domingo, 28 de janeiro de 2018

Cavaleiro da Lua (Lunático / Encarnações) - por André Maranhão

Cavaleiro da Lua em um Pop-Magritte.

A primeira coisa que você deve saber para se situar em o Cavaleiro Da Lua 4 e 5 é: desconsidere a numeração das edições! Isso, porque, ao serem publicadas pela Panini em meados de 2017, as duas revistas saíram com as numerações 4 e 5 no Brasil, quando, na realidade, integram uma nova saga iniciada em 2016 e que segue, até o momento, nos Estados Unidos.
Esclarecida a confusão, é bom registrar outra coisa fundamental: não é preciso ter conhecimento prévio sobre o Cavaleiro da Lua para ler ambas as edições publicadas aqui no Brasil. Isso porque, os dois volumes de O Cavaleiro da Lua fazem parte de um reboot feito pela Marvel em 2015, o All-New, All-Different Marvel –, uma resposta a outro reboot feito pela concorrente DC poucos anos antes. O que isso significou? Bem, que uma parte dos personagens icônicos dessas editoras foram “zerados” e deram início a novas sagas, inclusive com enredos diferentes das narrativas mais clássicas e já consolidadas pela mídia.
Sobre as edições: Ambas foram lançadas por um preço acessível (menos de R$ 20), mas que, infelizmente, até o momento estão esgotadas. Oxalá, as edições sejam relançadas e que venham em um formato de capa dura. O volume 4, do Brasil, compreende Moon Knight 1-5, enquanto o volume 5 traz Moon Knight 6 a 9 e Moon Knight 2, de 1980. Atenção aqui! A reedição de Moon Knight 2, de 1980, também pode ser encontrada na série Paladinos Marvel (também publicada pela própria Panini). É verdade que, por um lado, houve redundância ao se trazer parte de uma revista já publicada pela própria editora Panini para as bancas, livrarias e sites. Por outro lado, a inserção do volume 2, de 1980, tem um propósito compreensível, uma vez que busca contribuir para o melhor entendimento sobre o que está a ocorrer com o Cavaleiro da Lua nas histórias, além de tornar a edição mais rica e variada, sobretudo nos quesitos de narrativa e de ilustração.
Sobre o Roteiro: O Cavaleiro da Lua caiu nas mãos de Jeff Lemire, já conhecido por outras realizações, dentre elas o Arqueiro Verde (2013-2014) e Essex County. Na Marvel, Lemire aproveitou que o Cavaleiro da Lua é um personagem completamente maluco para inserir o leitor em um mundo conflitivo e labiríntico, seja nas viagens surreais dos personagens, seja no ponto de partida da trama. Vide a situação kafkiana, vivida por Marc Spector, que de repente se vê dentro de um hospício sem saber como foi parar nele e por qual motivo (além de ser considerado louco) foi bater lá.
Sob o roteiro de Lemire, não espere uma trama mais clichê sobre o que pode ser uma HQ de super-herói, haja vista o tom da narrativa se apresentar muito mais pautado pela subjetividade e transtornos de personalidade, do que pelo viés da ação, da pancadaria, das explosões e companhia limitada. Com um arco repleto de complexidades e incertezas, o leitor passará a duvidar se o aquilo que o personagem vivencia é algo plausível ou apenas parte de sua loucura – um ponto onde se tem grande chance de mergulhos em fluxos intrigantes, à medida que surgem diferentes situações e cenários.
Sobre as ilustrações: Acredito ser o ponto mais alto das edições. Um grande trunfo foi trazer Greg Smallwood em um trabalho sensacional, ao explorar o negative space, ou seja, as partes mais básicas da folha de papel, redimensionando as bandas dos quadrinhos e abrindo mão de limites mais convencionais das cores e dos traços. Vejamos um curto exemplo disso em O Cavaleiro da Lua:
O Negative Space, por Greg Smallwood.
Capa de Moon Knight 1, por Greg Smallwood.

