sábado, 31 de janeiro de 2015

Variações em 5/4: Great Western Valkyrie


Na primeira coluna do ano, os editores do blog comentam Great Western Valkyrie, o último trabalho da banda californiana Rival Sons.

Boa leitura!

- Fernando Lucchesi:

O ano de 2014 trouxe duas grandes surpresas, uma de cada lado do Atlântico. Primeiro os ingleses do duo The Royal Blood, o qual foi objeto de análise por mim no blog e em segundo a banda californiana Rival Sons e o seu Great Wester Valkyrie. Ambas possuem uma gama de referências que têm sua base no Blues, embora não necessariamente fossem bandas de blues puro, mas que o usavam como mais um ingrediente. Outra característica comum a ambas é a capacidade de compor músicas pesadas sem esquecer a importância da melodia.

Em Great Wester Valkyrie, a banda utiliza como referência musical primeira o Led Zeppelin. Secret remete a How Many More Times com seu riff hipnótico conduzido pelo baixo e a voz cheia de efeitos vocais para lembrar o Plant dos primórdios do Zeppelin. Além de Open My Eyes ter sua abertura tirada descaradamente de When the Levee Breaks mais uma vez o vocalista, Jay Buchanan, soa por demais com Robert Plant. Embora o Led Zeppelin seja a mais notória referência há várias outras perceptíveis em outras faixas do disco como The Who em Belle Star e até mesmo Suzy Quatro em Play The Fool. O disco se mantém consistente até a faixa oito. As duas últimas músicas são as quase inevitáveis baladas que qualquer banda de rock insiste em colocar em seus discos. Ambas, Where I´ve Been e Destination On Course, têm ótimas melodia, no entanto, a banda as trata como épicos de seis ou mais minutos sem a menor necessidade. Excluindo esse pequeno deslize, não tenho dúvida em afirmar que o disco é um dos melhores lançamentos do ano de 2014.

- Giba Carvalho:

Great Western Valkyrie veio para firmar o Rival Sons no patamar de bandas relevantes da atualidade. Forjado em rock setentista, o quarto álbum dos californianos é um convite dos mais agradáveis e instigantes aos fãs do bom e velho rock n´roll. Vocês podem pensar – “Ah, isto soa datado!” É verdade! Afinal, todos sabemos que existem bandas que apenas copiam um determinado estilo e outras (cada vez mais raras), que utilizam os mesmos como base para desenvolver seu trabalho. Com letras contundentes e desempenho seguro dos músicos envolvidos, o quarteto impressiona exercendo todo seu glossário “old school”.

Neste novo álbum, encontramos doses cavalares daquilo que todo apreciador do estilo gostaria de encontrar: a “cozinha” robusta formada pelas baquetas furiosas de Mike Miley e as frases de contrabaixo do estreante David Beste. O espetacular Scott Holiday, guitarrista extremamente impetuoso, de riffs marcantes e solos lisérgicos. E Jay Buchanan, frontman que não possui receio de cantar. Um “monstro” da nova geração! No faixa a faixa, temos:

Eletric Man - que abre o disco explodindo com vigor! Um hard-rock clássico em potencial e elegância!

Good Luck – é a música onde o RS sai um pouco do rock setentista e viaja a fase antecessora a ele. Com uma verdadeira aula de canto de Jay Buchanan e ritmo espetacular. Este é um rock n´roll em sua mais pura concepção.

Secret – lembrando bastante a época áurea do Deep Purple. Vocais explosivos, rasgados e muitíssimo bem-postados. E uma performance avassaladora de Mike Miley nas baquetas. Uma pedrada para nossos ouvidos!

Play the Fool – esta é a música do disco onde os instrumentos reinam. A junção entre os riffs espetaculares de Holiday e a versatilidade Miley são um espetáculo a parte. Arrisco até afirmar que pode ser considerado um tributo a John Bonham, dada a quantidade de variações e vigor na execução.

Good Things – é onde o estreante da banda mais aparece. David Beste guia a primeira canção não-usual do álbum, marcando com seu contrabaixo. Neste caminho, ele é ladeado por um Hammond e pela variedade “infindável” de frases de Holiday e sua Gibson Firebird.

