domingo, 27 de dezembro de 2015

O Enigma de Star Wars – por Bruno Vitorino




Se vens a uma terra estranha
Curva-te
Se este lugar é esquisito
Curva-te
Se o dia é todo estranheza
Submete-te
- És infinitamente mais estranho

Orides Fontela


Querido leitor,

Você poderia me dizer, por gentileza, onde está passando o novo Star Wars? Falo sério! Porque, a julgar pelo filme a que assisti hoje no cinema e pela euforia generalizada que viraliza nas rede sociais deste vilarejo, só posso ter visto um outro filme que não O Despertar da Força. Sinceramente! Não consegui fazer a relação entre o que se passou na tela e o regozijo coletivo que faz a cabeça de nerds, saudosistas e coolhunters. E antes que reclame de minha costumeira chatice e me pergunte todo afetado, digo: sim!, desde de criança sou um grande entusiasta da saga Star Wars, vi não sei quantas vezes todos os filmes e, embora desconfiado, estava bastante curioso com uma nova trilogia dirigida por J.J. Abrams. Mas, o resultado foi para mim uma decepção absurda! Desapontamento ainda mais gritante por ser eu, ao que parece, e para minha surpresa, um raro espécime de entusiasta frustrado com o novo filme, já que todos, público e especialmente a crítica, só têm mil maravilhas a dizer sobre a película.

Bem, os entendidos de cinema podem até vir aqui se meter em nossa conversa para querer vomitar toda sua verborragia enfadonha e saracotear sua autoridade risível, tal como um pavão velho e depenado, para justificar a glória cinematográfica que é O Despertar da Força. Mas eu, este bicho estranho que não se deixa enquadrar por tendências, modismos e oba-oba, amante do universo Star Wars de longa data, digo com muita tristeza que o filme é um desastre. “Queiram ou não queiram os juízes” do gosto. Ponto final.

Nada lá faz sentido, meu caro. A começar pela trama solta e confusa em que os eventos simplesmente acontecem por si. Não existe uma construção narrativa que explique, por exemplo, por que a Primeira Ordem existe e como ela conseguiu se estruturar de uma maneira tão grandiosa a ponto de por a República em xeque do jeito que faz. Vale lembrar que O Retorno de Jedi dá um fecho épico - e sem furos - a toda a saga: após uma expansão político-militar contundente capitaneada por Darth Sidious (o imperador) e Darth Vader, o Império é derrotado pela Aliança Rebelde; sua arma suprema, a estrela da morte, destruída; e seus líderes, mortos. A paz se impõe sobre a galáxia, os símbolos do Império são destroçados, Luke Skywalker se firma como a nova esperança da Força, Leia assume sua realeza e a República se refaz após um período de totalitarismo. Como pode agora, meu Deus do céu, começar tudo do zero como se nenhuma batalha tivesse sido travada e nenhuma guerra tivesse sido vencida? O filme inteiro acontece nesse mero desenrolar de fatos soltos no vento, num clima irritante de déjà vu, como se fosse uma versão alternativa para Uma Nova Esperança. E quando penso, meu caro, no que foi a densa teia narrativa de A Ameaça Fantasma – até então o mais fraco dos filmes – que prepara o terreno para o esfacelamento da República e a ascensão do Lado Negro e o comparo com essa nova abertura de trilogia... Chega dá uma tristeza.

Outro ponto que me chamou atenção foi a superficialidade dos personagens: eles não são construídos, são apresentados, impostos goela abaixo, sem qualquer profundidade emotiva. Assim, “bandidos e mocinhos” agem como autômatos desprovidos daquela imprescindível dimensão humana, seja boa ou má, que dá vida a esses seres fictícios e os põe emocionalmente acessíveis ao público, de modo que O Despertar da Força traz tão somente criaturas estranhas plasmadas numa tela de cinema. E todos sabem, desde os tempos de Aristóteles em seus estudos sobre a poética, como esse vínculo que só a verossimilhança proporciona é fundamental para a fruição tanto estética quanto humana da arte de encenar, de criar sonho. Por isso, com esse episódio VII, o público se torna uma espécie de voyeur que apenas observa à distância um espetáculo marcado pela pirotecnia e o enfado. J.J. Abrams consegue a façanha de transformar o cinema num “lugar onde ignorantes são convidados a ver sofredores”, para citar um axioma de Platão a respeito do teatro que me parece bastante adequado aqui.

