domingo, 16 de março de 2014

O Lobo de Wall Street - por Fernando Lucchesi


É difícil discordar quando se fala que Martin Scorcese é um dos maiores diretores de cinema vivo. Mas certamente você já viu “O lobo de wall street” antes, inclusive dirigido pelo próprio Scorcese. A estrutura narrativa do jovem que começa de baixo, passa por uma ascensão meteórica na carreira e depois vê-se às voltas com a polícia, pois o crescimento profissional se dá por meio de crime, o diretor já havia usado em pelo menos dois filmes: “Os bons companheiros” e “Cassino”. Mas o que um grande diretor faz? Recicla a estrutura narrativa, mas utiliza um novo ambiente e cria personagens com perfis psicológicos diferentes.

“O lobo de Wall Street” narra a história de Jordan Belfort, um trambiqueiro de alto nível e de poder de convencimento extraordinário. Após ser demitido e desiludir-se com o esquema regular de venda de ações em Wall Street, Jordan percebe que há um nicho não explorado no mercado de pessoas de baixa renda e que estão dispostas a investir em empresas sem nenhum respaldo do mercado. A capacidade de Jordan transformar completos “losers” em brilhantes vendedores de ações faz com que a imprensa especializada o apelide de “O lobo de Wall Street”, tamanha a voracidade com que a sua empresa consegue cooptar investidores que não dispõem de recursos para investir na maior bolsa de valores do mundo. Obviamente, o enriquecimento fulminante de Jordan atrai os olhares do FBI, que começa a investigar como ele pôde enriquecer tão rápido.

Atrelado ao dinheiro vêm os excessos. A vida de Jordan e de seus sócios é de um hedonismo permanente: orgias diárias, consumo de álcool e drogas em quantidades industriais, uso de animais e anões para festejar os lucros, iate, mansões, festas, etc. Tudo isso para vermos a derrocada de Jordan e dos seus parceiros. Com um filme de três horas de duração Scorcese tem tempo de trabalhar em cima da psicologia dos personagens. Leonardo Di Caprio está, possivelmente, no papel que marcará sua carreira daqui pra frente. A cena do “lobo” tentando subornar um agente do FBI é uma das cenas mais hilárias e carregadas de cinismo dos últimos anos. Jonah Hill como Donnie Azoff, braço-direito de Jordan, também nos dá uma atuação não menos que brilhante (a prótese dentária bizarra é quase personagem do filme de tão engraçada e exagerada que é!). Dignas de nota também as hilárias aparições de Matthew McConaughey, como o mentor cheio de tiques de Jordan e Rob Reiner, um dos pais mais estressados da história do cinema.

O grande “senão” do filme reside na sua mais que longa duração de 3 horas. É perceptível que com uma hora a menos de filme a trama poderia ser desenvolvida. A colaboradora regular de Scorcese, Thelma Schoonmaker consegue mais uma excelente edição, porém, com três horas de duração, nem o talento dela consegue esconder o final arrastado. Evidentemente, isso não tira o mérito desse misto de comédia de humor negro e drama. Podem ter certeza: Scorcese, se não nos entregou sua obra-prima, certamente nos deu mais um clássico.  

Alguns breves comentários sobre o Oscar:

Originalmente, no texto sobre “O lobo de Wall Street” havia o comentário de que Leonardo di Caprio possivelmente ganharia o seu primeiro Oscar. Por razões operacionais do Blog, o texto só foi publicado após o carnaval. No entanto, continuo com a mesma opinião: Ele merecia mais do que Matthew McConaughey. O que acontece é que a Academia é aficionada por trabalhos em que o sacrifício físico também esteja presente, como foi o caso de McConaughey e do também vencedor de ator coadjuvante Jared Leto. Também como coadjuvante não achei ele melhor do que Jonah Hill (O lobo de Wall Street) e nem do que Michael Fassbender (12 anos de escravidão).

“Gravidade” mereceu muito os prêmios que ganhou na parte técnica. É um filme realmente bem produzido e uma história bem interessante. Se houvesse o prêmio de “melhor aparição” George Clooney mereceria vencer. Alfonso Cuarón teve seu mérito pelo esmero da produção, mas acho que o prêmio deveria ir para Scorcese ou David O. Russel (possivelmente o melhor diretor de elenco da atualidade). 

Acho ótimo que filmes de menor orçamento integrem a lista por conter histórias interessantes (ex: Nebraska, Philomena, Her), mas a minha sensação é que eles estão ali somente para colocar mais do que 5 candidatos a melhor filme. Tanto que, à exceção de “Her”, nenhum dos outros dois ganhou um Oscar sequer (embora sejam bons filmes).

domingo, 9 de março de 2014

Variações em 5/4 - Random Access Memories



Nesta segunda edição do ano na coluna “Variações em 5/4”, os nossos editores comentam um dos trabalhos mais premiados de 2013: “Random Access Memories” da dupla Daft Punk.