Open My Eyes – 98% dos ouvintes dirão: “parece com o Led Zeppelin.” Eu digo – “pode até parecer, mas parece mais com Audioslave.” Bateria marcada, riff garage pegajoso, vocal sem nenhuma modéstia. Isto já resumiria bem esta canção, não faltasse um detalhe. É nela que encontramos o melhor solo do espetacular Scott Holiday.

Rich and The Poor – imagine uma pausa para respirar. É exatamente isto que pensei em todas as audições do disco. Mas, não pense você, que estamos falando de um momento menor. A banda entra no primeiro momento sombrio do disco. Guitarra pesada, acompanhada de execução psicodélica de teclado e o restante do conjunto (voz, baixo e bateria) tecendo frases em cima desta cama.

Belle Starresta foi a canção onde mais identifiquei a “presença” Zepelliniana. Notadamente, mais parecida com a fase do álbum “Presence”. Inicia exuberante, acelerada, furiosa e, repentinamente, mergulha nas nuances de um céu giz. E o ciclo é formado nas idas e vindas desta performance grandiosa da tríade – bateria, voz e guitarra.

Where I´ve Been – senhoras e senhores, estamos falando de um Blues! Consequentemente, a dupla Holiday e Buchanan volta à supremacia. Primeiro, pelo destaque das linhas de guitarras presentes em todos os espaços da gravação e, segundo, por todas as variáveis apresentadas por Jay.

Destination on Course – Intensidade! Para finalizar um grande disco, nada mais justo do que uma execução épica. São 7 minutos de uma composição mais lenta que trás a tona toda criatividade do quarteto. Além disto, é nesta canção, que encontramos um trabalho de voz oriundo de um coral feminino, que causa mistério e nos remete ao canto das “Valquírias” num campo de batalha e presente no nome do disco.

De acordo com a mitologia nórdica, as “Valquírias” eram belas mulheres loiras que, montadas nos seus corcéis alados, escolheriam os guerreiros para vida e morte. Os que fossem escolhidos teriam o direito de entrar em Valhala (a morada de Odin). E, voltando para o ramo musical, tenho certeza de que elas escolheram o quarteto estadunidense. Não estou falando de um álbum comum. Estou falando do melhor disco de rock n´roll de 2014.

Se você quer ouvir uma banda que possui as melhores referências, que procura renovar-se, que experimenta e tem tesão em tocar, estás no caminho certo!

- Rógeres Bessoni:

Que alívio e que injeção de combustível nas veias saber que o rock and roll ainda reverbera na face da terra! Eu ainda estou agradecidamente sem palavras para o trabalho do Rival Sons – notadamente, seu álbum mais recente, GREAT WESTERN VALKYRIE, o quarteto da banda e ao qual se dedica esta coluna. Porque é muito bom ouvir um trabalho novo trazendo de volta à tona o rock and roll velho e bom. Uma banda surgida após o ano 2000 que finalmente não soa como uma ressaca do grunge nem uma tentativa de fazer “hip hop and roll”. Não. Até que emfim, rock and roll visceral novinho em folha. Já tomei umas cervejas pra comemorar, mas ainda merece outras. Isso por muitos motivos, mas, sobretudo, por uma coisa fantástica de se ver e de se passar para as novas gerações, criadas em apartamento, tomando toddynho e comendo pera com leite: Great Western Valkyre é uma enciclopédia de rock and roll, meus caros. Um apanhado fantástico que mostra uma maturidade ímpar em bandas da atualidade. Nada de sons histéricos de adolescentes quarentões dando “piti” no palco, nada de melodramas pseudo-engajados, nada de saudosismo estéril, fazendo covers de músicas já executadas 45 bilhões de vezes no planeta. Nada disso. Os caras conseguiram encher o matulão com toda a substância do que houve de melhor em 50 anos de rock e CRIARAM a partir disso. O disco é realmente autoral e apresenta toda essa bagagem em uma característica genial: o trânsito por praticamente todos os estilos do rock – excetuando o universo do metal. Está tudo lá, do psicodelismo californiano até o hard rock; do blues pesado ao progressivo. O som dos caras mostra uma banda realmente adulta, que ouviu muito rock and roll, assimilou tudo E SOUBE O QUE FAZER com toda essa informação. Em alguns momentos, há trechos que se aproximam demais de canções conhecidas, mas eu, particularmente, não vi nenhuma “ameaça” de plágio ou sequer imitação. Ouvi foi referências sólidas e embasadas, mesmo, em que os caras demonstram que sabem o que ouviram e sabem o que estão fazendo. Um rápido passeio pelas faixas do álbum nos leva por esse banquete gordo, e assim começamos, ressaltando os principais traços, assim como saltaram aos meus ouvidos. Deixo claro que não pretendo fazer uma radiografia detalhada e “exata” das músicas; vou falar como se conhecesse a formação musical dos integrantes da banda (coisa que não conheço), mas apenas como recurso literário pra indicar, numa primeira vista, a que estilos para os quais as canções me levaram e tudo o que entendi como material processado e recriado, e aqui vai:

