sábado, 12 de março de 2016

Playlist de Editores: Março/2016


No ar, a coluna “Playlist de Editores” deste mês de março! Em pauta, de livros a filmes, passando por discos, as indicações de cada editor sobre últimos títulos do universo da cultura a que se dedicaram.

Boa leitura!



- André Maranhão:



Minha indicação vai para um pequeno livro de Caetano Veloso, intitulado “Antropofagia”, e publicado pela coleção Grande Ideias. Fruto de uma conexão entre as editoras Penguin e Companhia das Letras, o ensaio de Caetano se divide em quatro seções: A Poesia Concreta; Chico [Buarque]; Vanguarda; Antropofagia; com passagens que apontam diversas influências na trajetória de Veloso, e que vão tanto nas figuras da Rádio Nacional, da Bossa Nova (na qual Caetano se declara um grande fã de João Gilberto e discorre muitos trechos dedicados a ele); quanto na turma do Iê-iê-iê (Roberto e Erasmo Carlos); e do Rock n’ Roll (Beatles, Rolling Stones).

Mas outro ponto que também chama atenção é a costura feita por Caetano a partir de grandes trabalhos da vanguarda brasileira – seja nos desdobramentos na Semana de Arte Moderna de 1922; no Concretismo, com os irmãos Haroldo, Augusto (e o “irmão por afinidade” Décio Pignatari); nos teatros do Grupo Opinião e de José Celso Martinez; no cinema de Glauber Rocha e, sobretudo, no grande impacto de Oswald de Andrade como fonte de inspiração, que daria de alguma forma, no Tropicalismo trabalhado por Caetano, que por sua vez, um dia chegou a declarar: “a tropicália é uma neoantropofagia”!


- Fernando Lucchesi:



Falar sobre “Tubarão” é chover no molhado. Foi o filme que inaugurou a era dos blockbusters (literalmente o “arrasa-quarteirão”) em Hollywood, injetando dólares e mais dólares na indústria cinematográfica, além de alçar ao estrelato o jovem diretor Steven Spielberg. Nessa edição de 40º aniversário de lançamento, há dois documentários excepcionais: The Making of Jaws que trata sobre as complicadas filmagens do longa (nesta edição, na íntegra, ao contrário da edição em DVD que mutilou mais de uma hora do original) e The Shark is Still Working - The Impact and Legacy of Jaws, que como o próprio subtítulo explica, avalia por meio de entrevistas de fãs e de pessoas envolvidas no projeto, o legado e o impacto causado pelo filme, principalmente na cultura pop. Além desses documentários, o Blu-ray apresenta uma versão restaurada do filme, diferentes trailers de cinema e spots para televisão. Indicadíssimo para fãs do filme ou simplesmente para aqueles que querem ver apenas um grande filme de suspense/aventura.




- Rógeres Bessoni:



Revisitando a obra do mestre, só para dizer junto com o coro de milhares: Jackson do Pandeiro é pra se torar. Tenho viajado pela obra dele, passando por diversos momentos da sua carreira intensa, profícua, genial. É fantástico ver o desenho, os contornos do “espírito” musical nordestino sendo definidos – tarefa grandiosa que ele dividiu com Luiz Gonzaga e mais uns poucos. Aí você mergulha em uma experiência estética completa, desde as formas que a língua portuguesa adquiriu no Nordeste, o vocabulário, o humor ora ingênuo, ora desconcertante, e toda a carga antropológica/sociológica que vem no pacote: os forrós, as sambadas, as brigas nas festas, os namoros, a descoberta do Rio de Janeiro (e o fascínio daí advindo), os traços cômicos do povo. E além da genialidade rítmica inconteste, Jackson também tinha grandes sacadas melódicas como intérprete. Aqui eu vou destacar uma das músicas menos comentadas – e que merecia inúmeras boas regravações e homenagens: Capoeira Mata Um. Do disco “Cabra da Peste”, creditada como sendo de autoria de Álvaro Castilho e De Castro, é uma obra-prima do tipo de balanço que iria fazer tanto a cabeça dos brasileiros nos anos 70 e seguintes. E digo mais, tendo sido gravada em 1966, pela temática e pela levada, não me impressionaria nada descobrir que essa música influenciou todo o começo da carreira de Jorge Ben Jor, por exemplo, além da sua incrível aproximação com os afro sambas de Vinícius e Baden (gravados no mesmo ano). Vale muito a pena o mergulho na inventividade desse grande monstro da inventividade sonora.



- Bruno Vitorino:




Em 1995, enquanto o Sepultura - a maior banda do rock brasileiro! - pré-produzia seu clássico Roots, o Pantera trabalhava seu mediano Far Beyond Driven e o Korn choramingava problemas de relacionamento familiar e retratava toda uma geração de adolescentes com sérios problemas de autoconfiança viciados em MTV; uma banda lá dos confins da Suécia quebrava todos os paradigmas até então estabelecidos para o Metal: era o Meshuggah.