Também marca presença nesse novo filme os velhos clichês de sempre. E como é cansativo, caro leitor, o óbvio sendo jogado na sua cara o tempo todo. É como se Hollywood simplesmente não conseguisse superar as velhas e novas questões geopolíticas dos EUA e o sentimetalismo barato das soap operas para fazer do cinema o território do pastiche fuleiro, repleto de alegorias desgastadas e cenas desnecessárias. A Primeira Ordem remete claramente aos nazistas com sua indumentária e gestual, e para não deixar qualquer dúvida até para o mais desavisado fã, o diretor ainda arruma um general galego com sotaque germânico para comandar da tropa. Já o vilão da hora, Kylo Ren, traz o ar muçulmano materializado em sua máscara de contornos prateados, que me remeteram a arabescos, e no traje de beduíno. Isso para não falar – e aqui vai um spoiler – no fato de que ele é o filho-rebelde “mamãe não me deu meu All Star” de Han Solo e Leia, e, como você deve imaginar, rola todo um sentimentalismo meloso. A conclusão desse arco, por sinal, é pra lá de óbvia: no que o senhor acha que deu o encontro de um papai “não faça isso, eu te amo” com um filho “eu sou malvadão mesmo e tenho sangue nos olhos!”? Para mim, num ultraje. A morte de Han Solo foi um desrespeito não só a um personagem importante em toda a construção da história, mas à saga inteira! Poderia dizer que foi o assassinato do personagem certo na hora errada e da forma mais errada possível. Patético...

E o que dizer da protagonista Rey, uma catadora de lixo – na verdade de bugigangas eletrônicas que troca por comida – largada num planeta decrépito que de uma hora para outra se torna arquétipo de amazona da Força? Um desastre, meu camarada! Como pode a Força se revelar assim por pura conveniência, de modo absolutamente involuntário, como se fosse uma simples manifestação fisiológica do corpo, feito um arroto ou uma sede repentina, quando o domínio desta a energia que envolve os seres vivos nasce justamente de inverso do orgânico: do árduo treinamento e da disciplina implacável? É um personagem imbuído de uma metáfora tão pobre sobre a vocação e o destino que dá raiva. Raso e autoexplicativo como personagem de novela da Globo. E ficarei por aqui, porque se me alongar para comentar tudo o que me desagradou, isso deixará de ser uma carta e se tornará uma dissertação.

Eu até entendo a ideia de J.J. Abrams em “rejuvenescer a franquia quase quarentona Star Wars, apresentando-a para uma nova geração sem esquecer dos fãs maduros”, como diz Érico Borgo em sua crítica no site Omelete. Mas, o grande enigma para mim é: será que precisamos mesmo de uma nova trilogia de Star Wars? Obviamente que não, porque nada justifica macular o legado de uma obra que revolucionou a história do cinema, delimitou um novo imaginário e marcou gerações. Contudo, o que me interessa não é a obviedade – mais uma – desta resposta, e sim seus desdobramentos mais subjacentes e incômodos. De tal forma, penso que a “profanação” desse universo cultural chamado Star Wars denuncia o empobrecimento criativo que vivenciamos hoje, a presentificação do passado na forma de produtos culturais dotados de “memória” que dão a ilusão do vintage, do distanciamento e da novidade ante a produção atual marcada pela lógica do mercado e do descartável, e, sobretudo, denuncia o quanto foi reconfigurado o velho esquema que atrelava o consumo – inclusive de bens culturais – às obrigações da diferenciação social e o vincula agora à busca de experiências, ao fomento de modos de vida intercambiáveis e à sensação de pertencimento a uma coletividade que garanta ao indivíduo descentrado, midiático e hedonista de nossos tempos alguma identidade embalada numa pacotilha cool. Pois, como dizem os sociólogos Lipovetsky e Serroy, “o consumo com componente estético adquiriu uma relevância tal que constituiu um vetor importante para a afirmação identitária dos indivíduos”[1]. E quem não quer fazer parte do delírio coletivo, sentir o glamour da apreensão fashionista de um consagrado artigo de época? É um espetáculo triste de se testemunhar.

Por todas estas questões, meu caro leitor, só me resta torcer para que os dois próximos episódios salvem o que este conseguiu destruir. J.J. Abrams me deu pouquíssimos elementos para inferir o que virá na sequência – somente a aparição de Luke, que foi de arrepiar, diga-se. Contudo, sendo pragmático e trabalhando com o que me foi apresentado, sinto um grave desequilíbrio na filmografia Star Wars que será extremamente difícil de equalizar. Espero estar redondamente enganado. É esperar para ver.

Cordialmente,

Bruno Vitorino



[1] LIPOVETSKY, Gilles e SERROY, Jean; A Estetização do Mundo: Viver na Era do Capitalismo Artista, Companhia das Letras, 1ª edição, São Paulo, 2015, pág. 31.

domingo, 13 de dezembro de 2015

Playlist de Editores: Dezembro/2015


No ar mais uma coluna “Playlist de Editores”! Como de praxe, cada editor do Variações para 4 comenta o disco que vem monopolizando sua atenção e seus ouvidos com o intuito de compartilhar com os leitores experiências de escuta.

Boa audição!


