quinta-feira, 27 de agosto de 2015

Editora DarkSide - Por Fernando Lucchesi



Desta feita não irei falar a respeito de nenhuma obra específica e sim irei elogiar uma iniciativa que há muito existe no exterior e que no Brasil era praticamente inexistente: uma editora que trabalhe especificamente com publicações voltadas para o terror e a ficção científica. A editora em questão chama-se DARKSIDE. Por puro acaso, encontrei, em um desse saldões de sites durante a madrugada, dois livros sobre bastidores de filmes de terror clássicos: O Massacre da Serra Elétrica e Evil Dead- A Morte do Demônio. Os dois livros traçam um panorama da época em que os filmes foram feitos e buscam informar, através de extensas entrevistas com membros da equipe e outro colaboradores, como se deram as filmagens tanto dos primeiros filmes quanto das inevitáveis sequências. O preço era excelente e a embalagem com os dois livros lembrava as antigas fitas de VHS. Um trabalho gráfico realmente diferenciado.

Edição de Psicose, de Robert Bloch.
Eis que alguns meses depois, em um novo saldão, encontro o livro Psicose de Robert Bloch, que deu origem ao clássico de Alfred Hitchcock. O mesmo estava sem edição brasileira há aproximadamente 50 anos. Ao procurar os títulos da editora verifiquei uma quantidade bastante razoável de livros tanto de ficção, quanto de bastidores de filmes: Tubarão, A Noite dos Mortos Vivos, Os Goonies, O Exterminador do futuro, Star Wars e Sexta-feira 13. Isso além de obras de Stephen King e outros títulos de ficção. Adquiri as edições simples de Tubarão e Sexta-feira 13, e mesmo elas têm um trabalho gráfico digno de menção.

Mas as publicações não se limitam apenas ao nicho dos filmes. Há também biografias das mais variadas personalidades, entre ela Stephen King, J. R. Tolkien, Charles Manson e a banda de heavy metal Black Sabbath. E vem por aí uma biografia de João Gordo, conhecido como vocalista do grupo Ratos de Porão.

É um trabalho, que acredito, teve início há pouco tempo e que para prosperar deve ter resposta dos fãs de terror e ficção (ou fantasia como eles informam no site), mas, sem dúvida alguma, vem suprir uma carência no mercado editorial brasileiro.

domingo, 23 de agosto de 2015

Variações em 5/4: De Baile Solto



Na coluna deste mês, os editores do blog comentam o mais recente trabalho do cantor pernambucano Siba, “De Baile Solto”.

Boa leitura!


- Rógeres Bessoni:

Dirijo-me ao trabalho de Siba sempre com respeito, observando um músico cuja trajetória admiro e que me transmite uma rara sensibilidade e seriedade como pesquisador e “mergulhador” da nossa cultura. Chego sabendo que vou topar pela frente com um multi-instrumentista, localizado entre os pioneiros do Mangue Beat e Mestre de maracatu rural, o que me levou, confesso, a uma expectativa de ser impactado por um experimentalismo sonoro, mas, com sempre... lá vem a surpresa de onde menos se espera (e que grata surpresa!). Como concepção musical, o trabalho não alcançou, a meu ver, paragens realmente novas. Os melhores momentos ficam a cargo do bom andamento e melodia de “Marcha Macia” e de “Quem E Ninguém” (os cruzamentos de maracatu com eletricidade geralmente resultam em experiências arretadas pra mim).

Em diversos momentos, os arranjos (especialmente de guitarra) e andamentos, eventualmente monótonos, não botam os instrumentos “para render” como seria possível, e alguns bons temas, sem o apoio de uma malha sonora mais rica, perdem força. Mas, ainda que em música o trabalho tenha ficado aquém do que minha expectativa criou (e, ressalto, isso não é problema de Siba nem de nenhum outro artista; essas ansiedades e expectativas são de responsabilidade inteiramente minha), mencionei uma surpresa que tive, e aqui está ela: o que me impactou, de fato, foi a grande qualidade das letras. Sim, as letras, exatamente isto. Fazia muito, muito tempo que um disco não me impressionava pela qualidade de todo o seu texto. E o fato de não ter sido lançado e alardeado com ambições nesse sentido, deixou a coisa ainda melhor, justo pela espontaneidade da língua brasileira destas bandas ter sido posta de maneira tranquila, do jeito que se fala, sem as irritantes e inúteis afetações nordestinistas que, em tantos casos, mal disfarçam um brutal complexo de inferioridade. Tivemos e ainda temos bandas e artistas individuais que “emplacaram” comercialmente e agradaram público e “crítica” como sendo referências em poesia ou letras “vanguardistas, desconcertantes”, empenhadíssimos em serem reconhecidos e lembrados assim, fazendo para tanto todos os trejeitos, salamaleques e referências óbvias tidos como necessários nesse métier, algumas vezes com trabalhos ridiculamente pretensiosos, mas que sempre me passaram a consistência de um castelo de areia fofa.

