terça-feira, 8 de agosto de 2017

Melodia, A Alcunha Divina – Por Giba Carvalho

Luiz Melodia. Fonte: Google Imagens.

Silêncio. Mais um gigante se foi. O ano de 2017, indiscutivelmente, está sendo ceifador e cruel nas minhas referências musicais. Há dois meses e meio, Belchior partiu. E agora, mesmo sabendo da situação frágil de saúde, Luiz Melodia se vai aos 66 anos e aumenta ainda mais o vazio cultural do nosso tão sofrido país. As perdas nunca são fáceis. Perder um artista da magnitude do Luiz, mais ainda. Decidi escrever em três atos. Cada um representa parte de suma importância dentro da minha vida musical e será o meu modo de tentar homenageá-lo.


Primeiro Ato – Eu sou poeta lá do morro. E foi assim que Deus me fez. Cantando samba a noite inteira. Eu sou mais forte. Eu sou mais gente. Eu sou um rei. Eu sou a pura melodia. Que é feita de amor e alegria. Sou eu que enfeita a cidade. Com a poesia...”

Luiz Melodia é filho do Morro de São Carlos. Iniciou a carreira musical em 1963 e em 1964 criou o seu primeiro grupo musical – “Os Instantâneos”. Nesta época, abandonou o colégio para dedicar-se de modo integral às composições. Poucas pessoas sabem, mas Luiz Melodia foi autodidata. Aprendeu a tocar, mexendo escondido na viola do seu pai, o compositor Oswaldo Melodia. Seu Oswaldo, não fugindo a regra quase que geral dos compositores da época (vide a história de Paulinho da Viola), queria que o filho fosse “doutor”, mas a água do rio só corre para o mar. O garoto, ainda adolescente, foi criando seu espaço e com seus companheiros de grupo criou uma nova atmosfera musical no morro. A mescla de sua raiz no Samba, com Blues, Soul, Foxtrote e até mesmo Rock n´Roll, fizeram de Luiz Melodia um artista único para época. E tal diferenciação no meio chamou a atenção de um frequentador assíduo do Sambas do Estácio: falo de Wally Salomão. Da descoberta à apresentação a Gal Costa, foi um pulo.


Mas, foi por intermédio de Torquato Neto, que na época tinha a coluna Geléia Geral no Jornal “Última Hora”, que o negrinho magrinho começou a cair nas graças da Zona Sul carioca. Num destes célebres encontros musicais, surgiu a canção “My Black, Meu Nego”. Wally Salomão, mais experiente, sugeriu a Luiz a mudança do nome da música. Potencialmente ainda um sucesso escondido, a canção ganhou o nome de “Pérola Negra”, que era o apelido de um jovem homossexual que também frequentava a turma. Nesta época, meados de 1972, Wally Salomão havia sido convidado para dirigir o show – “Gal a Todo Vapor”. Num dos ensaios para o show, Luiz, a convite de Wally, mostrou tal canção a Gal Costa. De imediato, ouviu o que todo artista desconhecido gostaria de ouvir: “Vou pôr no disco.” Antes mesmo do primeiro trabalho solo do Melodia ser gravado (o que ocorreria em 1973), “Estácio Holly Estácio” foi gravada por Maria Bethania.