Para coroar ainda mais a qualidade das edições, ao longo dos volumes, um time de mais desenhistas não menos competentes começa a entrar: Wilfredo Torres, Francesco Francavilla e James Stokoe imprimem uma base mais ainda mais plástica, tanto para alternar a parte gráfica das páginas, quanto para sinalizar melhor para o leitor as viradas entre as diferentes cenas e personalidades apresentadas.
Ora diante do ex-mercenário Marc Spector, ora ante o milionário hollywoodiano Steven Grant, o taxista Jake Lockley, o piloto intergaláctico, além do deus egípcio Khonshu, nos deparamos com a pergunta derradeira: Qual entre eles seria o verdadeiro Cavaleiro da Lua? Qual seria o real, ou mais: dentre tantas fendas e facetas, haveria algum real para nós?

sábado, 20 de janeiro de 2018

O Que Ouvi de Interessante em 2017 – por Bruno Vitorino

Musicalmente, 2017 foi o ano em que dei o braço a torcer. Explico. Até então eu era um daqueles colecionadores de discos incorrigíveis (e em extinção) que gostava de garimpar os catálogos das gravadoras e fazia questão de comprar os CD’s para ter fisicamente os álbuns. Entendia que possuir o CD, suporte por excelência da música gravada (nunca fui um purista do vinil), dava um sentido maior à fruição de seu conteúdo, pois ritualizava a escuta e me proporcionava também uma interação material/sensorial com os arredores do som: encarte, ficha técnica, arte gráfica, disco enquanto item colecionável; o que potencializava a experiência da audição. Além disso, o disco físico estava sempre lá, disponível para quando eu quisesse ouvi-lo. Nada mais fácil e prático. Até que eu resolvi experimentar o Spotify. Foi uma revolução.

Para um “viciado em música” como eu, ter acesso a um acervo gigantesco que me disponibilizava tudo (ou quase tudo) o que buscava era um sonho tornado realidade e foi o suficiente para transformar o meu jeito de ouvir música. Discos que eu procurei a vida toda estavam lá, como Skies of America, do Ornette Coleman; raridades do universo jazzístico também, feito Steve Lacy Plays Monk; discografias inteiras de artistas e bandas importantes, idem; selos europeus como a Deutsche Grammophon, Decca Classics e mais recentemente a ECM Records, cujos títulos só chegavam aqui a preço de ouro, igualmente estavam lá. Sem falar na infinidade de outros trabalhos a serem descobertos, algo que estimulava minha atividade de crítico. Mas, para não ser engolido pela plataforma de streaming e me perder na imensidão de playlists, precisei substituir minha empolgação pela disciplina: focava nos álbuns, ouvindo-os inteiros, respeitando sua construção narrativa, a história que contavam. Com isso, desviei dos perigos da banalização da escuta e ouvi muita música como nunca o fizera antes. Desse mundaréu de discos, selecionei quatro que realmente fizeram minha cabeça, para compartilhar com os leitores do blog.

Boa escuta!

PS: “Pra não dizer que não falei das flores”, coloquei na lista um disco que não está disponível no Spotify. Mas, este é um daqueles poucos que é preciso ter. Abro a coluna com ele.

1. Thelonious Monk – Les Liaisons Dangereuses (1960):



Pode-se dizer que este disco é fruto de um maravilhoso acaso. Os produtores Zev Feldman, Francoise Lê Xuân e Frédéric Thomas buscavam por material inédito do saxofonista francês Barney Wilen e por conta disso acabaram batendo nos arquivos de seu produtor nos anos 1950, Marcel Romano. Embrenhados no acervo, localizaram algumas fitas que traziam escrito apenas “Thelonious Monk”. Ficaram encucados. Quando ouviram os rolos, constataram que se tratava da íntegra da sessão de gravação da trilha sonora “perdida” do filme Les Liaisons Dangereuses, de Roger Vadim, proporcionada pelo Thelonious Monk Quartet acompanhado por Wilen, que dobrava o sax tenor com Charlie Rouse. Um verdadeiro tesouro.

O resultado desse achado é um primor de edição e som disposto em um álbum duplo. Cuidado este também dispensado ao livreto, diga-se, que, além de fotos da gravação, traz vários textos sobre a sessão e a importância de Monk para a cena jazzística francesa à época. Já a música é do mais alto nível. Temas do cânone de Thelonious tocados do modo mais espontâneo possível, no calor da hora, com direito a explorações de texturas, suspensão da melodia-tema e incursões às fronteiras do esquema chorus, no intuito, imagino, de dialogar com o filme. Destaque para a contundente mensagem straight ahead de Rhythm-a-Ning, que abre o primeiro disco; a conexão profunda e inesgotável de Monk com o blues expressa na improvisada peça solo Six in One; o arranjo não convencional da balada Light Blue; o desafio cromático descendente e ascendente de Well, You Needn’t; os acordes cortantes tão caros ao pianista; a coesão e swing da seção rítmica; a abordagem contrastante dos tenores nas improvisações.