Embora ainda não tenha encontrado nesse trabalho de Siba alguns dos sons “que estou procurando”, me deparei com a arte de fazer letras novas, amadurecida como eu buscava - e não se trata do simplismo “que letra bacana, fala de tal coisa!”. Ocorre que Siba aparece realmente como herdeiro – no melhor aproveitamento desse termo – da linguagem usada por seu povo na rua e na mata. Atesta todo o processo de depuração e refinamento linguístico (sempre espiritual) a que se submeteu nas inúmeras sambadas de maracatu de que deve ter participado, externando a habilidade sagaz e criativa no manejo da nossa desconhecida língua luso-brasileiro-pernambucana. Começando por “Marcha Macia”, em que ele materializou primorosamente a temática da crise urbana e humana que corrói diversos grandes centros, tão atualizada e, sobretudo, da maneira como foi tecida, tão recifense, envereda em seguida por uma corrente de sonoridades pernambucanas escutadas em todos os espaços da minha infância, a composição da memória linguística de qualquer pirralho dos interiores por onde passei, e mesmo desse “interior crescido” que é o Recife. E ali estão fragmentos da fala do povo, trava-línguas, os locutores de festas de interior, o tema sempre presente em diversas vertentes da poesia popular que opõe o pobre versus o rico nos desafios de improviso poético, a aranha arranhando a jarra, as reminiscências de uma casa da infância, e por aí vai. A grande sacada é que todos esses elementos aparecem no disco de maneira muito bem articulada, APROVEITADA – essa é a palavra-chave –, e não apenas repetidos mimeticamente e em clichés, ou amontoados de forma caótica. Siba usou magistralmente e sem teatralismos a língua que todos nós aqui aprendemos a falar, manuseou esses conteúdos para dizer o que queria, fosse memória ou protesto, e nisso reside a grandeza da construção poética do disco. E, nas composições destas nossas plagas, esse foi o meu grande achado do ano. Mas, ainda um toque sobre a musicalidade, uma grande coisa pode ser vista neste trabalho: as músicas têm tratamento melódico e são cantadas, o que não é pouca coisa, não. Parece óbvio, mas não é. Quando digo que algumas canções “perderam força”, nem de longe digo que são limitadas ou medíocres. De jeito nenhum. Ainda que minha já citada expectativa fosse por mais e diferentes sonoridades instrumentais, não tenho dúvidas de que estou diante de um trabalho sério, tratado e apresentado com zelo. Ao Mestre Siba, fica também esta minha gratidão: no cenário desolador destes nossos dias, todo esforço feito em prol da melodia e do texto são mais que bem-vindos e chegam em muito boa hora. É sempre um alento ver a música levada a sério.


- André Maranhão:

Em De Baile Solto, me pareceu claro o empenho de Siba em se fazer um intérprete escudado pela guitarra; coisa que se somou às suas bases da canção popular, principalmente identificáveis em suas letras coloquiais e sem muita complexidade poética. Seus drives guitarrísticos e palhetadas de stratocaster se lançam com batidas de maracatu – uma receita que não deixa de ser interessante, mas que está longe de ser um trunfo à Heraldo do Monte, ou Treminhão. Seu melhor momento com o instrumento está em “Meu Balão Vai Voar”; por sinal, o recurso mais interessante da faixa. Já em “Mel Tamarindo”, a guitarra Siba parece desafinada nos trechos finais.

Siba não é um cantor, propriamente falando. Ao menos não me parece um artista voltado primeiramente para a técnica vocal. Não é desafinado; no entanto, o vocalise final de “Marcha Macia” é simplesmente uma prova complicada para considerá-lo um cantor especializado. Ainda assim, Marcha Macia é uma canção interessante, composta de ironias bastante pertinentes às excessivas higienizações do cotidiano, vivenciada em diversos espaços de sociabilidade em que nos encontramos: prédios cada vez mais cercados, o suposto avanço, propagado pelos últimos discursos do poder público de “modernização”, e o afã pela felicidade por via das relações de consumo.

Em “Três Desenhos” e “Três Carmelitas”, o excesso de informações aponta um desencaixe entre os compassos das canções, seus recursos instrumentais e os tempos das letras. “Gavião” é marcada pela escolha de sintetizadores exagerada, além da ausência de harmonização ter me incomodado, na medida em que o vácuo sonoro me pareceu fruto da falta de acordes na canção. “Quem e Ninguém” é uma empreitada difícil de acertar, já que Siba basicamente tentou eletrificar o maracatu de baque solto. Eu já não sou lá um dos fãs mais adequados para escutar aquelas longas apresentações de maracatu cantadas por aqueles senhores, o que dirá ouvir isso tudo enfeixado por sintetizadores e pedais?!

Considero “A Jarra e a Aranha” é uma das melhores canções do álbum. Justo quando Siba parece mais conservador na forma, se torna melhor, pois é capaz de combinar uma letra cômica (um verdadeiro trava língua) somada a um ritmo mais próximo do frevo e até das marchinhas cariocas. “A Jarra e a Aranha” é uma boa pedida, inclusive para o carnaval!


- Giba Carvalho:

Inegavelmente, Siba tem talento com as palavras. Por consequência, seus trabalhos são bastante superiores aos que usualmente são produzidos na “Cena Pop de Pernambuco”. Com De Baile Solto não é diferente. O “Baile” flutua com letras simples e que atingem o ouvinte de modo agradável e eficaz. Mesclando questionamentos pessoais e respostas próprias, o compositor percorre caminhos que não são usualmente caminhados por estas terras.

