furiosa (Charlize Theron) fugir com as cinco esposas de Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne), um ditador de uma cidadela que fornece água em quantidades escassas à população e assim os controla e utiliza essas “esposas” unicamente para que possam gerar herdeiros para ele e assim manter a sua família no poder através dos anos. Nessa fuga é que entra o herói Max Rockatansky (Tom Hardy), feito prisioneiro por Immortan Joe.

Miller sustenta o seu filme com épicas cenas de ação que vão desde perseguições quase infinitas a tempestades de areia. O elenco também está afiadíssimo, com destaque para Hugh Keays-Byrne, como o vilão Immortan Joe. Um filme de qualidades técnicas inquestionáveis. É o favorito em algumas categorias técnicas (montagem, direção de arte e maquiagem). Seria uma surpresa se ganhasse o Oscar de melhor filme, uma vez que academia dificilmente premia filmes de ação com a principal estatueta.

Perdido em Marte


Uma das grandes surpresas de 2015, “Perdido em Marte” tem uma mistura brilhante entre humor e ação. A história do astronauta que fica isolado em Marte após a sua equipe da missão presumir que o mesmo está morto, é contada com fluidez e muito bom humor através da trilha sonora, basicamente calcada na disco music, e de um roteiro inspirado cheio de tiradas bem pensadas. Matt Damon está excelente no papel do astronauta esquecido. Seria a oportunidade de a academia reparar a injustiça de nunca ter dado um Oscar para Ridley Scott, realizador de grandes filmes como Blade Runner, Alien: O Oitavo Passageiro e Gladiador, mas vão dar o prêmio pelo segundo ano seguido para Iñárritu . Se Scott ganhar será uma grande surpresa.

O Regresso


Uma história clássica sobre vingança, um protagonista que enfrenta adversidades físicas/naturais e um vilão de primeira categoria. Pronto! Você já tem os elementos de um filme feito para, se não ganhar, pelo menos ser indicado ao Oscar. Obviamente que se trata de um exagero. Não basta ter apenas esses elementos. São necessárias atuações inspiradas e uma história que seja, ao menos, convincente. Além do apuro técnico, claro.

É o caso desse “O Regresso” do diretor vencedor do Oscar passado (e ao que tudo indica desse também), Alejandro González Iñárritu. O filme narra a longa jornada de Hugh Glass, vivido por Leonardo DiCaprio, em busca de vingança contra seu antigo companheiro de caçada, John Fitzgerald (Tom Hardy) que além de tê-lo deixado para morrer, assassina Hawk (Forrest Goodluck), filho de Glass. Tecnicamente o filme é um primor: dos cenários naturais gelados do Canadá, à fotografia exuberante de Emmanuel Lubezki, passando pelas interpretações brilhantes de Leonardo DiCaprio e Tom Hardy. O ponto alto do filme é sem dúvida nenhuma o ataque de urso sofrido por Glass. Impecável!

O grande problema do filme reside no roteiro e na montagem. O filme é demasiadamente longo (diversas situações poderiam ser cortadas sem atrapalhar a compreensão da trama) e a edição torna o filme monótono por algumas vezes. Isso para não falar no “salto” proporcionado na história: Glass, completamente destroçado pelo ataque de urso e só conseguindo rastejar, consegue avistar do alto de um penhasco um rio. Na cena seguinte lá está ele bebendo da água do rio. Esse recurso de edição, e por vezes até mesmo de roteiro, não é novidade. Hitchcock até tinha um nome para isso: Mcguffin. Isso não torna o filme menor, mas deixa o espectador desconfiado. Além disso, a facilidade com que a índia foge do acampamento dos franceses é no mínimo questionável.

Trata-se de um ótimo filme, mas longe de ser a obra-prima que estão pintando dele. De acordo com as previsões deve levar os prêmios de filme, diretor, ator (Se bem que é bom Leonardo DiCaprio se benzer. Se perdeu o Oscar pelo papel em O Lobo de Wall Street é bom colocar as barbas de molho) e fotografia.