Com seu disco “Destroy, Erase, Improve”, o quinteto de Umea sacudiu o universo metaleiro. Musicalmente: agressividade, precisão, graves, e, sobretudo, padrões polimétricos bastante complexos. Melodia? Raramente, e só para criar ainda mais tensão rítmica. Poeticamente: letras afiadas sobre uma utopia pós-apocalíptica, tecnológica e desumanizada que mesclava indústria de massa, cybertech, relações de poder e desorientação ontológica. O “horror” descrito por Conrad em O Coração das Trevas, só que com uma hashtag na frente. O resultado era uma implacável sequência de porradas ritmicas que denunciava aos berros o apagamento do indivíduo idealizado pelo Iluminismo em prol do andróide sem alma criado do consumo frenético e pelo incipiente ideário eletrônico que se desenhava (e cujo resultado hoje vivenciamos). Uma paisagem sonora desnorteante e por vezes irrespirável, mas absolutamente fascinante.

Destaque para a insanidade de Future Breed Machine, o forte conflito métrico de Beneath, as inesperadas modulações rítmicas de Soul Burn, os constantes deslocamentos de acentuação rítmica em Transfixion e a tessitura métrica de Sublevels. E antes que me esqueça: dê-se ao trabalho um olhar mais atento às letras do baterista e virtuose Tomas Haake. Valerá o esforço, vá por mim.

Altamente recomendado!



- Giba Carvalho:


Luiz Melodia é um artista único. Após 13 anos, o “Negro Gato” nos presenteia com um excepcional álbum de inéditas. “Zerima” é uma simbiose perfeita de ritmos e influências. Certamente por dois motivos inerentes a sua carreira. O primeiro é o respeito ao tempo e aos sentimentos musicais na hora de compor.  E o segundo, é por ele não forçar a barra para que tais inovações surjam. O processo com Melodia é totalmente espontâneo. E, em minha opinião, é daí que o verdadeiramente novo surge. A demora é totalmente justificada pelo compromisso com a qualidade e com o que é de fato faz-se relevante para a música nacional.

A reaproximação de Melodia com suas origens do samba, torna-se cada vez mais clara. Notadamente após o estupendo Acústico MTV (o melhor de todos que foram produzidos no Brasil), estas mudanças voltaram com tudo. Como se o lado neotropicalista tivesse ficado no passado e o minimalismo oriundo das cordas e instrumentos percussivos voltassem a bater no coração do Melodia. Tal mudança nos proporciona com clareza, uma percepção prática e estética de quão magnífico é o Luiz, muito embora, ele sempre tenha corrido à margem no rótulo de sambista.

No álbum, encontramos ainda participações especiais. Na dissonante (em termos de arranjo) releitura de Maracangalha (Dorival Caymmi), temos a participação de Mahal Reis (filho de Melodia) que introduziu um trecho rap no balanço que toma conta da canção. E, na maravilhosa Dor de Carnaval, a participação é de Céu. A junção da versatilidade ímpar de Melodia com o modo único da cantora-compositora paulista cantar tornam esta canção uma das “maravilhas contemporâneas” do trabalho. O restante é uma verdadeira AULA de bom gosto e de um excepcional crooner brasileiro.

“Zerima” nos traz um Melodia disposto, cheio de inspiração e com muita vontade de fazer música de verdade!

COMPLETAMENTE INDISPENSÁVEL!