Musicalmente falando, o álbum possui alguns pontos de relevância e outros nem tanto. Primeiro ponto é que De Baile Solto é extremamente bem gravado e mixado. Como segundo ponto, eu confesso gostar de uma coisa no trabalho de Siba: ele sabe cultivar suas raízes de modo correto e na mais pura concepção rítmica do que de fato é a música da Zona da Mata pernambucana. Isto é bastante diferente de alguns outros que “metem” um trompete com batida de frevo e afirmam ser ícones do carro-chefe da música pernambucana. Por outro lado, não achei tão interessante esta mescla de regionalismo com guitarras. Até porque, mesmo tendo ciência da pesquisa de ritmos afros pelo compositor da Zona da Mata Pernambucana, prefiro quando o lance é mais cru. Um pouco conservador? Talvez. Mas, as cordas das rabecas fazem diferença imensa para meus ouvidos no produto final.

De Baile Solto é um trabalho de muito bom nível, que nada a braçadas largas no cenário contemporâneo de Pernambuco e que marca a luta da preservação de memória contra um suposto desenvolvimento em suas letras. Já na execução, fica claro que a música pode modernizar-se mantendo algumas características das raízes antigas. Siba é um artista que possui de fato dimensão internacional e demonstra isso claramente com todo lirismo, poesia e com uma gama de possibilidades sonoras para seus ouvintes.

Destaco – “Quem e Ninguém”, “A Jarra e a Aranha” e “O Inimigo Dorme”.


- Bruno Vitorino:

Sempre tenho a curiosidade de ouvir um trabalho novo do pernambucano Siba Veloso. Quando chega a meus ouvidos a notícia de que ele entrou em estúdio para gravar um novo disco, meu coração e juízo, como que numa espécie de combinação tácita e secreta, logo se põem a cultivar boas expectativas e conjeturar sobre que paisagens sonoras serão desveladas. Suspeito, por sinal, que tal acordo tenha surgido há muito, nuns velhos tempos em que eu, baixista, punk e criança, ia assistir às apresentações da lendária Mestre Ambrósio no Recife Antigo e me via inteiramente extático diante daquela reinterpretação intensa e verdadeira das tradições do meu Pernambuco. Tradições estas, diga-se, que se apresentavam diante de mim como um território povoado, vivo e dinâmico, e não como um museu empoeirado de memórias coletivas imortalizadas nos pedestais intocáveis do purismo regionalista – que de alguma forma me tinham um certo cheiro de Casa Grande. O fato é que, desde essa época, Siba se tornou para mim sinônimo de um artista de muita profundidade estética, haja vista sua imersão nas raízes de seu universo sonoro por excelência - o maracatu rural - e a sagacidade de sua mente criativa em romper com as cômodas bolhas do discurso tradicionalista e dialogar com os além de si propostos pelo mundo, num sincretismo que costuma ser fértil, distante anos-luz da caricatura mercantil da wold music.

Se por um lado, no disco Siba e a Fuloresta, o compositor se apresenta como um legítimo mestre de maracatu imbuído de um poder transcendental conferido pelas práticas sócio-culturais daquela comunidade lá em Nazaré da Mata que se preservam pela repetição e se inscrevem na rima e no ritmo exuberante dos taróis; e do outro, temos em Avante, como uma entidade inteiramente alienígena à primeira representação de sua artisticidade, o quase roqueiro que veste jeans, usa tênis All Star e toca guitarra Fender inserido no coração de um grande centro urbano do Brasil fazendo uma música impregnada pela sonoridade grotesca do Cidadão Instigado de Fernando Catatau, que faz do tosco recurso estético e do nonsense, poesia; com De Baile Solto, encontramos um Siba no meio do caminho.

Ao fazer a ponte entre esses lugares aparentemente distantes do painel da Cultura, o pernambucano leva o Maracatu às ruas da cidade grande para, em letras de métrica rica e problematizadoras de suas circunstâncias e entornos, propor uma reflexão sobre realidade que se apresenta e o estatuto de arte popular e pop em nossos tempos, numa música muito bem arquitetada a qual requer, além dos ouvidos, também o corpo para ser ouvida. Um baile onde a dança que se propõe não é aquela da frivolidade hedonista e festiva dos folguedos populares, que mira na rota de escape; e sim a do encontro consigo e da percepção do outro, a da celebração coletiva na construção social da realidade, a da resistência estética, intelectual e, por que não dizer, humana ante a retumbante marcha da imbecilização que avança e se espraia esvaziando de significados tudo o que pisa, entregando em contrapartida discursos ocos, modos de vida padronizados e mercadorias enquanto arcabouço simbólico de uma nova ordem social. Por isso, ao ouvir De Baile Solto imediatamente me vem à cabeça o que disse certa vez John Coltrane: “Eu acho que a maioria dos músicos estão interessados na verdade, sabe? Eles têm de estar, porque um objeto, um objeto musical, é uma verdade. Se você toca e faz uma assertiva, uma assertiva musical, e é uma assertiva válida, tem-se uma verdade por si mesma bem aí, sabe?”[1]. E é exatamente esta perspectiva de verdade que torna o disco tão necessário e seus enunciados tão vastos.