Ponte dos Espiões


Mais uma vez, Spielberg usa um tema interessante (os espiões russos e americanos no cenário da guerra fria) para exaltar os valores americanos de uma verdadeira democracia. Tom Hanks é um advogado especialista em seguros que, por força das circunstâncias, deve defender um espião russo da acusação de espionagem e por consequência da pena capital. Por defender um “inimigo público”, Hanks ganha antipatia de toda a sociedade, mas graças aos ideais pregados pela constituição americana, ele nunca se desvia do caminho, mesmo quando sua casa é metralhada no meio da noite. Spielberg, numa tentativa de fazer um filme no estilo Frank Capra, com um personagem idealista, firme nas suas propostas joga fora a chance de fazer uma thriller de espionagem ao menos interessante para mais uma vez encher a tela de patriotada americana de como os Estados Unidos são justos e humanos. Além de uma edição e direção de arte brilhantes, salva o filme ainda a atuação Mark Rylance (como o espião russo Rudolf Abel). Dificilmente levará algum prêmio.

Spotlight - Segredos Revelados


O tema é explosivo: a investigação feita pelo jornal Boston Globe que revelou uma série de abusos praticados por padres católicos. O filme segue a linha de jornalismo investigativo que tem entre seus maiores expoentes Todos Os Homens do Presidente de Alan J. Pakula. Mas diferente do filme de Pakula, em que a cada nova pista o mistério vai se elucidando, neste Spotlight já sabemos desde início sobre o que trata a investigação. O filme termina se limitando a buscar testemunhas que se disponham a depor contra a uma instituição poderosíssima, de forma que o filme parece rodar em círculos e não entrega nada de surpreendente ao espectador. A grande tensão gerada pelo filme é saber se a reportagem deve ser adiada para que mais padres sejam denunciados ou publicá-la logo e evitar que concorrentes publiquem primeiro, mas com menos agressores denunciados. Mais um exemplo de filme que foi indicado só pra fazer quantidade. Grandes atuações do elenco (a exemplo de “A Grande Aposta”), com destaque para o surpreendente Michael Keaton, que depois de uma carreira errática parece ter se revelado um ótimo ator. Não deve receber prêmios.

Brooklyn


Desde 2010, quando a academia decidiu que poderiam ser indicados até 10 filmes ao Oscar de melhor filme, sempre acontece de a lista conter indicados que não se sabe por que estão na lista. São exemplos claros disso nos últimos anos Sniper Americano, Filomena e Cavalo de Guerra. Na edição desse ano, este papel coube a “Brooklyn”.

É realmente incompreensível como esse filme foi indicado ao prêmio principal e a mais dois prêmios. Tão inacreditável quanto isso é que o roteiro tenha sido escrito por Nick Hornby (ele mesmo, autor de Alta Fidelidade e O Grande Garoto). O filme é uma daquelas histórias de amor que você provavelmente já viu infinitas vezes. A trama é simples: fugindo da falta de perspectiva na Irlanda, jovem garota (Saoirse Ronan) vai para os EUA em busca de uma vida promissora. Chegando lá, tudo corre bem, ela se apaixona e tudo anda às mil maravilhas. Por conta de um imprevisto, ela decide retornar para a Irlanda e termina se envolvendo com outro rapaz. O grande dilema da personagem é ficar em sua terra natal e começar de novo ou voltar para os EUA onde já tem uma vida encaminhada (muito novo isso, né?).

Esse é uma daqueles filmes que em alguns anos será apenas uma nota de rodapé em livros sobre cinema, apenas por ter recebido essa indicação à melhor produção do ano. Se esse filme receber algum prêmio será a prova de que os votantes da academia perderam completamente o bom senso.

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Variações em 4/4 - Blackstar



Na primeira coluna do ano, os editores do blog comentam o último trabalho de David Bowie, “Blackstar”.

Boa leitura!


- Fernando Lucchesi:         

Se há algo que caracterizou David Bowie durante toda sua carreira foi a quase patológica necessidade de constante mudança, tanto visual como musical. Isso fez com que musicalmente Bowie explorasse uma quantidade enorme de sons e ao invés de seguir, era ele quem ditava a tendência do que viria ser feito. Muito dessa amálgama de estilos está presente em “Blackstar”, praticamente um disco-testamento do músico inglês.
Embora haja um grande predomínio de saxofone nos arranjos das músicas, não se trata propriamente de um disco de jazz (vi algumas críticas dizendo isso). O que caracteriza o disco, e isso possivelmente foi causado pelo estado de ânimo de Bowie, é um tom lúgubre, triste, por vezes até sufocante das canções do álbum. A única música que se aproxima de um rock é Sue (Or In a Season of Crime), com uma linha de baixo-guitarra mais acelerada e cheia de distorções. As outras canções do disco possuem estrutura semelhante, mas com pequenas diferenças nos arranjos.