1 – Em Eletric Man temos de cara uma porrada de levada totalmente zeppeliniana, no melhor estilo Nobody's Fault but Mine” e The Ocean, com Jay Buchanan soltando o berro com um swing chegado a Robert Plant, mas também com a pegada feroz de Ian Guilan;

2 - Good Luck nos traz uma introdução e refrão com o balanço dos Stones, pra descansar e uma linha melódica macia, mais suave, com textura, pra mim, dos domínios de David Bowie;

3 - Secret, uma das mais fuderosas pra mim, traz uma mistura perfeita, perfeita, de Canned Heat e The Doors, num blues psicodélico pesado, com a inesquecível e irresistível levada anos 60, vocais furiosos, na medida certa entre Bob “The Bear” Hit e Jim Morrison, guitarra e baixo unidos num riff detonador, à la Roadhouse Blues e um solo totalmente digno da apresentação do Canned Heat no Woodstock;

4 - Play the Fool, com um riffs simples que gruda na cabeça, reúne uma gama de sons típicos do fim dos anos 70 e começo dos 80, se aproximando do punk em alguns momentos, e, em outros, do pop rock mais juvenil do começo dos anos 80;

5 - Good Things, outro ponto alto do disco pra mim, volta à batida da transição dos 60 para os 70, com arranjos de teclados mais uma vez lembrando The Doors, e os vocais, pontuados com a guitarra, ficam bem próximos de Alvin Lee e da vibe Ten Years After;

6 - Open My Eyes, começando com uma batida também zeppeliniana, com Mike Miley trazendo a sonoridade de “When the levee breaks” à tona, apresenta ainda um riff com todo o traçado de Tom Morello, fazendo a música explodir no melhor estilo Audioslave;

7 - Rich and the Poor (talvez a minha preferida), com uma melodia séria, meio down, uma levada firme, vocais com eco e a guitarra, também com eco nos arranjos (além de suas características melódicas), nos jogam de volta às referências sessentistas. Mesmo numa voz masculina, é das veia interpretativa e dos traços melódicos que falo: várias vezes me pareceu ouvir Grace Slick! Um Jefferson Airplane mais pesado, com as possibilidades tecnológicas de hoje, mas com a mesma vibe do começo do psicodelismo californiano. Levei com isso uma porrada, fiquei aturdido e atônito: é mais que uma joia rara esses sons voltarem a explodir, com todo vigor, em um trabalho autoral, em pleno ano 2014!

8 – Ainda no fim dos anos 60, Belle Star não só continua trazendo elementos do rock psicodélico como, mais uma vez, trouxe outra grande surpresa. No trecho mais lento, até o Fairport Convention parece ser lembrado;

9 - Where I've Been, com andamento de blues e linha melódica mais country, revive momentos do The Eagles e da tradição das grandes baladas do gênero;

10 – E, para terminar um grande álbum numa obra vigorosa, apropriadamente um grande final, os caras, depois disso tudo, entram numa súbita e competentíssima viagem progressiva! Aqui, Buchanan se supera. Os vocais, num tom cinzento e melancólico, vão às raias de Peter Hammil, e não apenas. À grandiosidade da interpretação vocal, se segue a das melodias de guitarra, crescendo com vigor até desaguar num momento “Echoes”, mostrando direitinho o que Scott Holliday aprendeu com Gilmour.