Destaque para a ironia não tão sutil de “Marcha Macia” e “Quem e Ninguém”, as camadas rítmicas enviesadas sobrepostas em ostinatos e a guitarra saturada de “Gavião”, a mistura de compassos quaternário e ternário de “Três Desenhos” que conferem movimento à poesia, a latinidade lacônica de “Três Carmelitas”, o jogo de palavras no frevo-carimbó-maxixe-la ursa de “A Jarra e a Aranha” e para o fato de não haver baixo no disco inteiro, e sim uma tuba construindo belas linhas nos registros graves.

Altamente recomendado!


- Fernando Lucchesi:
         
Pude acompanhar bem a carreira de Siba durante o período em que ele foi membro da banda Mestre Ambrósio. Daí por diante perdi completamente o contato com sua música. Vi que alguns discos dele, como Siba e a Fuloresta foram, em geral, bem recebidos pela crítica, assim como seu último disco solo Avante.

Sem dúvida, Siba busca introduzir novos elementos na sua música, incorporando um lado mais urbano (vide a grande quantidade de músicas em que a guitarra é o instrumento condutor rítmico/melódico), sem, no entanto, abandonar o som que o projetou, inspirado nas tradições oriunda do interior. 

Essa mescla do urbano com o rural fica excelente em algumas músicas e em outras, nem tanto. “Marcha Macia” e “Gavião” (uma versão sombria e psicodélica da música do disco Terceiro Samba do Mestre Ambrósio) abrem o disco com maestria dando a impressão que o álbum vem com mais canções do mesmo calibre, mas não é o que vemos, nem ouvimos. As extensas “Mel Tamarindo”, “Três Desenhos” quebram o ritmo interessante que se apresentava no começo. Já “Três Carmelitas”, esta com uma levada mais pop, retoma o ritmo inicial. “Quem e Ninguém” e “A Jarra e a Aranha” (com uma guitarra puxada pro frevo) trazem em suas letras divertidos jogos de palavra demonstrando o talento do letrista Siba. Já a música que dá título ao disco, “De Baile Solto”, é um instrumental completamente dispensável.  


Se Siba não foi completamente feliz na ideia da junção de influências, pode-se afirmar que ele já demonstrou que boas idéias para isso ele tem.

  





[1] BLUME, August; “Interview With John Coltrane” in DeVITO, Chris (editor), “Coltrane on Coltrane: The John Coltrane Interviews”, Chicago Review Press, Chicago, Illinois, 2010, pág. 14. 

sábado, 15 de agosto de 2015

Simpatia Pela Própria Sombra: Rock and Roll e Catarse no Imaginário Ocidental - Por Rógeres Bessoni


O guitarrista Jimmy Page e o escritor William Burroughs.


“Oh, Albion remains
Sleeping now to rise again”




A questão fundamental antes, durante e depois deste texto é uma só: ROCK AND ROLL É COISA SÉRIA. Há cerca de dois anos, me deparei com um link de internet para o resumo do que foi um dos encontros mais primorosos da música contemporânea e que entrou para os anais das entrevistas no mundo do rock. Em 1975, um dos maiores nomes da literatura beat e da chamada contracultura dos anos 50/60, William Burroughs, entrevistou Jimmy Page, para a Crawdaddy Magazine, revista até então totalmente desconhecida por mim. Até hoje, nunca peguei em um único exemplar físico, mas em algumas andanças online verifiquei tratar-se de uma revista especializada em jornalismo musical, criada em meados dos anos 60 e que se destacou pela abordagem frontal do fenômeno musical “rock and roll” - na verdade, parece que o próprio periódico se autodefinia como sendo “a primeira revista que levou o rock a sério”. Ao devorar o conteúdo dessa entrevista, mergulhei em insights profundos, despertados pelas associações de ideias que aconteceram naquela conversa. Na verdade, vários assuntos ali tratados alimentaram outros tantos insights que eu já havia tido, mas que ainda estavam crus, pedras brutas, sem elaboração. A entrevista se deu depois de Burroughs assistir a um show do Zeppelin, e as duas figuras trataram de falar de magia, de Aleister Crowley, de experiências hipnóticas com infra-sons e mantras, das experiências de indução ao transe na música sufi marroquina, dentre outras iguarias. Mas, do material compilado ali, o que me reacendeu uma ideia antiga, para mim nevrálgica, foram os questionamentos de Burroughs a respeito das possibilidades mágicas e psicológicas da música em geral, e do rock em particular. Esse escritor, que ajudou a revirar o baú escuro da alma humana pós-guerras mundiais, aponta para outra dimensão quando pergunta:

“Music, like all the arts, is magical and ceremonial in origin. Can rock music return to these ceremonial roots and take its fans with it?” (Numa tradução livre: “A música, assim como todas as artes, é mágica e cerimonial em suas origens. Pode o rock retornar a essas raízes cerimoniais, conduzindo consigo os seus fãs?”).

E mais ainda quando, ao tratar da aridez e estreiteza do pensamento ocidental contemporâneo, aponta a estreiteza de visão e de escolhas em que nos enclausuramos, a partir da cultura cristã e após o seu declínio,

“(...)when all magic became black magic; that scientists took over from the Church, and Western man has been stifled in a non-magical universe known as “the way things are.” Rock music can be seen as one attempt to break out of this dead soulless universe and reassert the universe of magic.” (...quando toda a magia foi tratada como magia negra; os cientistas substituíram as igrejas, e o homem ocidental foi enclausurado em um universo não-mágico, conhecido como “a maneira como as coisas são”. O rock pode ser visto como uma tentativa de rompimento com esse universo morto e sem alma, e recondução ao universo da magia).