2. Mônica Salmaso – Caipira:


No ano de 2017, a música brasileira que tem espaço garantido na Grande Mídia foi marcada pelo projeto de Anitta de conquistar o mundo intitulado “CheckMate”. Ousado mapeamento estratégico do mercado pop internacional, o projeto foi iniciado com Will I See You e concluído com chave de ouro, muitas visualizações, likes e buzz com Vai Malandra. Celulites à parte, na música dita “séria”, Os Tribalistas resolveram se juntar mais uma vez e nos brindar com um álbum novo, como se o Brasil já não tivesse problemas o suficiente. Neste disco do trio impregnado de uma adolescência tardia e estagnada, ouvimos versos “poderosos” como “Atravessamos pro outro lado / No Rio Vermelho do mar sagrado / Os center shoppings superlotados / De retirantes refugiados” (Diáspora); “Sou easy, eu não entro em crise / Tenho tempo livre / Pra me trabalhar” (Trabalivre); “Estamos dando aula / De organização / Reformando a sala / Dormindo no chão” (Lutar e Vencer). Sem esquecer também das “Sarradas no Ar” e outras bizarrices que viralizaram país à fora; e sem falar dos artistas locais que, via de regra, só existem para os seus pares, editais de fomento e o Bar Central.

Por sorte, na periferia da produção musical tupiniquim, encontrei abrigo e refúgio no delicado trabalho da cantora paulista Mônica Salmaso, Caipira. Neste disco, a artista nos convida a adentrar em seu imaginário “caipira”, por assim dizer, com sua interpretação do interiorano e seu entendimento desse universo simbólico. Apoiada por um timaço de instrumentistas (Teco Cardoso, Neymar Dias, Proveta, Toninho Ferragutti), Salmaso interpreta 14 canções que sondam as raízes da música popular brasileira e constrói, com isso, um mundo de beleza tão frágil que parece prestes a se quebrar no compasso seguinte. É bem verdade que o excesso de zelo com os arranjos e a empostação podem tornar sua música mais próxima do acadêmico do que do artístico. Isso é um fato. Mas, há tanto respeito e devoção envolvidos em sua busca pelo evanescente da música, algo tão negligenciado hoje em dia, que é impossível não se encantar com a arquitetura do som. Destaque para Água da Minha Sede, famosa na voz de Zeca Pagodinho, que transfigurada em moda de viola revela nuances harmônicas e imagens poéticas que subjazem ante a presença rítmica do samba.


3. Stefano Bollani – Joy in Spite of Everything:


O jazz não nasce do virtuosismo. Na verdade, ele é forjado na espontaneidade da performance pela comunhão de personalidades musicais distintas, pelo diálogo constante de identidades artísticas singulares que convergem e se expressam criativamente num território chamado “tema”. A partir daí, uma dimensão de imprevisibilidade é conferida à música, tornando qualquer resultado concreto insondável, qualquer repetição, impossível. Não à toa, Keith Jarrett afirma que “não se trata do tema, e sim do que você traz ao tema”, e considerando que esse “você” não é o mesmo a cada performance, tudo muda. Compor material temático especialmente para determinados instrumentistas reunidos numa formação específica pode facilitar conexões, incitar outros riscos (sempre tão necessários) e fomentar a desejada eletricidade do novo, mas não pode subverter esse princípio indispensável ao jazz, sob o risco de esvaziá-lo. Compreendendo tudo isso, Stefano Bollani concebeu um álbum brilhante: Joy in Spite of Everything.

O disco nasce do desejo do pianista italiano de incorporar a seu trio dois instrumentistas de rara e particularíssima artisticidade: o guitarrista Bill Frisell e o saxofonista Mark Turner. Assim, percorrendo nove temas escritos por Bollani para o projeto, o quinteto – que eventualmente se transmuta trio, quarteto e duo – embrenha-se nas desconhecidas veredas inerentes a novas composições para, a partir delas, construir um sólido elo emocional e ensejar a manifestação da individualidade de cada músico através de improvisações sobre a forma. É perceptível na atmosfera do disco uma “estética da descoberta” oriunda da espontaneidade da ocasião: músicos que nunca tocaram juntos antes se encontrando pela primeira vez num estúdio para gravar temas novos (logo, inéditos). O resultado é sublime.