- Rógeres Bessoni:



Este mês, voltei a fazer jornadas pelo (para mim e para muitos) bom, grandioso, glorioso e abissal rock progressivo. Estou agora entrando numa obra sugestiva, rica e épica, o disco 666 [The Apocalypse of John 13/18] da banda Aphrodite's Child. O disco, lançado em 1972, é uma viagem através do Apocalipse, alternando musicalizações e declamações de várias passagens dessa obra a um só tempo religiosa, esotérica e literária, que é um dos textos mais enigmáticos e fascinantes que o Ocidente herdou. A banda, só por sua formação, me chamou a atenção quando ouvi falar dela pela primeira vez. Nela estavam nada mais, nada menso que o greco-egípcio Demis Roussos, antes do seu sucesso como cantor romântico nos anos 70, e Vangelis, antes das suas experiências com música eletrônica que o consagrariam como um dos nomes mais relevantes da música instrumental dos últimos 30 anos do séc. XX. Junto a eles, o baterista Loukas Sideras segura as levadas com precisão e habilidade, fazendo um “tapete” inventivo e seguro. Neste disco, juntou-se a eles ainda o guitarrista Silver Koulouris. Fiquei curioso para conhecer a fase rock and roll e, ainda mais, progressiva, de Roussos e Vangelis, e terminei mergulhando numa extraordinária expressão do progressivo. Comecei pelo fim: “666” foi o último disco da banda. Sugiro essa jornada sonora, principalmente aos interessados no bom progressivo. Do “666”, destaco The Four Horsemen, em que é musicada a passagem apocalíptica que descreve os quatro Cavaleiros. 

Abaixo, segue o áudio para ouvir o disco na íntegra, no YouTube. A obra da banda também está disponível para download no site Muro do Classic Rock.





- Bruno Vitorino:



Thelonious Sphere Monk. Esses três nomes se traduzem para mim como uma referência musical absoluta que revisito, com reverência e muito respeito, sempre. Em minhas recentes andanças por sua discografia, quedei-me mais uma vez inteiramente fascinado pelo seu clássico álbum “Brilliant Corners”. Gravado em 1956 pelo selo Riverside, o disco marca um novo momento na carreira do pianista. Depois dois discos inteiramente voltados para os standards, seguindo uma estratégia comercial traçada pelo produtor Orrin Keepnews para quebrar uma injusta pecha de “louco idiossincrático” que pairava sobre o músico, Monk finalmente recebia carta branca para gravar um disco com suas composições “estranhas”. O resultado é uma obra-prima.

Brilliant Corners, tema que abre e dá nome ao disco, é simplesmente uma masterclass de engenharia harmônica, ousadia estética e pessoalidade na construção das formas. Poucos estavam preparados para encarar uma composição de trinta compassos que quebrava o padrão AABA; apresentava uma progressão incomum cheia de cromatismos descendentes e “esquinas” (na ponte: Am7 / D7 / - / G7 / Gb7 / B7 / E7 // Am7 / Ab7 / G7 / Gb7 / F7), além de um ritmo harmônico irregular; trazia uma melodia forjada em intervalos angulosos e paralelismos; e, ainda de quebra, dobrava o andamento após o giro na forma. É possível ouvir os músicos lutando com o tema, buscando entendê-lo e procurando improvisar em sua plataforma hostil. Há também a lindíssima balada Pannonica, que Thelonious escreveu em homenagem a sua grande amiga e confidente Kathleen Pannonica, a qual poderíamos descrever parcamente como uma “rebelde com causa” oriunda da aristocracia inglesa que se inseriu e apoiou (inclusive financeiramente) figuras proeminentes do jazz moderno. Um tema difícil de tocar, de complexa arquitetura, em que a melodia se entrega aos acordes com uma delicadeza tão poética e rara... Uma composição que, no fim das contas, atesta não somente o gênio criativo de um artista por muito tempo incompreendido, mas também o quão imensurável é o poder expressivo da música. E ficarei apenas nestas duas faixas para não me alongar mais do que já me alonguei.

Simplesmente escute. É um disco obrigatório!




- Fernando Lucchesi:


        
Talentosíssima cantora de soul music/pop dos anos 1960, a britânica Dusty viveu um relativo ostracismo até ser resgatada por Quentin Tarantino, que incluiu uma das suas grandes músicas na trilha sonora de Pulp Fiction. O disco inicia com o pop singelo e inocente de I Only Want to Be with You, segue com a epicamente dramática You Don´t Have to Say You Love me e chega na beleza melancólica de Son of a Preacher Man. Essas três músicas são, sem dúvida alguma, as grandes músicas do disco e possivelmente os maiores sucessos dela. No entanto, o disco está repleto de grande faixas e arranjos vocais da melhor música soul e do pop, como I Just Don´t Know What to Do with Myself (regravada pelo White Stripes), The Look of Love e Wishing and Hoping.