A longa faixa-título, Blackstar, entremeia sax, flauta, batidas eletrônicas tudo dentro dessa atmosfera densa, pesada, com a voz de Bowie surgindo com uma voz quase suplicante. O mesmo se aplica (com algumas mínimas diferenças) à ‘Tis a Pity She Was a Whore e Girl Loves Me, que seguem a mesma estrutura de Blackstar.

Dollar Day já foge um pouco mais do padrão das outras. A música abre com piano e sax se misturando e segue com um violão com uma levada folk. Uma música que poderia estar perfeitamente em algum disco do REM. É o momento do disco em que Bowie diminui os efeitos eletrônicos presentes nas outras faixas. Já I Can´t Give Everything Away lembra algo de “Low” (disco de Bowie de 1977). Nessa faixa há uma retomada do uso de efeitos eletrônicos, teclados e há espaço até para um solo de guitarra.

Mas é na letra de Lazarus (transformado em um belíssimo vídeo) que Bowie realmente parece fazer o seu canto de cisne: “Olhe aqui para cima/Estou no paraíso/Tenho cicatrizes que não podem ser vistas. /Eu tenho drama/não pode ser roubado/Todo mundo me conhece agora.”. Um brilhante epitáfio para um dos artistas mais representativos do século XX.


- Rógeres Bessoni:

Há inegáveis dificuldades em escrever sobre o último trabalho musical de David Bowie. Se, por um lado, todos já falaram que “Blackstar” é um disco de verdadeira despedida (e repetir isso tenderia a ser um mero cliché), por outra via, uma análise detalhada sobre a obra exigiria uma pesquisa rigorosa sobre muitos elementos e poderia desembocar num artigo denso sobre estética, extrapolando os limites desta coluna. Isso porque é impossível falar de qualquer trabalho de David Bowie separado do autor – trata-se de um dos poucos artistas que praticamente impossibilitam tal “corte epistemológico”, ainda que momentâneo. Isso porque Bowie pertenceu à rara categoria daqueles que parecem viver toda a sua “vida pública” (porque era discretíssimo no âmbito pessoal) como se se tratasse de uma consciente composição estética, uma arquitetura experimental recorrendo a diversos campos de linguagem, o intento de uma realização artística de uma certa forma aproximada à maneira como Todorov interpreta ter sido a vida de Oscar Wilde, por exemplo. No caso de Bowie, isso incluía, TAMBÉM, compor e gravar discos.

Pois bem, é nesse contexto que Blackstar parece, de fato, cumprir sua função de arremate. O disco tem um tom “nublado”, até mesmo um tanto sombrio, mesmo nos momentos mais dançantes, como em ‘Tis a Pity She Was a Whore. A minha preferida, Blackstar, ganhou um clip poderoso e impactante, uma belíssima obra de fotografia, em que o ritual com o crânio, encenado em meio a espantalhos, pode facilmente ser entendido como uma contemplação sobre a morte. Além de tudo, vale ressaltar a tão comentada letra de Lazarus, em que o “eu lírico” (se posso usar aqui este termo) canta como se já estivesse morto. Esses conteúdos parecem demonstrar que Bowie sabia muito bem o que estava fazendo e queria, de fato, "gravar em vida um disco póstumo".

Fico assim impossibilitado de comentar Blackstar como se fala simplesmente de qualquer “lançamento”. Não é o trabalho de uma banda ou artista solo que lançou um disco e quer sucesso suficiente para excursionar, ganhar uma grana e os elogios pela obra. Aqui, Bowie compôs uma despedida e... partiu. Não ficou para ouvir qualquer opinião, e talvez não fizesse mais a menor questão disso. Qualquer análise em termos de “gostei/não gostei” ou “ficou bom/não ficou bom” seria pueril e até mesmo leviana. Trata-se de uma obra definitivamente madura, e sendo Bowie o alquimista/experimentalista estético que sempre foi, a sensação é que se está ouvindo (e assistindo nos clips que foram feitos para este disco) uma precisa composição em que cada coisa está exatamente onde ele queria que estivesse, em que cada timbre, palavra e andamento (assim como as cores, cenários e figurinos nos clips) foram intencionados. Bowie não estava mais tateando para ver o que “poderia dar certo ou não”, nem buscando louvores, nem pretendendo ganhar absolutamente nada mais deste mundo. Trata-se de um mestre do desconcerto, manuseando hábil e melancolicamente as tintas que aprendeu a dominar em décadas de manipulação ininterrupta, para compor sua partida desta terra. Agora, sim, com a obra completa, ele se retira e sai de cena. Fica desenhado um ideograma – ou, melhor, talvez um criptograma. Não me surpreenderia nada se, no futuro, observadores atentos percebessem que Bowie, junto com mais uns outros poucos mestres, deixaram criptografadas as fórmulas mágicas que nos ajudarão a dissolver uma era de mediocridade e pobreza espiritual que, parece, apenas se inicia.