- Fernando Lucchesi:

Não conheço praticamente nada do Daft Punk.  Acho que excluindo “One More Time” não conheço mais nada deles. Dito isso, como o tema deste “Variações em 5/4” era o Daft Punk e o enorme sucesso que eles obtiveram na última edição do Grammy Awards decidi falar especificamente sobre o disco “Random Acess Memories”, álbum que está na lista de melhores do ano passado em praticamente todos os meios de comunicação.

Reconheço de início que é um disco excelente, muito acima da média do que é produzido hoje. No entanto, é um disco que pode enganar quem procura 13 músicas do calibre pop de “Get Lucky” (indiscutivelmente um dos maiores sucessos radiofônicos de 2013). O disco oscila muito entre um revisionismo da chamada disco music e um som eletrônico mais contemporâneo. E é nesse som eletrônico contemporâneo onde reside o maior problema do disco.
 
O ponto alto do disco são justamente as músicas que buscam resgatar a disco music dos anos 70.  Muito espertamente, os dois músicos franceses chamaram um dos precursores daquela guitarra suingada característica da disco, Nile Rodgers (ex-integrante do Chic). Não à toa, as faixas mais dançantes do disco contém a guitarra de Rodgers: “Give Life Back to Music”,”Lose Yourself to Dance”  e a contagiante “Get Lucky”. O resto do disco é bastante irregular. Traz uma justíssima homenagem a um dos artífices da música eletrônica, Giorgio Moroder (Giorgio by Moroder), a alucinante “Contact”, mas também tem coisas enfadonhas como “The Game of Love”, “Touch” e “Within”. Mas mesmo essas músicas mais lentas (feitas sobre encomenda pra o momento “chill out” da balada) não comprometem o resultado final desse disco, que merecidamente ganhou uma penca de Grammys. Já quanto à representatividade do prêmio Grammy para a música é outra história...

- Giba Carvalho:      

Random Access Memories trouxe de volta o romantismo à música eletrônica e me devolveu o prazer de ouvir um disco do gênero novamente. Thomas Bangalter e Guy Manoel de Homem-Cristo, inegavelmente, tiveram muito cuidado na produção deste álbum tornando-o um disco de fácil audição. Mesmo para aqueles, que assim como eu, repudiam tudo que foi produzido na música eletrônica de 15 anos para cá. O disco nada mais é do que um exercício de repetição do que já foi feito na época em que a música eletrônica era diferenciada dos “bate-estaca” e “ruídos” insuportáveis do que se toca nas raves. “Não é o puritanismo autêntico, é a forma autêntica de como se trabalhar a repetição”.

Tenho que destacar a guitarra funky de Nile Rodgers, que soma sobremaneira à concepção geral do trabalho e várias outras participações especiais – Julian Casablancas, na excelente “Instant Crush” e, principalmente, de Pharrel Williams nas pegajosas “Lose Yourself to Dance” (o preparo do estilingue) e “Get Lucky” (a pedrada do disco). “Giorgio by Moroder” é uma faixa muito interessante, porque inicia com um depoimento de um dos papas da música eletrônica e termina “grooviada” com o melhor das discotecas dos anos 80. Estas são o destaque do disco para mim. E, não pense você, que um trabalho bom não tem coisas desprezíveis. Em alguns pontos, a dupla parece perder a inspiração e o álbum cai muito de qualidade. “Touch”, “The Game of Love” e “Within” são dispensáveis. Outra coisa que percebo claramente é a duração do álbum (74 minutos). A meu ver muito longo e em alguns pontos, até cansativo.

Embora com estas ressalvas supracitadas, reconheço que o trabalho da dupla francesa é um belo trabalho POP e merece destaque!

- André Maranhão:

Quando lidamos com uma música marcada pela grande quantidade de efeitos eletrônicos, entramos num contexto onde o engenheiro de som e o DJ passam a ter a mesma ou até mais celebração do que os músicos. Isso é algo relativamente esperado, se levarmos em conta que no campo da arte, os indivíduos redefinem suas práticas por meio das convenções e dos recursos que cada estilo, gênero e expressão artística demandam. Neste sentido, o Acid Jazz, a Drumin’n’Bossa, o Brazilectro e o Tecno, presentes nos trabalhos de Jamiroquai, Kyoto Jazz Massive, Fernanda Porto & DJ Patife, Bossacucanova e Zuco 103 se fazem de grande valia.