E isso são apenas as minhas primeiras impressões. Caberia uma análise para a performance de cada integrante, assim como uma viajada pelas letras, mas não é o objetivo e nem o espaço para tanto. As associações que fiz foram totalmente livres e quero deixar assim, em aberto, para que cada um faça as suas. Mas fica, sobretudo, a dica para que curtam esse trabalho raro no mundo rock contemporâneo. Como falei, numa boa, vou abrir outra cerveja e degustar esse alento.

- Bruno Vitorino:

O rock ‘n roll está em crise. Parece clichê, não? E, de fato, é! Admito o lugar comum de minha sentença, mas o que é o rock hoje senão uma mescla de um amontoado de obviedades embaladas pelo discurso do “novo”, velhas referências musicais datadas e explosões mercadológicas de efemeridade inútil? Vemos, meus caros, aos montes bandas que se valem dessa tríade do conformismo estético para se apresentar diante de um público inocente que ainda acredita no caráter redentor do rock ‘n roll e o enxerga vivo e producente. Isso para não falar dos “dinossauros” fossilizados pela mesmice que, há muito desprovidos de suas fontes criativas, circulam o mundo requentando repertório, brindando assim a humanidade com o tão precioso culto ao espetáculo.

Nesse sentido, parece-me cada vez mais clara uma espécie de dicotomia patológica que assola o gênero em nosso tempo: por um lado, deparamo-nos com inúmeras bandas adolescentes que pululam no mainstream com seu rock à High School Music com sua rebeldia de shopping center e letras vazias sobre os dilemas da adolescência contemporânea – namoricos, redes sociais, carência afetiva e aquele desejo enorme de chamar a atenção para si; do outro, encontramo-nos com as incontáveis “viúvas de Woodstock” que tentam emular, do figurino ao discurso, passando pelo jeito de empunhar os instrumentos, até finalmente chegar à sonoridade da banda, aquela atmosfera perdida do rock clássico dos anos 1960/70. Em ambos os casos, o resultado musical é idêntico: o desnecessário. Contudo (e sei que isso pode me levar a ser mal compreendido), pelo menos com os adolescentes temos alguma verdade, pois, sem perceber, sua música denuncia a grande alienação que se apoderou do ideário de uma juventude inteiramente desvinculada de sua realidade, ou seja, a sua música, verdadeiramente, diz nada sobre lugar algum. “E isso é bom desde quando?”, vocês se perguntam. Claro que não o é!, mas é exatamente isso que estamos vivendo agora: o completo esvaziamento das manifestações humanas de suas dimensões Culturais em prol do modismo transitório. As bandas juvenis ao estetizarem essa perspectiva, pelo menos, tornam-na um testemunho inconteste de seu tempo, ainda que sombrio. Já os saudosistas, ao simplesmente se embrenhar no passado, nada o fazem além de rescender a mofo. E é justamente nessa segunda categoria que a banda californiana Rival Sons se enquadra.

Por essas razões, poderia resumir brevemente Great Western Valkyrie, último trabalho do quarteto, dessa forma: uma base sonora formada pela justaposição de Jefferson Airplaine, Ten Years After e The Yardbirds, que recebe uma estrutura musical inteira e descaradamente copiada do Led Zeppelin, finalizada com figuras decorativas extraídas de Pink Floyd e, quem sabe, também do Moody Blues. Electric Man e, especialmente, Secret, com seu riff sugado de How Many More Times do Zeppelin, e Open My Eyes, que parece ter nascido do solfejo de Robert Plant no meio de The Ocean, são ótimos exemplos dessa miscelânea artificial que, mais do que reverenciar as tradições do rock e consagrar-se panegírico, expõem o elevado desgaste do estilo em nossos dias. Os bons momentos do disco ficam por conta de Play The Fool e sua inesperada mudança de andamento que dá o clima perfeito para o solo da guitarra e a balada Good Things; justamente, vale ressaltar, as canções em que a banda não se ocupa tanto em imitar o Zeppelin e reviver o passado, valendo-se das raízes do rock enquanto ponto de partida e não no fim em si. Imagino que se a Rival Sons tivesse feito isso ao longo do disco - obviamente levando em consideração também suas  qualidades enquanto instrumentistas -, este teria sido bem mais interessante. 

De resto, parafraseando Fernando Pessoa, como "estou farto de embusteiros", diria que é um disco para ser ouvido com parcimônia da lucidez, sem o ouvido deslumbrado e impressionável da carência musical.