- Giba Carvalho:

David Bowie sabia que estava perto do fim e “Blackstar” não é sombrio à toa! É um passeio real da mente mais criativa do mainstream musical mundial, pelos caminhos inóspitos da morte. Talvez por isso, seja o trabalho que menos flerta com Rock ‘n Roll em toda carreira do Camaleão. Por tratar-se de Bowie, não posso citar de onde vêm tantas influências. Encontramos elementos de Jazz Fusion, passando pelo Dub e chegando ao Rap em alguns momentos. Não tenho dúvida ao afirmar: trata-se de mais uma guinada violenta no histórico de trabalhos do cara.

Buscando talvez uma inovação maior ainda do que as de costume, o Camaleão foi buscar na cena Pós-Jazz de Nova Iorque nomes consagrados e que, notadamente, fossem capazes de trabalhar com a mais variada sorte de improvisos. No saxofone – Donny McCaslin, na guitarra – Ben Monder (ambos frutos do encontro anterior com a pianista Maria Schneider), na bateria o espetacular Mark Giuliana (Mehliana), o contrabaixista Tim Lefebvre (Tedeschi Trucks Band) e o tecladista Jason Lindner. Com um time deste quilate, somado a capacidade criativa de Bowie, não tenho dúvida em afirmar que Blackstar é um dos trabalhos mais interessantes lançados em 2015.

Trata-se de álbum de vanguarda (anticomercial), indiscutivelmente! E, mesmo trazendo uma estranheza caricata, quem escuta o álbum sabe que a personalidade de Bowie está entranhada no mesmo.

Indicadíssimo!


- Bruno Vitorino:

Inegavelmente a partida de David Bowie deste mundo de desorientação, destradicionalização e hedonismo desenfreado torna as coisas ainda mais difíceis para a Cultura. Nos últimos dois meses, tantos mestres voltaram ao Éter que é para mim quase impossível não ser fatalista ou, para usar uma expressão de um grande pensador que nos deixou ontem – Umberto Eco -, “apocalíptico”. Pois, a cada grande nome que parte, um vazio criativo se agiganta e se apossa de nosso ideário, substituindo transcendência, substância e profundidade por distração, aparência e efemeridade, como se uma marcha contundente levasse a humanidade à beira do precipício da idiocracia e do irracionalismo.

Só isso bastaria para ouvirmos “Blackstar” com uma solene reverência e profundo comprometimento estético. Mas, o disco é, ainda por cima, de uma riqueza artística surpreendente e cada vez mais rara no mundo de espumas em que vivemos.

A esta altura, todo mundo minimamente ligado sabe que o disco é um testamento musical concebido por Bowie na iminência da morte. A própria capa do trabalho deixa isto bastante evidente: uma grande estrela negra imponente e altiva que oculta, além de sua projeção inteiriça, seus frangalhos, como um astro que se despedaça e sucumbe. Ok. Só que o artista inglês não transformou sua doença – o câncer – num libelo clichê contra a morte que ceifa a sua vida de ídolo pop. Ao contrário! Bowie fez desse funesto território o espaço para uma última metamorfose estética, como era de seu gosto arredio a zonas de conforto, e o local perfeito para expurgar suas angústias, medos e dores enquanto ser humano, indivíduo que enxerga o próprio ocaso, em letras fortíssimas em primeira pessoa na intenção, imagino, de preparar seu espírito para o fim. O resultado é um trabalho marcado por uma atmosfera lúgubre - como num conto de Edgar Allan Poe – que mescla com muita precisão recursos eletrônicos, cordas, sopros e guitarras distorcidas, amalgamados em belos (e ousados) arranjos.

Destaque para o si menor tortuoso de Blackstar, uma suíte em duas partes sobre a “vela solitária” que trazemos em nosso universo interior; o grito desesperado de Lazarus; a base groove de Sue (Or in a Season of Crime) em contraponto à melodia flutuante na voz; o vocal quase recitativo de Girl Loves Me; o inesperado caminho harmônico de Dollar Days; todas as intervenções do saxofone de Donny McCaslin (e não, não é um disco de jazz, e sim um disco com elementos jazzísticos); a presença musical do produtor Tony Visconti.

Em resumo: maestria, comprometimento e risco. O que mais poderíamos querer?

Indispensável!