Em 1973, surge a oportunidade de gravar o seu primeiro trabalho solo. O brilhante “Pérola Negra”, resolve a vida de Luiz Melodia em 28 minutos. Pois é, meus caros, em menos de 30 minutos, Luiz mostra de fato a que veio. Uma viagem sonora absoluta que passa por dez canções brilhantes. Vamos do Choro tradicionalíssimo “Estácio, Eu e Você”, ao balanço Soul de “Vale Quanto Pesa” e pela clássica e imortal “Estácio Holly Estácio” (a marca registrada de Luiz Melodia), que conta em sua gravação com a gaita única de Rildo Hora. Adiante encontramos aquele que, para mim, é o momento mais sublime do disco: a versão de “Pérola Negra” a imortaliza definitivamente. Escalados para a gravação de todo o trabalho, Rubão Sabino (baixista) e Antônio Perna (pianista) fazem um arranjo simplesmente notável tanto para a canção que intitula o disco quanto para a subsequente – “Magrelinha”.
Adentrando ainda mais em terreno desprezado pelo tempo, tenho que citar mais algumas coisas. O ano de 1973 foi bastante bondoso com a Música Popular Brasileira. Nele, surgiram Melodia, Fagner, Sérgio Sampaio e Raul Seixas. Destes, apenas Raulzito era sucesso de vendas e de público. Os demais não emplacaram como era esperado. Isto levou a gravadora a forçar a barra para o lado de Negro Gato. E esta forçada era uma proposta de contramão ao trabalho brilhante ao qual ele havia escolhido e desenvolvido. Interessada apenas em números, a gravadora insistiu diversas vezes para que ele gravasse um disco apenas com Sambas clássicos. Luiz marcou posição e negou o rótulo de “Sambista” que queriam lhe impor. Tal atitude, causou inúmeros problemas com a gravadora, que o sacaneou no mainstream, “vendendo” sua imagem como a do “cara difícil”. Anos depois, o próprio Melodia diria em entrevista – “Se não tivesse feito aquilo, não seria o que sou hoje.”
“Pérola Negra” é um disco indispensável.

Segundo Ato – “Um dia lá no morro pobre de mim. Queriam minha pele para tamborim.”
“Maldito!” Não pensem vocês que esta alcunha pejorativa foi ouvida apenas depois do processo de “endemonização” criado pela gravadora após as negativas de Luiz Melodia. O próprio Morro de São Carlos, seu berço de nascença, assim o rotulava por seguir caminho diferente ao usual. E como tudo tem o seu preço, não foi diferente com Luiz. Somente após 3 anos do lançamento do “Pérola Negra”, o segundo trabalho foi lançado. E Luiz Melodia, desta feita apoiado pelo sucesso nos Festivais de Música (em 1975 foi finalista do Festival Abertura da TV Globo, com “Ébano”), novamente seguiu o rumo de sua inspiração e fez mais diferente ainda.
“Maravilhas Contemporâneas” (1976) veio para confundir ainda mais a cabeça de público e crítica. As letras não eram comuns às outras canções que tocavam nas rádios. Os arranjos, mais ainda. E, o melhor nisso tudo, é que mesmo nesta miscelânea generalizada, logo de cara, duas canções emplacaram como sucesso: “Maravilhas Contemporâneas”, canção que dá nome ao disco, puxa completamente para um lado Rock n´Roll no arranjo e onde nos deparamos pelo tom desafiador proposto por Melodia: “Eu sou quase cigano / beirando a mexicano / americano, brasileiro, Paraíba / novamente civil...”; e “Juventude Transviada” que seguia completamente suas raízes do Samba. Esta, foi sucesso de público e crítica, fazendo até parte de novela global. Inegavelmente, isto ajudou bastante a este magnífico samba-canção cair na boca do povo. “Lava roupa todo dia / que agonia / Na quebrada da soleira / que chovia / Até sonhar, de madrugada / Uma moça sem mancada / Uma mulher não deve vacilar.”
Seria injusto de minha parte concentrar-me apenas aos maiores sucessos comerciais deste álbum. “Memórias Modestas” é um Slow Blues confessional de primeira grandeza! Muitíssimo bem cantada e arranjada, a canção vem para assustar público e crítica. Linha de guitarra e bateria completamente marcantes em todo o percurso e um fraseado de baixo cavalar para finalizar. Na sequência, o ouvinte se depara com “Mary”. Uma metaleira primorosa disputa o espaço, passo a passo, com a brilhante interpretação de Luiz. Considero um dos momentos “Jazzy” mais competentes da nossa música.
Diferentemente do primeiro trabalho onde não tocou nenhum instrumento, Luiz Melodia abre o “Maravilhas” com seu violão na fantástica “Congênito”. Mais próxima novamente de suas raízes, este é um Samba-rock de classe e com letra que dá vários recados claríssimos aos críticos e donos de gravadora – “Se a gente falasse menos / talvez compreendesse mais...” E mais adiante – “Mas o tudo que se tem / Não representa nada / .... / O tudo que se tem / Não representa tudo / O puro conteúdo é consideração”. Para finalizar, talvez aquele que seja o primeiro Samba Enredo guitarreado de nossa história. “Quando O Carnaval Chegou” é um drama existencial contado de forma clara e que, mesmo sendo executado em ritmo acelerado (característica dos sambas-enredo), dá para sentir a dor da perda em sua brilhante interpretação.