quarta-feira, 9 de março de 2016

A Última Lôa de Naná Vasconcelos – Por Bruno Vitorino


Pernambuco perdeu hoje um de seus filhos mais ilustres: o percussionista Naná Vasconcelos. Embora ultimamente fosse conhecido quase exclusivamente como o responsável pela abertura do carnaval do Recife, Naná tem uma vasta e importantíssima atuação na música brasileira e no cenário jazzístico internacional. Forjou-se artisticamente nos férteis terrenos da música folclórica pernambucana, tocando percussão nos bailes do Batutas de São José e participando das gravações dos discos de frevo de Nelson Ferreira nos áureos tempos da Rozenblit. Depois, mudando-se para o Rio de Janeiro na virada dos anos 1960/70, estabeleceu parceria com Milton Nascimento e outros artistas nacionais num dos momentos mais criativos que a música popular brasileira já teve.
Por esta época, foi descoberto pelo saxofonista argentino Gato Barbieri, figura aclamada e respeitada no mundo do jazz, e passou a integrar o grupo do instrumentista. Foi através do disco “El Pampero” de Barbieri, gravado ao vivo no Montreux Jazz Festival de 1971, que Naná apresentou ao mundo uma imaginação rítmica sem fim e uma capacidade absurda de estabelecer fortes vínculos emocionais no perigoso ato da improvisação. Daí para frente, se inseriria na música improvisada com mais vigor em parcerias com Jan Garbarek, Ralph Towner, Arild Andersen, Pat Metheny, Don Cherry (no seminal trio CODONA) e Egberto Gismonti, seu grande alter ego musical, com quem gravou o obrigatório “Dança das Cabeças” pelo selo alemão ECM Records. Influenciado por Jimi Hendrix, compreendeu que as possibilidades dos instrumentos são infinitas e, especializando-se no berimbau, ampliou as fronteiras estéticas dos sets percussivos, fazendo das células rítmicas a matéria prima de sua poesia sonora.
Em 2007, num tempo em que o Festival MIMO ainda se chamava “Mostra Internacional de Música de Olinda” e se realizava na Cidade Alta, tive a oportunidade de ver o duo Vasconcelos/Gismonti em ação tocando na íntegra o repertório do clássico “Dança das Cabeças”. E não foi mais um desses muitos reencontros burocráticos e revisionistas que tantos artistas outrora criativos apresentam. Ao contrário! Foi a celebração da liberdade criativa compartilhada, da forte sinergia proporcionada por uma total entrega às composições, do risco inerente ao desconhecido da improvisação e dos eventos musicais espontâneos, da maestria artística depurada numa longa jornada musical. Tenho muito firme na memória a densa experiência estética e o poder transformador do concerto, o quanto ele reverberou em mim e me fez pensar sobre o que eu queria da música enquanto instrumentista e compositor.
Ao acordar hoje, fiquei sabendo de sua partida. Uma lástima. O mundo perde bastante com seu retorno ao Éter e o vazio artístico que vivenciamos hoje travestido de Cultura se alastra um pouco mais.
Obrigado por sua música, Naná! Sua Memória permanecerá viva para aqueles ainda vêem na música um portal para a comunhão espiritual da humanidade.

R.I.P.

terça-feira, 1 de março de 2016

Don Ellis Redescoberto - Por Bruno Vitorino

O trompetista Don Ellis. Fonte: Google Imagens.

Há um filme muito ruim que supreendentemente, ao menos para este que vos escreve, foi bastante aclamado por crítica e público chamado Whiplash. O longa conta a história de Andrew, um jovem baterista de jazz que sonha em ser Buddy Rich, mas que não consegue tocar em double time swing nem manter o andamento de um tema. Por conta disso, apanha na cara, é humilhado publicamente e se submete a outras violências morais do professor-regente, Terence Fletcher, na busca por uma perfeição sem propósito. Risível e imensamente frustrante.

Risível, porque um filme tão raso e clichê, que faz da violência mais banal recurso estético, foi recebido pelos sabichões do cinema e pelo público apreciador do circuito não comercial como uma narrativa brilhante sobre o torturante caminho da excelência artística. Balela! Cisne Negro fez isto. Imensamente frustrante, porque a película não apenas perverte gratuitamente o ideal de mestre, aquela generosa entidade forjada na experiência e na sabedoria, e macula a beleza do vínculo que este estabelece com seu discípulo, como também perde a oportunidade de realmente fazer a leitura crítica que se propôs de uma juventude à deriva, sem objetivos, causas ou utopias. E sem falar da caricatura grotesca que o longa faz do ensino do jazz nas escolas de música e do gênero em si enquanto manifestação artística. Se a intenção era atacar o necrotério que Wynton Marsalis chama de jazz, o resultado foi o tédio. Mas, pelo menos para uma coisa o filme serviu: apresentar à nova geração a Don Ellis Orchestra.

Isso por que Whiplash é um tema “de verdade”, composto por Hank Levy especialmente para a big band do trompetista californiano, que abre o interessante disco “Soaring”, de 1973. A versão original da composição que dá nome ao filme é bem mais rica em termos de interpretação, arranjo e improvisos do que à que foi às telonas no arranjo pasteurizado de Justin Hurwitz, um pianista com treinamento clássico que não entende lhufas de jazz, como ele mesmo admitiu. A gravação original é vibrante: os metais em fortíssimo anunciam o tema num esquema de “chamada e resposta”, logo depois a cozinha estabelece o funkeado 7/8 - com destaque para o baixo elétrico com os captadores abertos e realce nos agudos, dando-lhe uma sonoridade meio rock -, e a melodia vai sendo apresentada numa forma que privilegia seções interpoladas que mudam a atmosfera da composição e oferecem contrastes sonoros fabulosos. Repare, por exemplo, no delicado pontilhismo das cordas servindo de cama para os metais em surdina e no efeito rítmico que esta sobreposição métrica causa logo no primeiro minuto da música. E, não menos importante, o solo de Don Ellis é simplesmente matador.

O trompetista, que se graduou na Boston University, tocou com Charles Mingus (“Mingus Dynasty”), George Russell e inúmeras orquestras, construiu sua carreira musical montando sua própria progressive big band. No entanto, ao contrário do sincretismo de Mingus, que misturava folk music, bebop e música de vanguarda, ou da complexa arquitetura sonora das large ensembles de Oliver Nelson, Ellis privilegiava as experimentações com compassos incomuns, padrões rítmicos assimétricos e coloridos tímbricos exóticos proporcionados por combinações e dobras inusuais de instrumentos. Tudo isso em meados dos anos 1960, quando sua orquestra causou algum impacto no cenário jazzístico.