O Daft Punk também parece reivindicar a importância de uma musica fortemente influenciada pelos recursos eletrônicos. A dupla francesa já foi capaz de nos brindar com Robot Rock, Harder, Better, Faster, Stronger e One More Time (grande hit do inicio da década de 2000) e agora parece ampliar sua lista de êxitos com RANDOM ACCESS MEMORIES, seu mais novo álbum. É interessante como este trabalho reúne tantas influencias que resultam em faixas soft, suavizadas pela mescla de sweeps de guitarras, breves presenças de overdrives, curtas citações de orquestras, camas harmônicas de teclados, solos de piano rhodes, falas ordinárias transformadas em vozes cantadas pelo sintetizador, linhas de baixo próximas do Funk e batidas mais próximas do Lounge – num som que pode nos remeter a ambientes como desfiles de moda, lojas de departamento e vernissages. De fato, Get Lucky – a faixa mais celebrada pelo mercado da música e pelo Grammy – foi a que mais me agradou no álbum do Daft Punk, mas Give Life Back to Music; The Game of Love; Beyond; Motherboard; Fragments of Time e Doin' It Right também têm qualidade. Apenas Touch me soou exaustiva e eu consideraria as demais faixas medianas.

Possivelmente, alguns críticos mais reativos a esse tipo de música, podem acusá-la de anti-arte, ou afirmarem que o Daft Punk é apenas entusiasta de todo o Show Bussiness e do capitalismo na arte. No entanto, essas condenações não invalidam seus méritos estéticos, pois qual o grande trunfo desse disco? Na minha opinião, o de mostrar que nem sempre o repetitivo é sinônimo de má qualidade!

- Bruno Vitorino:

Concordo com Keith Jarrett. “A arte está morrendo neste mundo, assim como o ouvir música, à medida que o mundo fica cada vez mais cheio de brinquedos e efeitos especiais. Com esta morte, virá a ruína das muitas possibilidades emotivas: beleza, ternura, profundidade, confiança, honestidade, tristeza; cheias de significado interno e cor”. Como os dois ou três loucos que acompanham meus textos devem ter percebido, sou um anacrônico. E com muito orgulho, diga-se! De modo obsoleto, ainda espero encontrar na música (e nas artes em geral) aquele instante transcendental em que tudo parece fazer sentido e que, de alguma forma desconhecida à racionalidade, conecta-me à completude e ao éter. Eu vivo dessa e para essa busca infindável que se torna cada vez mais difícil de alcançar, pois, como é sabido, tanto o conceito de Arte quanto seu propósito mudaram na nossa Civilização do Espetáculo. Essa discussão, inclusive, rendeu um debate interno extremamente saudável (quase um suco de laranja com clorofila) entre mim e André Maranhão que espero ver um dia publicado neste blog.

Dito isto, o desavisado leitor que passa os olhos por estas linhas deve imaginar o frio na espinha que senti quando Giba Carvalho propôs que comentássemos um dos trabalhos mais “hypados” pela Grande Mídia especializada em 2013: Random Access Memories do duo Daft Punk. De cara, digo que não sou conhecedor da banda. O pouco que tinha escutado, num passado longínquo, soou-me desagradável e o punk estampado no nome da dupla, que na minha adolescência atraiu minha atenção para eles, apenas me deixou ainda mais emputecido com a música que faziam. A única coisa que esses cabras fizeram que realmente atiçou minha curiosidade foi uma série de clipes transpassados por uma história que começava com “One More Time”. Aquele lance futurista, mangá, sci-fi, realmente fez minha cabeça. Da música, só gostava do que parecia ser um solo de guitarra bem pirotécnico - em “Aerodynamic” - que se valia de uma técnica muito utilizada por metaleiros: a digitação. O fato é até hoje não sei o que aconteceu com a galeguinha que é sequestrada por um bando de soldados mascarados no começo da saga. Era o ano de 2001. Eu tinha 18 anos, só andava de preto, bebia vinho, ouvia Sepultura, Krisiun, Slipknot, e ainda tinha minha banda punk: Nômades. Uns poucos meses à frente, como um desígnio da Fortuna, eu compraria o álbum “’Round About Midnight” de Miles Davis e teria a grande revelação da minha vida. Mas, isso é assunto para outro texto.