E aqui chegamos a uma das sacadas mais geniais da contemporaneidade, a Chave para entender o poder catártico da música e, mais especificamente, o fogo devorador do rock and roll e como ele, o rock, insuflou a inquietação juvenil e aventureira em corações procedentes de toda parte, se apoderou de traços musicais do mundo inteiro e tocou, por assim dizer, a “Anima Mundi”, de que os alquimistas falavam. Essa Chave explica também como o rock atuou na minha própria vida, nas inúmeras vezes que me resgatou ou me conduziu pelo abismo. Foi essa saída do árido e brochante “non-magical universe”, da vida sem imaginação e sem encantamento e da recuperação da dimensão mágica que o rock operou em zilhões de pessoas – e o fez de forma incendiária, num movimento enfurecido e explosivo, sem muitas preliminares que, em suas duas primeiras décadas, nem deu tempo às pessoas para se reposicionarem ou entenderem bem o que estava acontecendo.

O fato é que o rock and roll ativou Imagens e Símbolos Primordiais poderosos que estavam encerrados no nosso escuro, sob violenta e severa vigilância das duas Grandes Inquisições – a inquisição religiosa cristã medieval, que sistematizou o medo e a submissão, e depois, sua substituta, a inquisição materialista, científico-industrial, com um igualmente severo Index Librorum Prohibitorum, que nos precipitou no paralítico “non magical universe”. O rock estremeceu sedimentos profundos de maneira tão desconcertante e imprevisível que nenhuma construção científica, antropológica, nem nada que o valha, me parece ser a maneira  apropriada de abordar esse xamã enlouquecido. O “rigor científico” não tem acesso nem à sua sacristia. Apenas alguns deslavados enxerimentos junguianos da minha parte me ajudam a vomitar uma intuição profunda que tenho há tempos: o rock foi um poderoso catalisador e agente catártico no psiquismo ocidental. Num grande festejo a um só tempo bacante, hermético e combativo, nos conduziu a um contato com a dimensão fantástica da nossa Sombra, que vínhamos de muito tempo evitando e mal conseguindo conter. E pagamos preços altíssimos por isso. Então, poderosos Arquétipos foram movimentados. Um bestiário inteiro foi acordado no nosso subterrâneo. Tido pelos prosaicos não-iniciados como uma aparição do diabo, o rock foi na verdade o exorcista mais eficaz e fiel que tivemos em atividade por cerca 30 anos. E falo no passado porque, para mim, esse ente poderoso se retirou do cenário já há bastante tempo. Na verdade, encerrou-se (ou está apenas em suspenso) sua ação mais ostensiva, frontal. Seu período de movimentação na limpeza pesada da cabeça ocidental, quando operou de forma crucial, foi mais ou menos de 1955 até cerca de 1985. Neste intervalo, a grande atuação aconteceu. Se conseguimos ler o ideograma (ou hieróglifo) desenhado pela trajetória do rock, nos deparamos com um tratado alquímico, teatralizado com peso, sensualidade e fúria, bem escancarado na nossa frente.

Com efeito, quando surge, a alma ocidental está mastigada por tudo o que foi o último milênio. Um milênio denso e intenso, que assistiu ao apogeu e declínio da Idade Média, à quase total destruição dos últimos núcleos de cultura pagã na Europa, à Inquisição, à demonização da imagem da mulher, à tentativa de recuperação da cultura clássica, à descoberta e colonização mortífera do Novo Mundo, à empreitada iluminista de elaborar um gênero humano autônomo, racionalmente situado e resolvido no mundo (mas que não conseguiu “ordenar” a vida interior desse novo homem esclarecido e laico, nem livrá-lo de suas angústias mortais), ao acontecimento de duas guerras mundiais, ao desenvolvimento das psicoterapias e às primeiras tentativas científicas de desvendar e controlar a mente e, além de tudo, ao crescimento devorador das tecnologias como nunca se viu. Esse tumulto gigantesco pós-antiguidade clássica deixou nossa sociedade com muito lixo em baixo do tapete, que se converteu numa verdadeira bomba-relógio psicoemocional, por tudo que passou a ser difícil confrontar.

Estando o mundo assim, ainda mais após a grande depressão econômica do início dos anos 30 do séc. XX e o fim da Segunda Guerra, saindo de imensos tormentos e caminhando entre o tédio e a incerteza – e, muitas vezes, desesperança -, e com a instalação da Guerra Fria, começava a crescer uma geração de jovens com todos os motivos pra não endossar e não sentir qualquer identificação com os modelos rígidos do carcomido Ocidente, prontos para escrachar e ignorar todas as falácias sobre heroísmo militar e poder econômico. Uma leva de jovens, nascidos do meio para o fim da Segunda Guerra e que foram vítimas diretas ou indiretas dela, começa a demonstrar abertamente o quanto despreza a roupagem das sociedades puritanas da Europa e dos Estados Unidos e o quanto estão sequiosos por outras histórias.