O "Maravilhas" é o meu preferido e também é fabuloso!





Terceiro Ato -  "Inda vou passar no Estácio. O Estácio pode me querer."

Em meados de 2006, Luiz Melodia foi convidado para um show em homenagem aos 70 anos do Teatro Rival. Deste show, interpretando apenas clássicos do Samba, surgiu a ideia da gravação do "Estação Melodia" (2007) e, uma ano depois, do "Especial MTV - Luiz Melodia (Estação Melodia - Ao Vivo)". É justamente este trabalho no molde "ao vivo" que completa o caminho. Particularmente, sempre gostei de trabalhos neste formato. Gosto da Vibração do público, dos improvisos dos artistas e músicos, das inúmeras possibilidades de releituras e diversificações.

Penso que esta oportunidade de homenagear os sambas-clássicos, consolidou a volta ao seu passado no Morro de São Carlos, tornando real este retorno aos alpendres e becos por onde vagou, ouvindo toda rama de craques do Estácio. Melodia abre o trabalho com "Contrastes", do imortal Ismael Silva (autor de "Se Você Jurar", um dos mais belos sambas da história na minha opinião). Esta aula magna é iniciada apenas com sua voz inconfundível e única acompanhada por um tamborim solitário marcando a cadência. Pois é, caros leitores, sem fugir à máxima de outro poeta - "...no couro do gato / que faz bom tamborim..."

O restante do trabalho mescla sucessos da carreira do cantor com a base do "Estação Melodia". Destaco inicialmente a releitura de "Tive Sim" do gênio Cartola. Verdadeiro crooner que era, Melodia interpreta a belíssima canção de modo único. Ele aproveita toda a nuance rítmica para encaixar sua malandragem elegante do samba, somada à extensão vocal esplêndida. Logo adiante encontramos "Dama Ideal". Este Samba de Gafieira instigante de Alcebíades de Nogueira em parceria com Arnaldo Passos chama demais a atenção por dois motivos distintos: é como se fosse um mantra na nossa mente (por ter a letra curta e repetitiva) e, principalmente, pelo duelo do set de metais com a voz do intéprete. Compositores como Geraldo Pereira e Jamelão também são lembrados no trabalho. O primeiro com duas canções: a cadenciada "Chegou a Bonitona" e a divertidíssima "Cabritada Mal Sucedida" e o ícone mangueirense com "Eu Agora Sou Feliz", parceria com o Mestre Gato que encerra o trabalho em altíssimo astral.


A perda de Luiz Melodia é devastadora para a Música Popular Brasileira. Raros artistas possuíram num pacote só: talento, criatividade, sensibilidade, posicionamento, respeito à música e ao que de fato ele era. Há 3 anos, seu último trabalho foi lançado. “Zerima” (indicado anteriormente na “Playlist de Editores”), além de homenagear sua irmã Marize que havia falecido (Zerima é Marize ao contrário), é uma aula de respeito ao tempo e uma negativa contundente a tudo que a indústria fonográfica quer hoje em dia. Sempre gostei do posicionamento e da versatilidade de Melodia. Indiscutivelmente, ele foi um dos raros casos de artista incomodado com a mesmice. Passeou por tudo que quis como citado anteriormente. Foi Rock, foi Soul, foi Forró, foi Blues, Foi Jazz, foi Maxixe, foi Samba e como ele foi Samba!
Vai em paz, Luiz! E, como muito bem dito na sua canção: No céu você hoje estrela divina / Que apaga, acende, ilumina / Essa terra onde a gente vive / No céu, você hoje estrela MELODIA / Que acorda, apaga, ilumina / Essa terra onde a gente morre / Essa terra onde a gente vive / Essa terra onde a gente morre."