Destaque para o balanço contido e idílico de Easy Healing; a reverência às tradições do hard bop em No Pope No Party; os timbres, os voicings, a utilização dos espaços e o fraseado não-prolífico de Bill Frisell (especialmente em Easy Healing e Tales From The Time Loop); o som robusto de Mark Turner, sua mestria na construção argumentativa e na condução extática dos improvisos (especialmente em No Pope No Party e Vale) e suas modulações repentinas do grave para o agudo do instrumento, visando conferir força expressiva a seu discurso (ver Las Hortencias); o comping atento, a capacidade de Bollani em transformar breves motivos em verdadeiras narrativas improvisadas (especialmente na faixa-título) e o seu virtuosismo desprovido de vulgaridade.


4. Meshuggah – The Violent Sleep of Reason:


Intrincados padrões polimétricos, atmosfera carregada pelo peso de guitarras com 8 oito cordas e pelo brutal conflito métrico presente nas canções, vocal gutural furioso e rítmico, letras que erigem utopias negativas sobre declínio da Razão; tudo isso está contido no último trabalho da banda sueca Meshuggah, chamado The Violent Sleep of Reason. Em seu oitavo álbum de estúdio, o grupo se inspira na água-forte de Goya intitulada O Sono da Razão Produz Monstros para denunciar os demônios de nosso tempo nascidos do vácuo deixado pela letargia da Razão iluminista: o terrorismo, a intolerância étnica e religiosa, a banalização da violência, a sedução do tecnológico e também a “passividade participativa”, isto é, sem senso crítico ou reação, do indivíduo envolvido nas circunstâncias dos eventos atuais. Novos monstros de irracionalismo, conformismo e barbárie que envolvem, dominam e aprisionam aqueles que aderem voluntariamente à inércia do pensamento, deixam-se seduzir pela confortável agenda da repetição irrefletida de discursos e ideologias. O que é semioticamente, diga-se, escancarado pelo grupo na arte do disco. Destaque para as letras e o trabalho da bateria de Tomas Haake (especialmente em Clockworks, Born in Dissonance e na faixa-título), as melodias sinuosas e riffs graves das guitarras, a utilização do ritmo enquanto esteio de todo o desenvolvimento temático e do gestual simbólico das composições.

segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

A Profecia de Star Wars – por Bruno Vitorino


Diante de um mundo que fracassou, o homem de nosso tempo tem de fazer uma escolha: ou a angústia ou a abjeção.

Nelson Rodrigues (I)


Demorou, mas finalmente fui assistir a Star Wars: Os Últimos Jedi. Sinceramente, não sei impelido por quais forças ocultas me sujeitei a essa experiência, no mínimo, ultrajante para qualquer amante da trilogia clássica de George Lucas. Talvez, por uma espécie de dever moral, já que de peito aberto, embora desconfiado, submeti-me voluntariamente ao desastre intitulado O Despertar da Força; daí que agora eu deveria continuar o que havia começado e me expor ao suplício dessa nova trilogia até seu fim. Ou talvez, por ter lido em um bocado de veículos da Grande Mídia que se tratava de um filme magistral, uma continuação magnífica que não só honrava o universo de Star Wars, mas que o renovava por inteiro. Inclusive, cheguei a ouvir de profundos conhecedores da saga – e não apenas dos carentes viciados em likes encontrados em cada esquina do Facebook, Instagram e Twitter – que se tratava do melhor de todos os filmes já realizados da série. De repente, por conta disso tudo, devo ter alimentado alguma ilusão que acendeu minha curiosidade. Assim, passado o frenesi da estreia e aproveitando que o novo “filme do momento” é o reboot (mais um) de Jumanji, dei-me ao luxo de desperdiçar R$ 20,00 e aproximados 150 minutos de minha modéstia existência.