“Soaring” é um ótimo ponto de partida para os que desejam conhecer a sua música. Acessível a ouvidos pouco afeitos à música instrumental, o álbum traz composições bastante intrigantes que expõem com muita precisão a essência criativa e interpretativa de Ellis, integrando num mesmo território um sólido conhecimento da tradição orquestral do jazz, elementos da música erudita, a sonoridade dos instrumentos elétricos popularizados com a expansão do rock, o elemento supresa da improvisação individual e a plasticidade da malemolênica do funk. Além do hoje famoso “Whiplash”, há temas como a quasi rapsódia “Sladka Pitka”, que vai de uma camerística introdução de cordas e madeiras, passando por um balançado funk em 9/8 até descambar num final abstrato e inesperado; a grooveada “The Devil Made Me Write This Piece” e suas digressões em relação à estrutura principal; “Go Back Home”, puro balanço e metaleiras em evidência; e a lírica “Invincible”, onde a confluência das técnicas de orquestração erudita e jazzística se mostra com mais vigor.

É bem verdade que às vezes a big band coloca um pezinho no cafona, trazendo um pouco daquela sonoridade brega dos anos 1970, especialmente nos momentos em que os arranjos dão muita ênfase às cordas ou quando o técnico de som capricha no reverb do trompete - como em “Image of Maria”. Mas sempre há algo inesperado, uma reviravolta na trama da composição, feito o blues em 7/4 no meio de “Sidonie”, que vale a escuta.

Voltando ao filme, lembro de ter ficado tão indignado com Whiplash que soltei involuntariamente um sonoro “que bosta!” em pleno Cine Rosa e Silva mal terminada a película. Lembro também de um cabra que estava ao meu lado com sua garota me lançar um olhar de reprovação e dizer para ela numa falsa discrição: “É por que é um filme sobre jazz. Se fosse sobre o rock ninguém dizia isso.” Não! Não é um filme sobre o jazz, sobre a artisticidade ou sobre a elevação espiritual proporcionada pela música. É somente uma produção superestimada que faz do jazz um pastiche, do roteiro, um decalque pobre de Kafka e onde o diretor brinca de Lars Von Trier. Fato! Mas não deixa de ser um alento ver, de certa forma, Don Ellis redescoberto através dele.


sábado, 27 de fevereiro de 2016

Oscar 2016: Os Indicados a Melhor Filme - Por Fernando Lucchesi


Aqui estamos mais uma vez para dar nossa impressão sobre os indicados a melhor filme do ano de 2015 (veja AQUI o texto do ano passado), de acordo com a academia de artes e ciências cinematográficas de Hollywood. Entre os indicados tivemos gratas surpresas e algumas produções decepcionantes.

A ordem dos filmes no texto está em conformidade com os meus favoritos, começando por “A Grande Aposta”. E você, leitor? Concorda? Discorda? Dê a sua opinião!


A Grande Aposta


Sem dúvida alguma o grande filme do Oscar. É inacreditável como Adam Mackay e Charles Randolph adaptaram o livro The Big Short de Michael Lewis e deram uma fluidez impensada para um tema espinhoso: a crise financeira de 2008. Além de um roteiro extremamente bem feito, o filme conta com uma edição vigorosa que prende a atenção do espectador a cada nova cena e intercala várias histórias sem perder o rumo delas. O elenco do filme é simplesmente excelente. É difícil destacar apenas um. Possivelmente perderá o prêmio de melhor filme para “O Regresso” (já que a academia gosta dessas histórias clássicas de vingança e redenção contra as adversidades), mas se a academia fosse premiar ousadia daria o prêmio para “A Grande Aposta”. Deve levar o prêmio por roteiro adaptado. Pode levar o prêmio de montagem (embora nessa categoria, “Mad Max - Estrada da Fúria” seja favorito).

O Quarto de Jack


Um dos filmes mais humanos e comoventes dos últimos anos, “O Quarto de Jack” conta a história de um garoto de cinco anos e sua mãe que vivem o cotidiano dentro de um quarto. O que o público não percebe, de início, é o terror da situação: Jack e sua mãe não vivem ali por vontade própria, mas por que estão encarcerados, vítimas de um sequestrador. Jack é, na verdade, filho do sequestrador, já que sua mãe foi sequestrada há 7 anos. Para que Jack não veja “Old Nick” (nome pelo qual a mãe de Jack se refere ao sequestrador), ela o mantém dentro de um armário sempre que seu algoz entra no quarto. A “realidade” para Jack é o seu quarto e o que é visto na televisão. O diretor Lenny Abrahamson opta por contar a história do ponto de vista do menino, o que faz um contraponto muito bom entre a inocência e o terror que ele não compreende. Tudo bem que esse recurso não é novo, mas imprime certo lirismo ao filme, que por si só já aborda um tema pesado. Brie Larson é uma grata revelação como atriz. É um papel carregado de dramaticidade e ela consegue imprimir a intensidade certa, sem exageros. É favorita ao Oscar de melhor atriz merecidamente. Destaque também para o garoto Jacob Tremblay, que interpreta Jack. Por se tratar de uma produção menor (leia-se: de baixo custo) não deve levar o Oscar de melhor filme, mas é uma grata surpresa entre os indicados.