- André Maranhão:

Great Western Valkyrie é um bom disco. Não é um álbum concentrado em um só artista. Toda a banda parece bastante entrosada e nenhum instrumento monopoliza faixas. Jay Buchanan (vocal); Scott Holiday (guitarra); Dave Beste (baixo); Michael Miley (bateria) – todos estão bem no mais novo projeto dos Rival Sons. Logo de cara, a escolha de Electric Man e Good Luck para abrirem o disco foi muito feliz. Na primeira, há um rock incisivo, com personalidade; enquanto a segunda é uma balada animada, repleta de drives, solos legais e com um refrão daqueles que grudam. Play the Fool traz uma conversão de ritmos entre 1’50’’ e 2’42’’ sensacional. Good Things me remeteu a canções legais dos anos 1960 com a presença de Ikey Owens frente aos teclados. Em Where I’ve Been, muita coisa boa da música norte-americana parece estar condensada na faixa: Blues, Rock, Country, Gospel, Rhythm and Blues... Os teclados reaparecem bem encaixados, dessa vez através de Mike Webb.

Há outras canções que não chamaram tanto minha atenção: Secret; Open My Eyes; Rich and The Poor; Belle Star e Destination On Course. Os motivos variam: ou pelo vocalista exagerar nos gritos, ou pelas faixas soarem longas, ou simplesmente pelas linhas melódicas e harmonias não me empolgarem. Apesar de estas cinco faixas corresponderem a 50% do disco, ainda assim, insisto em considerar a boa qualidade de Great Western Valkyrie, visto que os outros 50% que me chamaram a atenção compensam por demais!


terça-feira, 20 de janeiro de 2015

Quando Há Arte (Segundo Nelson Goodman)? - Por André Maranhão



Há muito tempo que uma parte da Filosofia se esforça em definir as coisas do Mundo a partir da Lógica. Se um pensador como Aristóteles (384-322 a.C) já se ocupara em explicar logicamente “o que é o Homem”; outros nomes como Avicena (980-1037) e Tomás de Aquino (1225-1274) foram capazes de escrever alguns tratados para provar que toda substância do Universo provém de uma causa: Deus; por sua vez, o único ser perfeito que não necessita de uma causa para existir. De lá pra cá, a Lógica se estabeleceu como uma forte tradição filosófica capaz de abordar diversos temas, e, portanto, era mais do que esperado que a Arte se tornasse um objeto de debate entre os pensadores lógicos.

O pensamento lógico se fortaleceu amplamente numa tradição anglo-americana da Filosofia (sobretudo no Reino Unido e Estados Unidos) conhecida como Positivismo Lógico ou Filosofia Analítica. Já no século XX, um dos autores mais preocupados em problematizar a Arte a partir de algumas bases lógicas foi Nelson Goodman (1906-1998), cujos estudos abordaram várias linguagens da arte e símbolos diferentes – letras, palavras, textos, imagens, diagramas, mapas, modelos e muito mais (GOODMAN, 2006, p. 9). Obviamente, Goodman reconhecia que nem tudo que é simbolizado está fora do símbolo. Porém, não apenas as obras que representam a natureza ou que remetam a algo pitoresco e figurativo são simbólicas. Uma pintura abstrata, por exemplo, pode expressar e simbolizar sentimentos, emoções ou ideias esteticamente válidos. Ora, tal afirmação levou Goodman a perceber que a própria tentativa de separar o que interno do que é externo em uma obra de arte é algo notoriamente confuso; tão confuso como tentar separar os ingredientes de um bolo depois que este bolo já está pronto!

Mas talvez, uma dos problemas mais polêmicos (e não menos interessantes) levantados por Goodman diz respeito à definição de Arte, afinal, o que é Arte? Seria a simples definição daquilo que o artista diz ter criado; do que alguns doutos mais elitistas julgam ser uma “boa arte”; ou o fato de algum objeto ser exposto numa galeria? De acordo com Goodman, nenhuma dessas justificativas é suficientemente forte para definir o que é Arte porque, logicamente, qualquer definição de arte é incompleta. Neste sentido, a pergunta mais proveitosa a ser feita não é “o que é arte?”, mas “quando há arte?” – em outros termos – quando um objeto é ou está sob a condição de obra de arte?