- Giba Carvalho:



Minha indicação sonora deste mês é um retorno de 16 anos no tempo. “Cantoria de Festa” foi lançado em 1999 pela Kuarup Discos e é uma verdadeira aula de interpretação de diversos ritmos peculiares ao Nordeste brasileiro. Do Xote ao Rastapé, do Baião a Ligeira, do Galope ao Coco e do Rojão ao Galope, recebemos uma aula de um dos maiores intérpretes vivos no mundo que é Xangai.

Este trabalho é uma imensa homenagem a vários compositores que fazem a história da música nordestina perpetuar-se no tempo. Algumas figuras bastante conhecidas como Déo do Baião, Capinam, Jacinto Silva, Marinês e o Mestre Jackson do Pandeiro se fazem presentes no disco. E outras, que hoje em dia, são muito importantes como Juraildes da Cruz e o grande Maciel Melo.

Nóis É Jeca Mais É Jóia de Juraildes quase deu o nome ao trabalho e abre o disco com um imenso destaque. Não É Brincadeira, de Maciel Melo, vem com um arranjo belíssimo e um bandolim único. E, não poderia deixar de citar duas versões da obra do Maior de Todos. A Função e Clariô do Mestre Elomar Figueira Mello, este gênio supremo da música brasileira.

O trabalho foi produzido por Mário de Aratanha e Xangai, teve os arranjos elaborados no detalhe por João Omar (virtuoso Maestro e Violonista que é filho de Elomar) e Xangai e tem participações de nomes como o de Armandinho no Bandolim e Osvaldinho do Acordeon. Aqui para nós...não tem como ficar ruim.

Convido os senhores e senhoras para esta viagem pela música nordestina.





- André Maranhão:



Estou ouvindo “The Hour of Separation”, álbum lançado de modo independente e assinado por Joseph Tawadros, um grande alaudista copta, nascido no Egito e radicado na Austrália desde os seus três anos de idade.

Recomendo o disco não apenas porque Joseph Tawadros nos brinda com o som do seu alaúde, combinado com o riq de seu irmão caçula James, mas pelo fato de o trabalho também revelar boas confluências entre sonoridades árabes, do Norte da África, jazzísticas. E para referendar todo esse projeto, ninguém menos do que John Patitucci (baixo); John Abercrombie (guitarra) e Jack DeJohnette (bateria) dividem as faixas com Joseph Tawadros, imprimindo mais riqueza, virtuosismo e variações melódico-harmônicas.

Meus destaques vão para as faixas Gare de L’Est; Give or Take; Forbidden Fruit (momentos que podem nos lançar em uma verdadeira encruzilhada de timbres, despejados em compassos bastante envolventes); além da riquíssima construção melódica de The Hour. Recomendo também ouvir os trechos onde a guitarra de Abercrombie cresce, combinada com modos orientais em Phoenix; e Rose; o solo de Patittuci em In the Stars. Finalmente, para os mais interessados em momentos mais meditativos, indico as faixas The Black Forest; Nostalgia in D; Promise, belamente acentuadas pela estética dos modais de Tawadros.

domingo, 6 de dezembro de 2015

Variações em 5/4: Continuidade dos Parques




Na coluna deste mês, os editores do blog comentam o disco de estreia da banda Dônica, “Continuidade dos Parques”.

Boa leitura!


- Giba Carvalho:

Calma, senhores! Muita calma! É exatamente isto que peço aos leitores e futuros ouvintes de “Continuidade dos Parques”, o primeiro trabalho da Dônica. A banda é formada por Zé Ibarra (vocal e teclados), Lucas Nunes (guitarra), André Almeida (bateria), Miguel Guimarães (baixo) e Tom Veloso (violão). É justamente por este último nome que já podemos abrir um pouco o leque sobre a fama repentina dos garotos. Tom Veloso é filho de Caetano Veloso e principal compositor da banda (assina 9 das 11 músicas do disco). No entanto, não participa das apresentações ao vivo do grupo, tornando-se um mero espectador. Estranho? Confesso que sim.    