MAD MAX - Estrada da Fúria


O diretor George Miller (realizador da trilogia original de Mad Max) parece que pegou o que o interessava dos filmes anteriores, jogou em um liquidificador e criou o filme de ação mais interessante dos últimos anos. É bem verdade que o filme aborda questões como o fanatismo, a falta de água, a mulher como objeto, mas o que torna “Mad Max - Estrada da Fúria” um grande filme são as suas espetaculares sequências de ação. O cenário árido escolhido por Miller nos dá a ideia de um mundo pós-apocalíptico, em que água, combustível e armas são itens de primeira necessidade. A trama se resume basicamente a tentativa da Imperatiz Furiosa (Charlize Theron) fugir com as cinco esposas de Immortan Joe (Hugh Keays-Byrne), um ditador de uma cidadela que fornece água em quantidades escassas à população e assim os controla e utiliza essas “esposas” unicamente para que possam gerar herdeiros para ele e assim manter a sua família no poder através dos anos. Nessa fuga é que entra o herói Max Rockatansky (Tom Hardy), feito prisioneiro por Immortan Joe.

Miller sustenta o seu filme com épicas cenas de ação que vão desde perseguições quase infinitas a tempestades de areia. O elenco também está afiadíssimo, com destaque para Hugh Keays-Byrne, como o vilão Immortan Joe. Um filme de qualidades técnicas inquestionáveis. É o favorito em algumas categorias técnicas (montagem, direção de arte e maquiagem). Seria uma surpresa se ganhasse o Oscar de melhor filme, uma vez que academia dificilmente premia filmes de ação com a principal estatueta.

Perdido em Marte


Uma das grandes surpresas de 2015, “Perdido em Marte” tem uma mistura brilhante entre humor e ação. A história do astronauta que fica isolado em Marte após a sua equipe da missão presumir que o mesmo está morto, é contada com fluidez e muito bom humor através da trilha sonora, basicamente calcada na disco music, e de um roteiro inspirado cheio de tiradas bem pensadas. Matt Damon está excelente no papel do astronauta esquecido. Seria a oportunidade de a academia reparar a injustiça de nunca ter dado um Oscar para Ridley Scott, realizador de grandes filmes como Blade Runner, Alien: O Oitavo Passageiro e Gladiador, mas vão dar o prêmio pelo segundo ano seguido para Iñárritu . Se Scott ganhar será uma grande surpresa.

O Regresso


Uma história clássica sobre vingança, um protagonista que enfrenta adversidades físicas/naturais e um vilão de primeira categoria. Pronto! Você já tem os elementos de um filme feito para, se não ganhar, pelo menos ser indicado ao Oscar. Obviamente que se trata de um exagero. Não basta ter apenas esses elementos. São necessárias atuações inspiradas e uma história que seja, ao menos, convincente. Além do apuro técnico, claro.

É o caso desse “O Regresso” do diretor vencedor do Oscar passado (e ao que tudo indica desse também), Alejandro González Iñárritu. O filme narra a longa jornada de Hugh Glass, vivido por Leonardo DiCaprio, em busca de vingança contra seu antigo companheiro de caçada, John Fitzgerald (Tom Hardy) que além de tê-lo deixado para morrer, assassina Hawk (Forrest Goodluck), filho de Glass. Tecnicamente o filme é um primor: dos cenários naturais gelados do Canadá, à fotografia exuberante de Emmanuel Lubezki, passando pelas interpretações brilhantes de Leonardo DiCaprio e Tom Hardy. O ponto alto do filme é sem dúvida nenhuma o ataque de urso sofrido por Glass. Impecável!

O grande problema do filme reside no roteiro e na montagem. O filme é demasiadamente longo (diversas situações poderiam ser cortadas sem atrapalhar a compreensão da trama) e a edição torna o filme monótono por algumas vezes. Isso para não falar no “salto” proporcionado na história: Glass, completamente destroçado pelo ataque de urso e só conseguindo rastejar, consegue avistar do alto de um penhasco um rio. Na cena seguinte lá está ele bebendo da água do rio. Esse recurso de edição, e por vezes até mesmo de roteiro, não é novidade. Hitchcock até tinha um nome para isso: Mcguffin. Isso não torna o filme menor, mas deixa o espectador desconfiado. Além disso, a facilidade com que a índia foge do acampamento dos franceses é no mínimo questionável.