Para estimular ainda mais algumas reflexões sobre o tema, gostaria de encerrar com alguns fragmentos e exemplos escritos de Goodman:

“A pedra normalmente não é uma obra de arte quando está no caminho, mas pode sê-lo quando é exibida num museu de arte (...). Por outro lado, uma pintura de Rembrandt pode deixar de funcionar como uma obra de arte quando é usada para substituir uma janela partida ou como uma cobertura (...). As coisas funcionam como obras de arte apenas quando o seu funcionamento simbólico tem certas características (...). A pintura de Rembrandt permanece uma obra de arte, tal como permanece uma pintura, quando funciona apenas como cobertura; e a pedra do caminho pode não se tornar estritamente arte por funcionar como arte. Analogamente, uma cadeira continua a ser uma cadeira ainda que ninguém se sente nela, e um caixote continua a ser um caixote ainda que nunca seja usado senão para nos sentarmos em cima dele. Dizer o que a arte faz não é dizer o que a arte é, mas considero que o primeiro aspecto é que tem importância primária e peculiar (...) passei a dar atenção ao que a arte faz, em detrimento da questão de saber o que é arte (...). Um objeto pode simbolizar coisas diferentes em momentos diferentes, e nada noutros momentos (...). Em vez de a arte ser perene e a vida curta, talvez ambas sejam transitórias” (2007, p. 130-133).

REFERÊNCIAS

GOODMAN, N (2006). Linguagens da arte: uma abordagem a uma teoria dos símbolos. Lisboa: Gradiva.

_____ (2007). Quando há arte? In D’OREY, C (org). O que é arte?: a perspectiva analítica. Lisboa: Dinalivro, pp. 119-133.

domingo, 11 de janeiro de 2015

Everything Will Be Alright in the End - Por Giba Carvalho




Desculpem, pessoal, não percebi que precisava tanto de vocês
Eu achei que conseguiria atingir um novo público
Esqueci que música disco é um saco
Acabei sem ninguém e comecei a me sentir mal
Talvez eu deva tocar a guitarra solo
E Pat tocar bateria

Me leve de volta, de volta para a cabana
De volta para a Stratocaster com correia de raio
Chutar a porta, mais hardcore
Fazendo rock como se fosse 1994


É com este pedido de desculpas aos fãs, que o Weezer ressurge após 13 anos de experiências de irrelevância absoluta com sua própria música. Obviamente que não podemos esperar um “milagre” dos “rock-nerds”, mas “Everything Will Be Alright in the End” traz o grupo de volta aos bons discos. E isto é de suma importância num mundo onde as famigeradas “playlists” e os “singles” reinam em absoluto.

Parecendo compreender o rumo que a carreira da banda estava tomando, Rivers Cuomo (líder, guitarrista e principal compositor da banda) não poupou nomes em parceria para o processo de composição do novo trabalho. E, por mais que estes nomes soem estranhos para os fãs de qualquer vertente rock, o resultado foi bastante satisfatório. Em “Back to the Shack” (primeiro single do álbum) temos a mão de Jacob Kasher, parceiro de Kylie Minogue. É logo no primeiro single do disco que percebemos claramente que os bons tempos voltaram. Guitarras pesadas e marcadas relembram o “Green Album” (2001) e temos a explicação: o novo trabalho é produzido por Ric Ocasek que trabalhou com o Weezer no álbum supracitado e no “Blue Album” (1994). Parceiro de artistas deletérios tais como – t.A.t.U, Demi Lovato e Paris Hilton (existem adjetivos mais apropriados do que artista para defini-la), Josh Alexander aparece em duas canções do disco – “Lonely Girl” – que é praticamente uma volta ao início do grupo (mais do mesmo) e “Da Vinci” – que possui um arranjo extremamente confuso, muito embora grude “terrivelmente” na cabeça.