A grosso modo, o episódio VIII é uma gororoba cinematográfica espetaculosa e açucarada como só Hollywood sabe fazer: mistura constantes referências e citações à trilogia original, personagens sem carisma e densidade psicológica, heróis pré-formatados e sem trajetória, vilões sem fundamento ou propósito, piadinhas sem graça e todos os lugares-comuns ditados pelo politicamente correto e o bom mocismo tão em voga hoje. O resultado é uma trama confusa e maçante em que, novamente, tudo está posto e não há desenrolar dos fatos: não se explica quem é Snoke, de onde veio a Primeira Ordem, como a República ruiu ou como a Aliança Rebelde se organizou. Ou seja, trata-se de mais um enlatado Walt Disney Company de grande apelo comercial e fácil consumo voltado para um espectador via de regra egocentrado, infantil e imediatista, acostumado às facilidades sem esforço da internet e à fruição distraída de produtos culturais, que procura bens de significado os quais lhe deem algum sentido, ainda que ilusório e fugaz. Ele já recebe tudo prontinho para não ter o trabalho de ligar os pontos do roteiro (ou até mesmo de assistir aos filmes anteriores) e poder desfrutar de sua pipoca em paz, sem pensar muito, de preferência. Ademais, o simples fato de comprar o ingresso lhe assegura o desejado efeito causado pela febre Os Últimos Jedi: a sensação de pertencimento a uma coletividade que se identifica e se reconhece através do consumo da franquia Star Wars.

Por isso, o “x” da questão não reside nas qualidades cinematográficas do blockbuster, que simplesmente não existem, mas repousa no arcabouço simbólico que ele compila, empacota e vende e na forma como a película traduz e representa o imaginário desta geração. De tal sorte, se cada época tem o Star Wars que merece, não deixa de ser interessante e bastante irônico que na mesma proporção de seu retumbante fracasso enquanto obra Os Últimos Jedi sirvam como um vigoroso documento da era culturalmente esfacelada, árida e midiática em que vivemos. Porque, nas entrelinhas do roteiro esterilizado de Rian Johnson, encontram-se cristalizadas as questões que mobilizam tanto a juventude nascida nas redes e criada em apartamento quanto os adultos infantilizados que gralham, sem praticar, as mais nobres intenções humanas. Da Rey empoderada e já senhora de si, passando pelo Chewbacca vegano (isto mesmo! A fera de outrora tem uma crise moral após assar algumas galinhas intergalácticas) e pela liderança feminina, santa e hegemônica de Leia na Aliança Rebelde até chegar ao execrável Líder Supremo branco de olhos azuis; o filme joga na cara do público do início ao fim todos os clichês possíveis do politicamente correto. Tudo é milimetricamente concebido para não ofender, e mais ainda: educar moralmente com sua edificante mensagem gluten free um público desprovido de símbolos unificadores e transversais e averso às contrariedades, mesmo as intelectuais.

Não à toa, Rey, a empoderada protagonista, é uma heroína sem lastro heroico, que não é forjada ao longo do tempo por meio de treinamento, ascese e/ou sacrifício, como sempre o foram os personagens heroicos no continuum da História, de Ulisses a Frodo (ou Merida, se preferir). Rey não. Ela já nasce pronta e não precisa fazer qualquer esforço para dominar a Força, que se manifesta nela como um evento puramente fisiológico que simplesmente se desenvolve e cresce. E aqui nos deparamos com uma inflexão importante na saga: se na trilogia clássica a Força era uma poderosa energia externa ao herói alcançada após um duro e tortuoso caminho, agora ela se transfigura num “dom” comodamente adormecido nas entranhas dos personagens que desperta convenientemente do nada. Para que fazer esforço, afinal?

Não sem razão também, Luke Skywalker, representante da Tradição e do Passado, é apresentado no filme como um velho amargurado, atormentado e ranzinza, autoexilado nos confins da galáxia, que nega qualquer possibilidade de ligação afetiva ou professoral com Rey, a epítome da nova geração. Para que ele mude de ideia, é preciso apelar a um sentimento tão caro aos idosos, o saudosismo; que é devidamente providenciado por Chewbacca, personagem da série original, ao mostrar um holograma vintage (e clássico) de Leia pedindo ajuda. Mais à frente no desenrolar do arco, é emblemática a cena no esboço de treinamento em que Luke pergunta a Rey o que é a Força. “É um poder que os jedis têm de mover as pedras”, ela responde, o que para mim sintetiza o brutal desconhecimento histórico dos acontecimentos e o total estranhamento/desinteresse desta geração por qualquer resquício estruturador da tradição. E se restou em mim qualquer sinal de dúvidas quanto a isso (“vai ver, estou exagerando”, cheguei a pensar), o filme se faz absolutamente claro. É o próprio Mestre Yoda, alegoria da sapiência no universo Star Wars, quem destrói a Árvore do Conhecimento Jedi e os livros sagrados que trazem os textos mais ancestrais e preciosos da ordem guerreira. Como o livro, suporte por excelência do conhecimento, objeto historicamente constituído e responsável por disseminar e preservar as conquistas do pensamento humano, pode ser deletado num ato de leviandade tão grande, que deixaria Umberto Eco chocado? “Ah, Luke, são apenas papéis velhos. Estes livros que você leu a menina Rey já conhece. Precisamos apagar o passado e construir o futuro a partir do zero”, diz Yoda, enquanto a pira de livros me remetia aos horrores das fogueiras de certos regimes totalitários. Deprimente.