Esses jovens, predominantemente brancos, muitos de origem proletária, tendo alguns crescido nos subúrbios industriais das grandes cidades ou em zonas portuárias, ambientes onde algumas escórias sociais se misturavam inevitavelmente, não tiveram dificuldades em se aproximar dos sons hipnóticos desse submundo. Mesmo no sul agrário e racista dos Estados Unidos, a figura central de Elvis mostra como outro veio branco, distinto do racista, se esgueirava em meio ao conservadorismo mais medíocre, e absorvia o gospel, o blues e o jazz. Negros, ciganos, latinos, orientais – as bagagens sonoras desses universos proscritos vinham à tona e encontravam muita gente com olhos, ouvidos e cabeça abertos, prontos para se alimentar de tudo.

Os sons, cheiros e sabores dos referidos submundos inebriaram esses jovens branquelos que não faziam e nem queriam fazer parte dos salões de uma aristocracia velha, criminosa, militaresca e obesa; apontavam e conduziam para os locais onde acontece a farra, a mistura promíscua e alquímica de todos os elementos, as três dimensões que vieram a ser o berçário do rock: os bares, a rua e a estrada. O mitólogo Junito de Sousa Brandão diz que Hermes e Dionísio foram os deuses gregos que mais estiveram misturados aos homens e, com isso, esse grande mestre nos dá uma outra Chave para desvendarmos toda uma sorte de mensagens renegadas por nossas idiossincrasias, que não nos permitem perceber movimentações simbólicas extraordinárias, como por exemplo esta: só a combinação poderosa e explosiva de Hermes com Dionísio poderia fazer nascer o psicopompo boêmio que foi o rock and roll. Só os bares (território de Dionísio por excelência) e a estrada (domínio de Hermes, que era deus das estradas e foi o inventor da lira e da flauta) poderiam ser o laboratório mágico dessa música vulcânica e catártica. Dionísio maneja os vícios e apetites sensuais dos humanos, e Hermes é o deus que revela o que está oculto e o único com trânsito livre entre os “três mundos”: o submundo profundo, o mundo dos homens e o Olimpo - ou seja, Dionísio e Hermes combinam de forma ímpar o trânsito através dos vícios reprimidos e das possibilidades sensoriais embotadas com a elaboração musical e a revelação, propiciando uma erupção artística de escala planetária que se instalou como uma escada para o escuro, para descermos com alguma luz ao nosso mundo oculto, ou trazermos coisas de lá para a luz do dia, nos fazendo compreender isto: só uma grande convulsão cultural hermético-dionisíaca estaria habilitada a enfiar a mão na ferida puritana e simplista do que havia se tornado o Ocidente, revolvendo com sofisticação ácida (e lisérgica) e sensualidade incandescente a escuridão e as forças cegas mal contidas sob os bons modos da razão adestrada.
A carta do louco no tarô de Marselha.

Preparado o cenário e com o advento do rádio e a popularização das primeiras gravações em disco, a batida crua do blues foi subindo como fumaça de incenso. Aquelas gravações rústicas de Robert Johnson e demais pioneiros dos anos 20 e 30 apareceram enigmáticas e hipnóticas. Como fazer aquilo tudo apenas com violões de cordas de aço e batendo o pé no chão? De repente, as incríveis possibilidades da simples combinação voz humana/slide guitar abriu um horizonte sonoro totalmente novo e desconcertante para os ouvidos atentos. Porque aquela música não era apenas melancólica, como já tínhamos provado no romantismo erudito e em alguns ritmos latinos; ela também tinha uma sonoridade rasgada, cortante, e, mesmo sem ser propriamente “cigana”, sugeria as andanças. O boêmio errante, com o violão dentro do case, viajando de trem de cidade em cidade, brigando nos bares por causa de mulher ou jogo, proscrito, dormindo em muquifos e bebendo e fumando muito. Essa imagem acompanha desde o princípio o imaginário em torno do bluesman e oferecia perspectivas irresistíveis. Pegar a estrada só com a guitarra debaixo do braço e partir para o mundo, de trem ou pegando carona, com uma roupa surrada e ganhando dinheiro de bar em bar. Estava plasmado um ideal que pertenceu a todos. A carta sem número do Tarô, o Arcano “O Louco”, saiu de casa com uma mochila nas costas e um cachorro em seu encalço – rumo ao precipício, muitos diriam. O Louco provocativo, desafiador e revelador, começou uma jornada esperada há séculos, num feixe de energia oscilatória entre o goliardo e o Cavaleiro.

Essa é, no entanto, a parte mais exotérica e palpável desse novo “ideal”, porque, junto com a aventura emerge também a - igualmente fascinante – aura do maldito. O pacto com o diabo, a paisagem sombria, as entidades espectrais. Uma das lendas que li não sei onde dizia que Howlin' Wolf foi possuído pelo espectro de um lobo, para poder ter a voz que tinha. A célebre possível relação de Robert Johnson com a magia negra e a venda da própria alma em um pacto, talvez numa encruzilhada (tão conhecida da nossa macumba), não apenas nos apontam para o capeta, mas também – de novo – para o ambiente hermético. Ora, Hermes é também o senhor das encruzilhadas e também é ele quem nos leva e traz da escuridão para a luz. A tentação que temos de encarar nossa própria sombra é proporcional ao medo de fazê-lo, criando uma atração-repulsão que nos mantém confusos, numa neblina de sensações imprecisas, enquanto não inventamos de fazer a caminhada consciente.