Apadrinhada por Milton Nascimento (que participa na canção – Pintor no Álbum) a Dônica surge no mercado nacional como salvação e está muito longe disso. O apadrinhamento por parte de grandes artistas é muito mais normal do que se possa imaginar. Notadamente, a partir dos anos 70, tais atitudes tornaram-se mais corriqueiras. Nada que se compare ao efetuado por Caetano e Chico Buarque na década de 80, quando levaram várias bandas do dito rock nacional a diversos programas de televisão da época e, principalmente, a Gilberto Gil quando “afirmou categoricamente” ter descoberto Chico Science & Nação Zumbi nos anos 90. Basta um pouco de curiosidade para sabermos que a verdadeira história foi bastante diferente disto e afirmação do compositor baiano não passou de mais uma grande jogada oportunista ao perceber o potencial dos pernambucanos. E, não poderia esquecer, do próprio Milton Nascimento e sua parceria pífia com o RPM nos anos 80 de onde surgiram essas “duas belezuras”:






É óbvio que seria injusto de minha parte comentar o trabalho dos rapazes do Dônica unicamente pelo apadrinhamento. Mas, que isto é um imenso diferencial, é fato. Por exemplo – pouco antes do lançamento do álbum, já saiu na imprensa que os rapazes estavam num “retiro” para composição do primeiro álbum (???) e que dariam entrevistas por email para não atrapalhar o processo. Questiono: “Qual outra banda iniciante teria tanto espaço na mídia se este fato não fosse tão relevante? ” E depois de ouvir o produto final afirmo – “Muita frescura para pouco resultado. ” É bem verdade que os rapazes tocam bem. Mas de que adianta tocar bem se suas letras não dizem absolutamente NADA? Os arranjos são um emaranhado de inúmeras vertentes e, de tão misturados, não formam a personalidade própria para o grupo. Soma-se a isto o que já havia comentado num texto anterior sobre Mallu Magalhães: atualmente os artefatos tecnológicos fazem com que qualquer Zé Mané possa gravar um disco. No caso específico da Dônica me parece que uma banda jovem (como inúmeras outras), que faz um som café com leite (ainda) e que vem recebendo atenção (que não merece) pelos laços sanguíneos.

Torço, honestamente, para que futuramente não tenha que ler declarações pretensiosas como esta: “Ser rock progressivo é ser tanta coisa diferente ao mesmo tempo. Ele junta as aventuras psicodélicas à harmonia do jazz, aos timbres da música eletrônica, ao metal, ao folk e a inumeráveis mais estilos''. Até porque, trata-se apenas de uma banda iniciante, em busca de sua personalidade (espero honestamente que estejam), que não diz quase nada no primeiro trabalho (fora o fato de tocarem bem seus instrumentos) e que visivelmente pulou etapas na sua formação.

Por outro lado, é um prato cheio para os cabeçóides que afirmam ser fãs do Clube da Esquina e na verdade não sabem nem o que de fato foi “O Clube”. E o que ele representa para a música mineira e brasileira.


- Rógeres Bessoni:

Ouvir o trabalho de uma banda estreante sempre produz uma indagação, para mim, instigante: será a banda efetivamente nova, ou trata-se de uma banda apenas recente, mas que não conseguirá transpor os territórios já conhecidos? Ouvir o primeiro trabalho de Dônica me deixou com uma sensação dúbia, misto de muito prazer e gratidão pela nossa herança musical recente, do Brasil e de fora, com o incômodo de estar tendo um prolongado déjà vu. Trata-se de um trabalho indiscutivelmente bem tocado (embora os vocais não convençam nem empolguem tanto) - talvez seja a melhor banda brasileira que ouvi nos últimos anos em matéria de qualidade instrumental. Significa muita bagagem o fato de os caras, todos muito jovens, entrarem de cabeça com um som tão bem construído. Mas uma angústia me acompanhou ao longo de todo o disco. Uma agonia por, de fato, parecer que não vamos nunca conseguir sair dos anos 70. Não me restaram dúvidas de que os integrantes gostam de muitas das músicas e bandas que eu também gosto. São inúmeras referências vindas do progressivo – aliás, é muito bom ouvir um trabalho de tão bom progressivo saindo da uma galera tão nova -, muitos elementos dos melhores músicos e dos melhores cantores brasileiros dos anos 60 e 70. Mas em diversos momentos o som é “tão” Clube da Esquina (por exemplo) que pra mim vai muito além da referência e mesmo da releitura: soa como uma repetição, mesmo, repetição de padrões que já foram extraordinariamente bem realizados pelos seus criadores.

Eu sei muito bem como é difícil conservar a essência mas se livrar do formato de todas as suas influências logo nos primeiros voos. A vontade de “ter feito aquela canção” pode facilmente se converter na armadilha de fazer uma canção que é praticamente “aquela”. No afã de tocar tudo o que se gosta, corre-se o risco de aplicar grande talento na repetição dos modelos cunhados pelos mestres. Se é possível ouvir em Praga (disparado a melhor do álbum) elementos que me lembraram Lô Borges, Jethro Tull (Thick as a Brick, mais especificamente) e Genesis, vejo a banda, por enquanto, com muito potencial para o novo, mas ainda precisando atravessar alguns ritos de passagem, talvez. Ou, quem sabe, precisem simplesmente ter vontade, se precipitar na fúria criativa, assumir a coragem de “não ter nada a ver com a linha evolutiva da música popular brasileira”, com fez Raul, abrir mão da zona de conforto e dos elogios fáceis dos saudosos. A matéria prima é da melhor qualidade, mas por enquanto só demonstram o que aprenderam (e foi bem aprendido). Seria muito bom que a banda se mantivesse agregada e amadurecesse na estrada, que ganhasse peso (não necessariamente no som, mas isso também seria bem-vindo), que aprimorasse as letras e os vocais e se dispusesse a traumatizar as expectativas. Sobretudo, faço votos de que os caras envelheçam tocando, que ganhem peso existencial, porque esse talento, associado a densidade e ousadia revolucionária, pode render coisas realmente preciosas para nossa música sul-americana.