E eu poderia divagar por linhas e mais linhas a respeito de outros tantos episódios inócuos e completamente desnecessários – tal qual o filme em si – de Os Últimos Jedi: o dilema adolescente de Rey e Kylo Ren que fazem da Força um verdadeiro Whatsapp para discutir seus dramas e sentimentos desprovidos de substância emocional; o retorno de Leia do hiperespaço à nave-mãe tal como um arcanjo embalado pela luz miraculosa da Força após um bombardeio da Primeira Ordem (e ela ainda sobrevive, ok?); o “workshop para crianças engajadas de como contestar o sistema capitalista malvado e opressor”, quando numa trama secundária e clichê os coadjuvantes Finn e Rose se metem numa aventura em busca de um “mestre decodificador” que ajude os insurgentes a invadir a nave do Líder Supremo (e cujo desfecho é digno do final de Cinderela Baiana); a irracionalidade masculina e indomável de Poe, o bom selvagem de coração puro; os pequenos proto-jedi que, no fundo de sua condição social miserável, pegam as vassouras com o poder da Força (é dessa massa de desvalidos que sairá a nova ordem jedi que pacificará a galáxia, segundo Yoda); o “Eu preciso ver O Despertar da Força, pô.” que entre aplausos e assovios cheguei a ouvir na ovação do público ao final do filme… Saí do cinema um tanto atarantado.

Por isso, diria que Star Wars: Os Últimos Jedi é um filme profético, pois ele parece antecipar um futuro tenebroso para a produção cultural regida pela lógica vã do comércio de bens simbólicos voltados para aquilo que Luiz Felipe Pondé (tremei, CFCH!) chama de “self consumidor de significados”(II). E considerando que a juventude hoje não é mais uma faixa etária, e sim uma atitude, o mercado potencial para esse tipo de pacotilha é incomensurável. Foi essa combinação que alçou o filme ao patamar de 10ª maior bilheteria da história do cinema, arrecadando mais de $ 1.200.000,00 – e tenho certeza que sequer um centavo dessa renda, apesar da “nova consciência social” propagada no longa, será destinado às jovens sequestradas pelo Boko Haram na Nigéria, ou aos miseráveis do Haiti ou ainda às crianças que mundo afora são tolhidas da infância pela mesma máquina cruel que o filme caricatura. Mas, isso não importa, porque o público sai do cinema com sensação de ter participado de algo bom, nobre, de ter fortalecido uma corrente do bem, sem perceber ou sequer cogitar o intricado jogo de contradições e paradoxos por trás desse lucrativo negócio do conglomerado Disney. Com a camisa de Darth Vader e o balde de pipocas promocional do filme na mão (que ele guardará para mostrar aos amigos e alardeará em suas redes sociais), o espectador sai da sala de projeções já pensando no fechamento da trilogia e antevendo para si uma certa glória de shopping center, uma vez que tudo parecerá harmoniosamente em ordem no universo com o fechamento por certo apelativo e fácil que o episódio IX proporcionará.

Diante disso tudo, falar da destruição cinematográfica completa da saga original soa quase hediondo, não é mesmo?


(I) RODRIGUES, Nelson; Teatro Completo – Nelson Rodrigues: Tragédias Cariocas (Volume 2), Editora Nova Fronteira, 3ª edição, Rio de Janeiro, 2017, pág. 615. Excerto do texto publicado no programa da montagem de estreia de “Bonitinha, mas Ordinária”, em 1962.

(II) PONDÉ, Luiz Felipe; Marketing Existêncial: A Produção de Bens de Significado no Mundo Contemporâneo; editora Três Estrelas, São Paulo, pág. 47.