Hoje, do alto de minha senilidade precoce (tenho quase 31 anos), ouvir esse trabalho é tarefa hercúlea. Primeiro, por ser um disco longo. São exatos 74 minutos de pura música inorgânica e vozes sintetizadas, numa odisseia artificial por um cenário de isopor colorido, raios lasers, gelo seco e alucinações bioquímicas que parecem não ter fim. Isso inevitavelmente me levou ao tédio, à beira do desespero, onde cada segundo durava um século e cada compasso era uma masmorra asfixiante. Um exemplo disso são as músicas “Touch”, “Within”, “Beyond” e “Motherboard”. Um convite ao suicídio. Segundo, porque ele esteticamente apresenta os conhecidos lugares comuns de outrora: uma requentada atmosfera da disco music que embalou a juventude de meus pais (que, por sinal, é quando a música soa mais audível); um maroto lounge music que remete ao relaxante momento pós-coito em banheira de motel; um certo aspecto frívolo que só é encontrado nas danceterias. Terceiro, por seu conceito artístico em si. O título do álbum, em português “Memória de Acesso Aleatório”, faz clara menção à memória RAM que nada mais do que a memória volátil dos computadores, ou seja, depois que a máquina é desligada, as informações que ela processava são perdidas, dada sua natureza efêmera, transitória, precária, instantânea, superficial, passageira, inapreensível... Bem, você entendeu. E eu não posso levar a sério uma música que não repercute no âmago de quem ouve, apenas, em seus pés. Mas, há uma exceção: “Get Lucky”. Quando dei por mim, lá estava eu balançando os ombros como um autêntico metrossexual na pista de dança da Pink Elephant que, entre um gole e outro de Smirnoff Ice, lança olhares de esguelha para a gatinha com salto agulha e vestido de lantejoulas que não tira o olho do WhatsApp, torcendo para que a figura notasse que eu trajava roupas de marca. Um conjunto da Tommy Hilfiger que uma prima sacoleira me trouxe de Miami. Que música contagiante! Tão contagiante que meu alter ego, DJ Bilola, já a incorporou em seu saco escrotal (é assim que ele chama seu setlist) para despejá-la no clímax de sua próxima festinha luxuriante. Sucesso garantido!

É inegável que com “Random Access Memories” o Daft Punk vende um bom produto. Não à toa, ganhou uma caralhada de Grammys, o grande termômetro da indústria do entretenimento, com o disco em pauta. Mas, se o duo francês representa significativas conquistas estéticas para a Arte com sua música “de mentira”, então a McDonald’s também pode se orgulhar de sua contribuição para a gastronomia com os hambúrgueres “orgânicos” que comercializa. Só que não.

Gosto muito de música eletrônica. Sou fascinado pelas composições de Cage, Stockhausen, Ligeti, Berio, Nono, Boulez, mas também curto bastante outros sons eletrônicos, como o cyber punk do Atari Teenage Riot. Já ouviste?! Não?! Então escuta o insano “Delete Yourself!”. Pelo menos aqui, meu caro, encontrarás um pouco da honestidade e da urgência que o Daft Punk jamais terá.

- Dom Angelo:

A grosso modo, classifico a prática musical em três objetivos distintos: música sentimentalista, onde o propósito é despertar sensações como tristeza, alegria, fúria, revolta, paixão, etc. Música de apreciação estética, onde a arte de combinar notas, ruídos e silêncio geram um desafio analítico para nosso cérebro, impulsionando consequentemente a busca pelo conhecimento e a sensação do desenvolvimento cognitivo e, finalmente, música para dançar, no qual a linearidade rítmica induz nossos corpos a acompanhar certas marcações de tempo.

Enquadrados neste terceiro ponto, encontramos os “Punk Pateta” ou Daft Punk. Para mim fica nítido que seus integrantes (o luso-francês Guy-Manuel de Homem-Cristo e o francês Thomas Bangalter) são oriundos do universo rock, principalmente pela simplicidade harmônica e melódica de suas composições. Sem falar do ritmo, um synthpop 4/4 marcando a acentuação no segundo e quarto tempo do compasso.

Se os compositores do período Clássico (mais ou menos 1730 até 1820) declaravam haver um formato musical para algumas de suas obras (Forma Sonata), penso que deveria existir uma declaração dos praticantes da música Pop afirmando que existe uma fórmula para o “Hit”. Poderia ser algo como Forma Canção (Verso-Refrão-Verso-Refrão2X) ou, como no caso dos Daft Punk, Forma Beat Modal Dórico (sequência ii-IV-vi-V ou i-III-v-IV no modo dórico). Pode-se dizer que artistas como Michael Jackson, Prince e Black Eyed Peas fizeram uso demasiado deste padrão musical. Utilizando as mesmas vias, os Daft Punk ganham o Grammy de melhor disco do ano fazendo uso abusivo desta prática.


Ok. Também não vou deixar aqui só críticas. Até porque curti e dancei o verão europeu de 2013 ao som de “Get Lucky” nos cinco países que visitei em Agosto. Um fenômeno cultural. A música foi feita para tal finalidade e cumpriu seu objetivo. Tem mérito. Antes este tipo de mainstream na música internacional do que coisas tenebrosas que já assombraram o planeta terra outrora. Mas quer saber de uma coisa, meu amigo? Vá ouvir os Air, os New Order, os Kraftwerk, Morcheeba, Radiohead, Massive Attack, Jamiroquai, Beck e Bjork, se é música eletrônica pop o que você procura.