- Bruno Vitorino:

Dônica. Nunca tinha ouvido falar dessa banda, jamais tinha escutado o que quer que seja que tocassem, mas já não gostava dela. E não era um não gostar superficial, que se esquece facilmente numa primeira distração. Porra nenhuma! Era uma antipatia contundente e irracional que se materializava diante de mim como uma obrigação moral imposta pela Providência, canalizando toda a rabugice de minha alma precocemente senil e ranzinza. Mas, a culpa era só minha, inteiramente minha. Os meninos nada tinham a ver com minhas escolhas. No caso, uma má. O fato é que tomei conhecimento da existência da banda, de bobeira, ao ler uma matéria terrível do Jornal do Commércio entitulada “Banda do filho caçula de Caetano Veloso, Dônica cria um novo Clube da Esquina”. “Puta que pariu!”, lembro de ter mentalmente exclamado. Mais uma banda de “filhos de” que se vale do capital social da linhagem célebre para se promover no mercado e se lançar como a mais nova sensação redentora do momento. Paciência, como você pode perceber, leitor, não é uma de minhas virtudes. Enfim, li o texto, prometi a mim mesmo, de joelhos no milho, que jamais voltaria a ler qualquer caderno de cultura dos jornais recifenses, e deixei que o tempo apagasse de minha memória a contrariedade que tive.

Meses depois, chego em casa cansado do trabalho, querendo apenas me jogar no sofá e não pensar em nada. Ligo a TV. Primeiro dia do Rock In Rio. Banda de abertura: Dônica. “Taí uma boa oportunidade de conferir”, pensei. E que surpresa! Vi uns pirralhos de, no máximo, 20 anos de idade apresentando canções com uma riqueza tão inesperada que não consegui desviar minha atenção. Havia melodias de desenhos interessantes, progressões de acordes que denunciavam um conhecimento de harmonia funcional além do básico (IIm7 – V7 – Imaj7) e muita pesquisa, letras que buscavam se reconectar ao que existe de melhor no cancioneiro popular do país e uma curiosa mistura de empolgação adolescente, domínio de palco e medo ante a responsabilidade de dar o pontapé inicial numa megafranquia da indústria do espetáculo - o Rock in Rio é mais do que um festival, é uma marca, beleza?. Ri alto. Lembrei da matéria que tinha lido e pensei, sem qualquer espanto, como os críticos daqui têm a capacidade de enaltecer o irrelevante e de negligenciar o fundamental. Talvez porque muitos deles – dizer “todos” seria uma crueldade incompatível com a modéstia que rege meus modos –, não sabendo a diferença entre nota e acorde, jogam suas impressões superficiais baseadas em achismos sobre os textos pré-formatados que as assessorias de comunicação dos artistas mandam, a preço de ouro, para as redações dos periódicos. Ao invés de análises estéticas, problematizações e apontamentos interessantes sobre o trabalho artístico, recebemos dos jornais um guia de consumo que mistura informação, entretenimento e tendências. Mas, voltado à apresentação da Dônica, fiquei ainda mais pasmado com a qualidade dos meninos enquanto músicos, a destreza que demonstravam ter no manuseio de seus instrumentos e a capacidade que tinham de se comunicar no mundo objetivo da forma musical. Era de botar muito marmanjo com anos de estrada no bolso. O jovem Miguel Guimarães tocando um Fender Jazz Bass Jaco Pastorius, fretless, com desenvoltura e segurança, construindo belas linhas, deu-me mais do que alegria: esperança. Tudo bem que eu acabei dormindo no meio de Pintor... Mas vamos por a culpa no cansaço acumulado da semana.