Cartaz do filme "A Encruzilhada",

E para acender os nervos de aço desse xamã em gestação, Muddy Waters ajuda a botar uma das grandes forças cegas da vida a serviço da Opus: a eletricidade. No filme “Crossroads” (no Brasil “A Encruzilhada”), ele é mencionado como o inventor da guitarra elétrica. Ainda que não o tenha feito sozinho, foi sem dúvida um dos pioneiros na eletrificação das bandas. A energia aterradora presente no trovão é canalizada para dentro dos instrumentos, para produzir efeitos sonoros inconcebíveis antes disso. Mas, é importante ressaltar: dentre os grandes bruxos do blues, a força elétrica foi canalizada justamente pelo que carregava o pântano em seu nome. As Águas Lamacentas trazem à tona todo o vigor simbólico de outra lâmina, o Arcano XVIII do Tarô, a carta da Lua. É de “lua” (“luna”, em latim) que vem a palavra “lunático”, característica atribuída aos xamãs, oráculos e sacerdotes do transe em diversas culturas, e este é um Arcano que, por sua vez, segundo alguns intérpretes, simboliza morte e renascimento, ou “a reforma da casa”. O mestre tarólogo Pedro Camargo, por exemplo, interpretando a carta da Lua, nos fala sobre essa empreitada: “Durante as obras (de reforma da casa) haverá desconforto, sujeira, os esgotos estarão abertos e a presença de micro-organismos que ameaçam a saúde será constante”. Não poderia haver descrição mais cristalina do que foram a quebradeira e podridão promovidas pelo rock em seu apogeu. E ninguém esqueça que o Arcano “A Lua”, no Tarô de Marselha, traz em sua composição tanto lobos uivantes quanto um caranguejo que sai da lama.

Para uma imensa parcela de toda uma geração, tornava-se cada vez mais evidente que vínhamos nos movimentando dentro de uma gaveta apertada, com percepções limitadas e repetitivas. A sensação crescente de sufocamento dentro do consenso social e o tédio face à repetição de padrões, dos discursos religiosos/militares/científicos que não solucionavam nada, somados aos caminhos recém-abertos pelas psicoterapias e ao desenvolvimento da neurociência, assim como os primeiros contatos menos fantasiosos com as religiões orientais e com as práticas xamânicas norte-americanas – todos esses elementos inflamaram uma vigorosa intuição de que nossa mente abriga imensidões muito maiores do que poderíamos perceber enquanto estivéssemos bem amestrados. Havíamos engolido a sugestão (essa sim!) diabólica de soltar o Fio de Ariadne. E a raiva contra essa condição estreita explodiu, como tinha que ser. Mas ninguém tinha o mapa pra sair do labirinto.

Tudo bem, no fim dos anos 50 do séc. XX as referências às práticas meditativas do Hinduísmo e do Budismo já nos chegavam com mais facilidade e fidedignidade, ainda que muito envoltas em uma capa de mistério esotérico/ocultista. No entanto, as então encorajadoras pesquisas com LSD e a popularização de relatos detalhados sobre o uso das plantas de poder pelos índios da América do Norte pareciam mais do que um convite tentador: as substâncias psicotrópicas foram consumidas em larguíssima escala, na tentativa de derrubar rapidamente os muros do nosso consenso psicológico. Neste ponto, lembro a extraordinária e “matadora” conversa que a Monja Coen, mestra zen budista brasileira, teve com seu mestre iniciador. Ela nos relata, que em meio a toda a onda do psicodelismo, perguntou-lhe se eram válidas quelas tentativas de expandir a consciência por meio das drogas, ao que o mestre respondeu: “Para que tentar entrar pela janela se existe uma porta?”. Sim, iniciávamos uma busca pelas portas, mas é evidente que tateávamos sem rumo certo. Depois de tantos séculos de compressão da vida íntima, seja por sistemas teológicos, seja mais recentemente pelas ditaduras filosóficas, econômicas e políticas, sendo nossa alma conduzida à força a viver “do lado de fora” sob vigilância atenta, é claro que nossa civilização não desenvolveu nenhuma intimidade com o que quer que seja a mente e seus caminhos. No entanto, esse sufocamento não conhece o perdão das potências psíquicas subterrâneas. A atitude rock and roll de colocar dinamite nas portas das percepções foi o ricochete irrefreável, o comando implacável: “Vamos derrubar essa porra desse labirinto e colocar o Minotauro no trono de Creta!!!”.

Um novo trovadorismo, lisérgico e elétrico, surge a partir das novidades testemunhadas. A pseudo-confiabilidade dos nossas balizas lógicas e sensoriais é desmascarada, nosso território sempre movediço se evidencia, e o que tanto nos confunde é justamente a natureza deste jogo demiúrgico em que nos metemos. As letras passam, então, a trazer tudo. O texto incandescente do rock visita lugares recônditos dentro da nossa alma, fala das atuais guerras tecnológicas e também das batalhas ancestrais, do nosso constante e mal-disfarçado flerte com a treva, do transe esquizofrênico, da nossa insatisfação crônica e agônica e relata as angústias dos profundos sofrimentos afetivos. Mas nossa experiência fugaz é revista numa viagem de ressignifação; esse trovadorismo eletrificado surge extraindo poder da grandeza épica de Tolkien, mergulhando nos vórtices abissais de William Blake, provocando os símbolos da tradicional cristandade e conduzindo ao salto no vazio interior – desligue, relaxe e escorregue no tobogã buraco de minhoca, “it is not dying, it is not dying”...