Dando continuidade as parcerias, faço uma pergunta aos leitores do blog: “alguém lembra aqui daquela banda pavorosa de ‘metal arriação’ chamada The Darkness?” Pois bem, a música que tem tudo para cair nas graças do público é – “I´ve Had It Up to Here”, justamente a parceria com Justin Hawkins, vocalista e guitarrista deste falecido grupo. Esta canção traz novamente à tona a competência que o Weezer possui de mesclar aquele rock “farofinha” com indie pop “algodão doce”. Na busca por diversificação ou inspiração em outrora, encontramos mais duas parcerias de qualidade neste trabalho. “Go Away” que foi composta e cantada por Bethany Cosentino do duo californiano - Best Coast, é o clássico indie pop de qualidade, com nível de sacarose elevado e sem firulinhas. Além do pop vigoroso de “Eulogy for a Rock Band” (a minha preferida) em parceria com a banda OZMA.

O lado compositor solitário de Cuomo também foi explorado. “Ain´t Got Nobody”, que abre o disco, inicia misteriosa, contida e termina numa explosão imensa (nada de novo se analisarmos vários outros álbuns lançados no decorrer de 2014), “Foolish Father” que é o acerto de contas entre o vocalista e o pai e a trilogia final – “The Waste Land”, “Anonymous” e “Return to Ithaka”. Esta, não passa de uma “chupação” bastante usual que várias bandas contemporâneas andam fazendo. Juntam três músicas instrumentais (com raros momentos cantados) como se as mesmas fossem movimentos de um Concerto de Música Clássica e proporcionam aos fãs orgasmos múltiplos com tais “brincadeiras” pseudo-eruditas.

O Weezer, quando estava no auge, sempre foi uma banda de segundo escalão, mas, pelo momento vivido pelo rock mundial, temos que vangloriar e apoiar todo trabalho novo de valia. “Everything Will Be Alright in the End”  é um álbum coeso, rico em melodias simples (marca registrada da banda) e merece destaque dentre os lançamentos de 2014 mesmo mostrando um Rivers Cuomo levando a banda praticamente só.

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Pondo Os Pingos nos Is – Por Bruno Vitorino



O Jornal do Commercio publicou ontem (04/01) no Caderno C uma extensa matéria sobre a recém-lançada caixa do Miles Davis Quintet, “All of You: The Last Tour 1960”. Realmente, este lançamento é importante, já que documenta um período histórico muito interessante do combo, em que se ouve um Coltrane alucinado (e incompreendido) com suas frases incendiárias - as chamadas "sheets of sounds" -, experimentando progressões harmônicas intrincadas em plena improvisação e tendo total liberdade para transitar pela forma dos temas o quanto quisesse; e um Miles Davis que, se por um lado rompia com a tradição do hard bop estabelecendo os alicerces do jazz modal com sua linearidade e uso dos espaços, por outro não abria mão de standards conhecidos em seu repertório, sempre focando, contudo, no risco e na espontaneidade durante as performances.

É realmente incomum se deparar com um jornal pernambucano dando espaço ao jazz, essa música, via de regra, tão incompreendida e desprestigiada pelos grandes veículos de comunicação, e ter elaborado comentários a respeito de um lançamento notável e de artistas fundamentais para a música popular do século XX. Eis o mérito do artigo. Para isso digo: bravo!

No entanto, deparei-me com algumas inconsistências ao longo da matéria, de modo que tomei a liberdade de fazer algumas considerações que me parecem necessárias:

1) O autor do texto cita o caso em que Miles agride Coltrane nos bastidores e diz que "o saxofonista simplesmente foi embora". Não foi bem assim. Essa agressão famosa, digamos assim, no mundo do jazz aconteceu no "Café Bohemia" em outubro de 1956. O fato é que Miles ficou irritado com Coltrane, pois ele estava chapado de heroína, moribundo em pleno palco (em alguns momentos, cochilando) e errando as músicas. No intervalo entre os sets dessa gig, Miles perdeu a paciência e bateu em Coltrane, que estava ainda sob os efeitos da droga. No instante em que essa cena ocorreu, Thelonious Monk, que teve uma rusga séria com o trompetista logo após o Newport Jazz Festival de 1955, estava no camarim, viu tudo e disse para o saxofonista: "Você não precisa passar por isso. Venha tocar comigo". Mas, isso só aconteceu em abril de 1957, quando Miles finalmente demitiu Coltrane por conta dos problemas com a heroína, e este se juntou ao quarteto do pianista. Miles fala desse episódio em sua autobiografia "Miles Davis: A Autobiografia", escrita em parceria com o jornalista/poeta Quincy Troupe; o texto no encarte do disco "Thelonious Monk Quartet with John Coltrane at Carnegie Hall" também menciona o acontecimento; e, por fim, a biografia de Monk, "Thelonious Monk: The Life and Times of an American Original", também discorre sobre o caso.