“Continuidade dos Parques”, disco de estreia da Dônica, traz um bocado do que vi ao vivo pela tevê, contudo a suposta vantagem do ambiente controlado do estúdio fez com que aquela espontaneidade do palco se perdesse em lufadas de “egolombra” e intelectualidade nonsense. Talvez por causa do afã em se mostrarem artisticamente maduros, por conta da ímpeto em registrar, sem filtro, todas as idéias que tinham para uma canção ou até devido à necessidade de aderirem à lógica do “cabeça não convencional”, o disco termina por cair numa redoma jovem-cult meio irritante. E quando Milton Nascimento, o amigo de papai, aparece justamente em Pintor consigo até mesmo ouvir os suspiros mais enternecidos, ver as faces mais lânguidas de poesia e encantamento. De qualquer forma, é um disco de estreia promissor. E se considerarmos que são apenas crianças, podemos ainda torcer para que a Dônica não se deixe levar pelo oba-oba delirante de mídia e público e revele todo o potencial que demonstrou ter de cara. É apenas uma questão de ter calma, focar na música e superar seu esforço um tanto quanto forçado em parecer setentista.

Avante, gurizada!


- André Maranhão:

O primeiro álbum da banda Dônica, “Continuidade dos Parques”, emerge como um trabalho feito por jovens entre 18 e 20 anos que estudaram juntos na Escola Parque do Rio de Janeiro. A pouca idade (em termos cronológicos) de seus integrantes, de modo algum diminui a importância de suas musicalidades. Por sinal, os rapazes conseguem imprimir um som tecnicamente seguro, demonstrando uma excelente consciência harmônica e uma boa capacidade de nos conduzir para bons percursos melódicos, referendados por suas ligações com o rock progressivo e matizes emepebistas, muito patentes no disco.

Algumas vezes o som de Dônica pode parecer incomunicável e por demais intelectualista; condição que levou o próprio Caetano Veloso (pai de um dos integrantes do grupo) afirmar que a música deles tinha “muitos acordes” e era “complicada”. Por outro lado, creio que essa complexidade no disco não é algo ruim no trabalho, mas um ponto válido a ser lapidado, sobretudo se lembrarmos do quão a nova safra da MPB e da música alternativa brasileira tem sido protagonizada por uma legião de artistas ingênuos e superficiais. Não bastasse, ninguém menos do que Milton Nascimento apadrinhou a banda!

Para cumprir a ordem do disco, meus primeiros destaques vão para É Oficial e Casa 180, cujos timbres estão centrados na interessante habilidade pianística de José Ibarra (também presente na instrumental Inverno) e em cores que podem sugerir um contato profícuo com a música mineira do Clube da Esquina. A última faixa do disco, Assuntos Bons, além de sutil, parece acenar para a influência de Caetano, onde Tom Veloso importa o aspecto do violão de náilon e o som eletroacústico, fundido por guitarras distorcidas e percussões, em uma sonoridade muito bem encaixada. “Continuidade dos Parques” é um disco bom e que marca acento para uma turma bastante promissora.


- Fernando Lucchesi:         

É fato que a banda ganhou notoriedade em virtude da presença do filho mais novo de Caetano Veloso (assim mesmo, apenas como compositor, pois ele raramente participa das apresentações ao vivo). O fato é que não encontrar influência de Caetano Veloso nas atuais bandas de pop/rock é difícil. Há uma clara influência do compositor baiano. Influências à parte a que mais se sobressai no som da banda é a do Clube da Esquina. Além disso, há muita referência e reverência ao rock progressivo setentista.

O disco abre com a interessante Casa 180, uma mistura de Morais Moreira cantando com harmonias do Clube da Esquina e um refrão bem pegajoso. Bicho Burro segue a mesma linha. O maior problema do disco é que as músicas, em sua maioria, são muito parecidas. Dá a impressão de que se você ouvir duas ou três músicas ouviu o disco todo. Outro ponto negativo são as músicas longas demais com solos que trazem o pior do rock progressivo e tornam maçante o som (Retorno para Cotegipe, Praga e Inverno estão nessa classificação). Carrosel parece ser a faixa que melhor exprime a ideia do grupo, com sua melodia envolvente e muito bem estruturada.

Trata-se de um disco de estreia muito bem executado tecnicamente, mas com ideias musicais ainda confusas.


terça-feira, 1 de dezembro de 2015

O Efeito João do Morro - Por André Maranhão

O cantor João do Morro. Fonte: Google Imagens.


Pelo visto, João do Morro irá do céu ao inferno em dois tempos. Ao menos em algumas esferas, onde antes parecia bastante louvado. Pessoalmente, nunca gostei dos seus trabalhos; aliás, para mim (e creio que para muitas pessoas), nunca foi uma novidade que seus discursos estiveram marcados por óticas extremamente machistas, violentas, de baixo calão. Como resultado, suas canções hoje arrebatam legiões de simpatizantes em um estado tão violento como o de Pernambuco, sobretudo na Região Metropolitana do Recife – eixo onde João do Morro parece dispor de um alcance mais forte, movendo milhares de seguidores em seus palcos e trios elétricos.