O Turbilhão foi acionado quando folk e o blues eletrificados botaram todo mundo na estrada, libertaram a sexualidade e o gosto pelos psicotrópicos. A descoberta do formato “banda”, montado sobre a estrutura bateria, baixo, guitarra e teclado (os teclados foram vitais para a definição do som dos anos 60 e continuaram sendo vastamente utilizados por todas as experiências do progressivo) ajudou a elaborar uma nova configuração de postura no palco e de relação artista-público. O hard rock aterrou as vibrações, trazendo peso, velocidade, fúria, criando os sons energéticos de uma música a um só tempo de farra e de guerra. O peso aumentou – a velocidade também e a fúria também – e o metal, definitivamente desenhado, com suas inúmeras vertentes, como se fossem uma grande rede de cavernas subterrâneas, fez ecoar sons grandiosos e sombrios e os gritos guturais de dragões enjaulados, ansiosos por alçar voo, enquanto o vômito do punk esculhambou merecidamente a afetação da “nobreza” ocidental, com um chute na porta e um soco no estômago, como numa gloriosa briga de rua. E as odisseias sonoras das muitas vertentes do progressivo tanto reconfiguraram a herança medieval e a melancolia romântica, quanto canalizaram sonoridades siderais que pareceram desenhar a trilha sonora perfeita para a ficção científica. Seus temas épicos, gigantescos, sem refrão e sem os tempos e os ciclos melódicos simples que compõem a nossa zona de conforto, usualmente ignoram nossa linearidade lógica, num território de experiências musicais que flutua do mais encantador lirismo às raias do bizarro, até hoje abrindo portais para um sem-número de universos paralelos. E, assim, franqueando o acesso a um jardim de infinitas veredas que se bifurcam, o vastíssimo rock and roll ajudou incontáveis viajantes a se libertarem do que há de mais ordinário na mente ordinária, injetando uma qualidade de força que impulsionou milhões a se rebelarem e enfrentarem os medos, a humilhação, a desolação e o aparente absurdo de estarmos aqui.

Um processo de recomposição do tecido humano ocidental se desencadeou em amplitude inesperada. A fornalha pulsante desses novos padrões musicais, para realizar a Opus a que se propôs, se alimentou de todo o material humano que pudesse encontrar e, para tanto, fez irromperem buscas por todos os símbolos e fragmentos possíveis da nossa história conhecida, bem como da nossa história imaginária. Os ocidentais começaram por pedir a bênção ao blues e, daí por diante, a todos: foram aprender com a Índia, com o Marrocos, com os vestígios árabes na Ibéria, com os ciganos, com o Vodu. Procuraram sofregamente nutrição nos seios de suas culturas-mães, em todas as tentativas de reaprender o paganismo, aprender as cantigas medievais, recuperar todos os símbolos esquecidos da era da Cavalaria, a bruxaria, as memórias celtas e vikings, a Bíblia, a magia cerimonial. Ao longo de toda a sua história, após o fim da civilização clássica, o Ocidente só conseguia materializar sua escuridão na forma dos três flagelos do Apocalipse: a Guerra, a Fome e a Peste (e a Morte provocada pelas três). Mas quando o rock and roll estava na plenitude de sua fúria incendiária, nossa civilização conseguiu engendrar, à luz do dia, algo que nunca tinha sido visto e ninguém imaginaria antes: conseguimos fazer, em escala planetária, A REPRESENTAÇÃO LÚDICA DA NOSSA SOMBRA. Revolvendo todos os parâmetros com os quais o Ocidente via a si mesmo e se relacionava com o resto do fenômeno humano e desaguando também em terras do Leste, estava lá, tudo no palco, nas capas dos discos, no imaginário em torno de cada banda. Gemidos, grunhidos, gritos, rebolados, irreverência, sexualidade escancarada, os ritos orgiásticos com as groupies (repetidos anonimamente por milhares de fãs). O cotidiano prosaico nunca mais foi o mesmo depois dessa martelada de Thor.

Passada a fúria, ele, o rock, se encontra atualmente sem bons médiuns em atividade, mas parece estar oculto entre nós, uma entidade sem forma, num silêncio soturno, irrompendo aqui e acolá - como os deuses da antiguidade, que não são mais venerados, mas que, em sã consciência, ninguém ousa dizer que não existem. Nos segurando na borda do Grande Vulcão, nos ensina a olhar para dentro do abismo onde escorrem sete quedas de lava e de marfim, ao passo que nosso centro de poder interno se acende como um acelerador de partículas. Muitos foram devorados pela energia cáustica que foi liberada, assim como muitos antes haviam perecido de apatia. Inúmeros caíram atordoados pelos movimentos tectônicos das nossas últimas convulsões culturais, e outros tantos pareceram enlouquecer ante as visões que se descortinaram. Mas, aqueles que vão além do transe bioquímico, que escapam tanto do enrijecimento quanto dos curtos-circuitos neurais, que atravessam a espessa massa de barulho – esses, terminam desaguando num vasto espaço sem dimensões, suspensos em ondas de silêncio profundo e, turbinas acionadas, escutam o que parece ser o sussurro primordial: “Set the controls for the heart of the sun, the heart of the sun... THE HEART OF THE SUN!”.