2) O texto diz que "era evidente que Coltrane já havia criado seu próprio tipo de blues". Ao que parece, a intenção do jornalista neste trecho era promover uma espécie de trocadilho ou referência implícita entre “seu próprio tipo de blues” e “Kind of Blue” (e não Blues como está escrito em duas ocasiões), o icônico disco do Miles; mas dizendo, no fim das contas, que o saxofonista já encontrara sua identidade artística. Certo. Porém, em termos estritamente musicais, no que diz respeito ao gênero, Coltrane era tradicionalista, respeitando muito a "forma blues" - seus 12 compassos, seus pontos de apoio harmônicos, sua estrutura melódica na construção temática -, portanto, a rigor, ele não "criou seu próprio blues". A única exceção a essa rigidez na arquitetura sonora talvez seja um tema dele chamado "Locomotion" - que por sinal é de 1957, do obrigatório álbum "Blue Train" -, em que ele sobrepõe à forma blues clássica o turnaround disfarçado da estrutura "rhythm changes" no “B” (ou seja, insere uma seção de dominantes estendidas em movimento cromático descendente - Ab7 / G7 / Gb7 / F7), e termina a música sem resolver na tônica (Bb7), aterrissando na V (F7) após um giro harmônico descendente. Todavia, ainda assim ele não inventa uma nova estrutura blues, e sim acrescenta-lhe outra.

3) Num outro momento, o texto traz: "antes de partir para a turnê, o saxofonista lançou o álbum Giant Steps, em que muda de tenor para sax alto". Nada mais absurdo! Coltrane não muda para o alto nesse trabalho! Na realidade, este fora o seu instrumento de aprendizado quando muito jovem e tocava em bandas de rhythm’ n’ blues nos anos 1940. Mudou para o tenor influenciado por Lester Young. No entanto, Coltrane passou a tocar sax soprano na virada dos anos 1950/60 por conta do impacto que lhe causou Steve Lacy, que tocava exclusivamente o soprano, alternando-o eventualmente com o sax tenor. O disco "Avant-Garde", gravado em 1960, mas só lançado posteriormente, traz o primeiro registro desse instrumento por parte de Coltrane na música "The Blessing".

Além do mais, a relevância histórica de "Giant Steps" se dá pelo inédito horizonte harmônico que Coltrane abre ao inserir no jazz o sistema de tônicas desenvolvido por Nicolas Slonimsky, que, a grosso modo, tratava-se de dividir matematicamente a oitava de uma tonalidade em partes iguais (2, 3, 4, 6 ou 12 partes), estabelecendo "centros tonais" interdependentes (com o mesmo peso de "fundamental" na progressão), interligados por acordes cadenciais. O tema "Giant Steps", por exemplo, é dividido em três partes com os centros sendo Sol Maior, Si Maior e Mi Bemol Maior, num ciclo que se poderia repetir ad infinitum.

4) Ao final da matéria, encontra-se: "...enquanto Coltrane começaria sua revolução que, infelizmente, não se sabe até onde chegaria. Foi interrompida em 1967 pela heroína que quase termina a carreira de Miles nos anos 50." Errado! Coltrane se livra do vício no entorpecente durante o ano de 1957 (justamente quando começa a tocar com Monk) depois de ter quase chegado ao fundo do poço. Ele fala sobre a epifania que foi se livrar da dependência da droga inspirado, segundo ele, pela força divina no texto que escreve para sua obra-prima "A Love Supreme". Coltrane morre em 1967, dez anos depois de estar livre da heroína, em decorrência de um câncer de fígado. Há quem atribua a doença a abusos de álcool e narcóticos, enquanto outros chegam a mencionar inclusive o esforço sobre-humano que Coltrane fazia durante seus longos e intensos improvisos, mas são apenas ilações.

5) Por fim, sendo um tanto quanto detalhista, é "Bitches Brew", e não Biches, sem o “t”, como está escrito no artigo.

No mais, a matéria é bastante oportuna. Só acho, humildemente, que um pouco de acuidade tanto na pesquisa quanto na escrita não faz mal a ninguém.