No entanto, é preciso recordar que o “signo” João do Morro não surgiu por acaso e nem espontaneamente; o mesmo foi empoderado aos poucos, referendado em círculos da cena artística local que o celebraram em videoclipes, festivais, e logo correram afobados para rodar documentários sobre aquele “fenômeno”; artista também carregado por governos e prefeituras “populares” e que não caiu de paraquedas em programas esportivos da TV à toa – hoje posando de “figura do povo” e tecendo análises sobre os desempenhos de Náutico, Santa Cruz e Sport, regadas a muitos caldinhos. Em outros termos, João do Morro foi um produto construído estrategicamente por grupos determinantes da cultura de Pernambuco, que hoje parecem coçar a cabeça com a encrenca em que se meteram, ainda mais após o artista ofender sumariamente a presidenta Dilma Rousseff. O Partido dos Trabalhadores, por sua vez, marcou posição e lançou um texto em repúdio ao cantor, descambando na problemática da violência contra a mulher e em todos os males que a mesma tem causado à sociedade. Uma resposta, diga-se de passagem, pertinente e legítima do PT.


Por outro lado, penso que a construção midiática e os patrocínios em torno de João do Morro são parte de uma armadilha que me incomoda bastante: a inversão radical promovida pela crítica / produção cultural, capaz de muitas vezes tratar um artista de “periferia” como o expoente mais legítimo e sincero da “cultura popular”. Esse tipo de lógica além de arriscada, pode se converter em algo ainda mais impreciso e implodir aos poucos, sobretudo quando envolve uma figura como João do Morro, alavancado sob a retórica de ser uma grande alternativa diante de outros estilos e linguagens da arte supostamente considerados “burgueses”, “pedantes”, ou “elitistas”, ou seja, simplesmente achincalhados por se tratarem de gêneros de uma dita “dominação” e ou “alienação”. O resultado disso foi um tiro no pé, pois um nome como João do Morro, ao cair no colo desse discurso de “verdade do povo” e do retrato de suas “lutas”, passou a ser endossado pelos principais jornais pernambucanos – jornais que muitas vezes pintam um artista que vem da “periferia” ou da “massa” como alguém automaticamente isento de reprodutivismos da cultura. Consequentemente, o erro desse tipo de cálculo, mais cedo ou mais tarde não deixou de aparecer, na medida em que alguém como João do Morro, antes já conhecido por cantar “Quer mamar, vá pra debaixo do burro”; “as nega endoida”; "Não me diga que uma tatuagem; é sinal de puta" ou “Vou chamar a Polícia Militar – É pau!”, retoma o seu discurso agressivo, taxativo (e agora ainda mais polêmico) ao pedir a Santo Antônio que “arrume uma macho pra Dilma”; ou ao chamá-la de “chupa charque”. É claro que tudo isso só me leva a discordar ainda mais desse tipo de enunciação articulada por João do Morro. No entanto, não devemos esquecer que além de segmentos da produção, crítica e imprensa locais, o cantor é parte de uma sequela que foi gerada por políticos e gestões de esquerda em Pernambuco, outrora quando cacifaram o próprio João do Morro e praticamente o tomaram como um “vanguardista das vozes populares”. Ora, ninguém precisa bancar o Peter Bürger pra saber que canções capazes de coisificar as mulheres, os negros e evocarem a violência policiesca não são sinônimos de vanguarda nem de relevância estética. Porém, as autoridades parecem ter acreditado nisso, ou tapeado muita gente reproduzindo esse tipo de delírio.

Para finalizar, creio que o Efeito João do Morro não deixa de remontar aos trabalhos de Norbert Elias sobre o conceito de civilização – para ele um constructo sociohistórico, um processo marcado por relações e desenvolvimentos de políticas higienistas que nos cercam, através da oficialização de espaços “liberados” para vertermos nossas emoções, quando, na realidade, as mesmas não deixam de ser controladas por dispositivos. Em outras palavras (e transpondo esse paralelo para hoje), não esqueçamos que apesar de ser muito digno opor-se às violências das canções de João do Morro – artista que descreve Dilma como alguém que “bota em nosso cu” – não esqueçamos que há anos atrás (e até mesmo há meses), outras tantas personalidades e baluartes da cena artística de Pernambuco estavam em blocos satíricos a cantar sobre os palcos “multiculturais”, bancados pelos cofres públicos e agradando centenas de intelectuais, com paródias que envolviam Oscar Niemeyer “comendo a mãe do presidente” (Lula); chamando cantoras da MPB de “cola-velcro, testemunhando a voz de mulheres supostamente traídas que chamariam “o negão pra resolver”; ou na senda dessa turma que afirmava que iria “botar no cu” de uma série de prefeitos, vice-prefeitos, vereadores, deputados, dentre outros – tudo isso, justificado sob o álibi de apenas tratar-se de uma “brincadeira de Carnaval” (leia-se, de um lugar apropriado para situações de licenciosidade controlada), como também, de um espaço bastante pautado por muita hipocrisia no ar, é claro!