Trata-se de um ótimo filme, mas longe de ser a obra-prima que estão pintando dele. De acordo com as previsões deve levar os prêmios de filme, diretor, ator (Se bem que é bom Leonardo DiCaprio se benzer. Se perdeu o Oscar pelo papel em O Lobo de Wall Street é bom colocar as barbas de molho) e fotografia.

Ponte dos Espiões


Mais uma vez, Spielberg usa um tema interessante (os espiões russos e americanos no cenário da guerra fria) para exaltar os valores americanos de uma verdadeira democracia. Tom Hanks é um advogado especialista em seguros que, por força das circunstâncias, deve defender um espião russo da acusação de espionagem e por consequência da pena capital. Por defender um “inimigo público”, Hanks ganha antipatia de toda a sociedade, mas graças aos ideais pregados pela constituição americana, ele nunca se desvia do caminho, mesmo quando sua casa é metralhada no meio da noite. Spielberg, numa tentativa de fazer um filme no estilo Frank Capra, com um personagem idealista, firme nas suas propostas joga fora a chance de fazer uma thriller de espionagem ao menos interessante para mais uma vez encher a tela de patriotada americana de como os Estados Unidos são justos e humanos. Além de uma edição e direção de arte brilhantes, salva o filme ainda a atuação Mark Rylance (como o espião russo Rudolf Abel). Dificilmente levará algum prêmio.

Spotlight - Segredos Revelados


O tema é explosivo: a investigação feita pelo jornal Boston Globe que revelou uma série de abusos praticados por padres católicos. O filme segue a linha de jornalismo investigativo que tem entre seus maiores expoentes Todos Os Homens do Presidente de Alan J. Pakula. Mas diferente do filme de Pakula, em que a cada nova pista o mistério vai se elucidando, neste Spotlight já sabemos desde início sobre o que trata a investigação. O filme termina se limitando a buscar testemunhas que se disponham a depor contra a uma instituição poderosíssima, de forma que o filme parece rodar em círculos e não entrega nada de surpreendente ao espectador. A grande tensão gerada pelo filme é saber se a reportagem deve ser adiada para que mais padres sejam denunciados ou publicá-la logo e evitar que concorrentes publiquem primeiro, mas com menos agressores denunciados. Mais um exemplo de filme que foi indicado só pra fazer quantidade. Grandes atuações do elenco (a exemplo de “A Grande Aposta”), com destaque para o surpreendente Michael Keaton, que depois de uma carreira errática parece ter se revelado um ótimo ator. Não deve receber prêmios.

Brooklyn


Desde 2010, quando a academia decidiu que poderiam ser indicados até 10 filmes ao Oscar de melhor filme, sempre acontece de a lista conter indicados que não se sabe por que estão na lista. São exemplos claros disso nos últimos anos Sniper Americano, Filomena e Cavalo de Guerra. Na edição desse ano, este papel coube a “Brooklyn”.

É realmente incompreensível como esse filme foi indicado ao prêmio principal e a mais dois prêmios. Tão inacreditável quanto isso é que o roteiro tenha sido escrito por Nick Hornby (ele mesmo, autor de Alta Fidelidade e O Grande Garoto). O filme é uma daquelas histórias de amor que você provavelmente já viu infinitas vezes. A trama é simples: fugindo da falta de perspectiva na Irlanda, jovem garota (Saoirse Ronan) vai para os EUA em busca de uma vida promissora. Chegando lá, tudo corre bem, ela se apaixona e tudo anda às mil maravilhas. Por conta de um imprevisto, ela decide retornar para a Irlanda e termina se envolvendo com outro rapaz. O grande dilema da personagem é ficar em sua terra natal e começar de novo ou voltar para os EUA onde já tem uma vida encaminhada (muito novo isso, né?).

Esse é uma daqueles filmes que em alguns anos será apenas uma nota de rodapé em livros sobre cinema, apenas por ter recebido essa indicação à melhor produção do ano. Se esse filme receber algum prêmio será a prova de que os votantes da academia perderam completamente o bom senso.

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Variações em 4/4 - Blackstar



Na primeira coluna do ano, os editores do blog comentam o último trabalho de David Bowie, “Blackstar”.

Boa leitura!


- Fernando Lucchesi:         

Se há algo que caracterizou David Bowie durante toda sua carreira foi a quase patológica necessidade de constante mudança, tanto visual como musical. Isso fez com que musicalmente Bowie explorasse uma quantidade enorme de sons e ao invés de seguir, era ele quem ditava a tendência do que viria ser feito. Muito dessa amálgama de estilos está presente em “Blackstar”, praticamente um disco-testamento do músico inglês.
Embora haja um grande predomínio de saxofone nos arranjos das músicas, não se trata propriamente de um disco de jazz (vi algumas críticas dizendo isso). O que caracteriza o disco, e isso possivelmente foi causado pelo estado de ânimo de Bowie, é um tom lúgubre, triste, por vezes até sufocante das canções do álbum. A única música que se aproxima de um rock é Sue (Or In a Season of Crime), com uma linha de baixo-guitarra mais acelerada e cheia de distorções. As outras canções do disco possuem estrutura semelhante, mas com pequenas diferenças nos arranjos.

A longa faixa-título, Blackstar, entremeia sax, flauta, batidas eletrônicas tudo dentro dessa atmosfera densa, pesada, com a voz de Bowie surgindo com uma voz quase suplicante. O mesmo se aplica (com algumas mínimas diferenças) à ‘Tis a Pity She Was a Whore e Girl Loves Me, que seguem a mesma estrutura de Blackstar.

Dollar Day já foge um pouco mais do padrão das outras. A música abre com piano e sax se misturando e segue com um violão com uma levada folk. Uma música que poderia estar perfeitamente em algum disco do REM. É o momento do disco em que Bowie diminui os efeitos eletrônicos presentes nas outras faixas. Já I Can´t Give Everything Away lembra algo de “Low” (disco de Bowie de 1977). Nessa faixa há uma retomada do uso de efeitos eletrônicos, teclados e há espaço até para um solo de guitarra.

Mas é na letra de Lazarus (transformado em um belíssimo vídeo) que Bowie realmente parece fazer o seu canto de cisne: “Olhe aqui para cima/Estou no paraíso/Tenho cicatrizes que não podem ser vistas. /Eu tenho drama/não pode ser roubado/Todo mundo me conhece agora.”. Um brilhante epitáfio para um dos artistas mais representativos do século XX.


- Rógeres Bessoni:

Há inegáveis dificuldades em escrever sobre o último trabalho musical de David Bowie. Se, por um lado, todos já falaram que “Blackstar” é um disco de verdadeira despedida (e repetir isso tenderia a ser um mero cliché), por outra via, uma análise detalhada sobre a obra exigiria uma pesquisa rigorosa sobre muitos elementos e poderia desembocar num artigo denso sobre estética, extrapolando os limites desta coluna. Isso porque é impossível falar de qualquer trabalho de David Bowie separado do autor – trata-se de um dos poucos artistas que praticamente impossibilitam tal “corte epistemológico”, ainda que momentâneo. Isso porque Bowie pertenceu à rara categoria daqueles que parecem viver toda a sua “vida pública” (porque era discretíssimo no âmbito pessoal) como se se tratasse de uma consciente composição estética, uma arquitetura experimental recorrendo a diversos campos de linguagem, o intento de uma realização artística de uma certa forma aproximada à maneira como Todorov interpreta ter sido a vida de Oscar Wilde, por exemplo. No caso de Bowie, isso incluía, TAMBÉM, compor e gravar discos.

Pois bem, é nesse contexto que Blackstar parece, de fato, cumprir sua função de arremate. O disco tem um tom “nublado”, até mesmo um tanto sombrio, mesmo nos momentos mais dançantes, como em ‘Tis a Pity She Was a Whore. A minha preferida, Blackstar, ganhou um clip poderoso e impactante, uma belíssima obra de fotografia, em que o ritual com o crânio, encenado em meio a espantalhos, pode facilmente ser entendido como uma contemplação sobre a morte. Além de tudo, vale ressaltar a tão comentada letra de Lazarus, em que o “eu lírico” (se posso usar aqui este termo) canta como se já estivesse morto. Esses conteúdos parecem demonstrar que Bowie sabia muito bem o que estava fazendo e queria, de fato, "gravar em vida um disco póstumo".

Fico assim impossibilitado de comentar Blackstar como se fala simplesmente de qualquer “lançamento”. Não é o trabalho de uma banda ou artista solo que lançou um disco e quer sucesso suficiente para excursionar, ganhar uma grana e os elogios pela obra. Aqui, Bowie compôs uma despedida e... partiu. Não ficou para ouvir qualquer opinião, e talvez não fizesse mais a menor questão disso. Qualquer análise em termos de “gostei/não gostei” ou “ficou bom/não ficou bom” seria pueril e até mesmo leviana. Trata-se de uma obra definitivamente madura, e sendo Bowie o alquimista/experimentalista estético que sempre foi, a sensação é que se está ouvindo (e assistindo nos clips que foram feitos para este disco) uma precisa composição em que cada coisa está exatamente onde ele queria que estivesse, em que cada timbre, palavra e andamento (assim como as cores, cenários e figurinos nos clips) foram intencionados. Bowie não estava mais tateando para ver o que “poderia dar certo ou não”, nem buscando louvores, nem pretendendo ganhar absolutamente nada mais deste mundo. Trata-se de um mestre do desconcerto, manuseando hábil e melancolicamente as tintas que aprendeu a dominar em décadas de manipulação ininterrupta, para compor sua partida desta terra. Agora, sim, com a obra completa, ele se retira e sai de cena. Fica desenhado um ideograma – ou, melhor, talvez um criptograma. Não me surpreenderia nada se, no futuro, observadores atentos percebessem que Bowie, junto com mais uns outros poucos mestres, deixaram criptografadas as fórmulas mágicas que nos ajudarão a dissolver uma era de mediocridade e pobreza espiritual que, parece, apenas se inicia.


- Giba Carvalho:

David Bowie sabia que estava perto do fim e “Blackstar” não é sombrio à toa! É um passeio real da mente mais criativa do mainstream musical mundial, pelos caminhos inóspitos da morte. Talvez por isso, seja o trabalho que menos flerta com Rock ‘n Roll em toda carreira do Camaleão. Por tratar-se de Bowie, não posso citar de onde vêm tantas influências. Encontramos elementos de Jazz Fusion, passando pelo Dub e chegando ao Rap em alguns momentos. Não tenho dúvida ao afirmar: trata-se de mais uma guinada violenta no histórico de trabalhos do cara.

Buscando talvez uma inovação maior ainda do que as de costume, o Camaleão foi buscar na cena Pós-Jazz de Nova Iorque nomes consagrados e que, notadamente, fossem capazes de trabalhar com a mais variada sorte de improvisos. No saxofone – Donny McCaslin, na guitarra – Ben Monder (ambos frutos do encontro anterior com a pianista Maria Schneider), na bateria o espetacular Mark Giuliana (Mehliana), o contrabaixista Tim Lefebvre (Tedeschi Trucks Band) e o tecladista Jason Lindner. Com um time deste quilate, somado a capacidade criativa de Bowie, não tenho dúvida em afirmar que Blackstar é um dos trabalhos mais interessantes lançados em 2015.

Trata-se de álbum de vanguarda (anticomercial), indiscutivelmente! E, mesmo trazendo uma estranheza caricata, quem escuta o álbum sabe que a personalidade de Bowie está entranhada no mesmo.

Indicadíssimo!


- Bruno Vitorino:

Inegavelmente a partida de David Bowie deste mundo de desorientação, destradicionalização e hedonismo desenfreado torna as coisas ainda mais difíceis para a Cultura. Nos últimos dois meses, tantos mestres voltaram ao Éter que é para mim quase impossível não ser fatalista ou, para usar uma expressão de um grande pensador que nos deixou ontem – Umberto Eco -, “apocalíptico”. Pois, a cada grande nome que parte, um vazio criativo se agiganta e se apossa de nosso ideário, substituindo transcendência, substância e profundidade por distração, aparência e efemeridade, como se uma marcha contundente levasse a humanidade à beira do precipício da idiocracia e do irracionalismo.

Só isso bastaria para ouvirmos “Blackstar” com uma solene reverência e profundo comprometimento estético. Mas, o disco é, ainda por cima, de uma riqueza artística surpreendente e cada vez mais rara no mundo de espumas em que vivemos.

A esta altura, todo mundo minimamente ligado sabe que o disco é um testamento musical concebido por Bowie na iminência da morte. A própria capa do trabalho deixa isto bastante evidente: uma grande estrela negra imponente e altiva que oculta, além de sua projeção inteiriça, seus frangalhos, como um astro que se despedaça e sucumbe. Ok. Só que o artista inglês não transformou sua doença – o câncer – num libelo clichê contra a morte que ceifa a sua vida de ídolo pop. Ao contrário! Bowie fez desse funesto território o espaço para uma última metamorfose estética, como era de seu gosto arredio a zonas de conforto, e o local perfeito para expurgar suas angústias, medos e dores enquanto ser humano, indivíduo que enxerga o próprio ocaso, em letras fortíssimas em primeira pessoa na intenção, imagino, de preparar seu espírito para o fim. O resultado é um trabalho marcado por uma atmosfera lúgubre - como num conto de Edgar Allan Poe – que mescla com muita precisão recursos eletrônicos, cordas, sopros e guitarras distorcidas, amalgamados em belos (e ousados) arranjos.

Destaque para o si menor tortuoso de Blackstar, uma suíte em duas partes sobre a “vela solitária” que trazemos em nosso universo interior; o grito desesperado de Lazarus; a base groove de Sue (Or in a Season of Crime) em contraponto à melodia flutuante na voz; o vocal quase recitativo de Girl Loves Me; o inesperado caminho harmônico de Dollar Days; todas as intervenções do saxofone de Donny McCaslin (e não, não é um disco de jazz, e sim um disco com elementos jazzísticos); a presença musical do produtor Tony Visconti.

Em resumo: maestria, comprometimento e risco. O que mais poderíamos querer?

Indispensável!

domingo, 17 de janeiro de 2016

Playlist de Editores: Janeiro/2016


No ar, a primeira coluna “Playlist de Editores” do ano! Nesta edição, os nossos editores vão além das audições de discos e indicam livros e filmes que lhes chamaram a atenção recentemente. Afinal, se o painel da Cultura se manifesta em várias plataformas expressivas, exercitar a sensibilidade artística e o prazer intelectual somente através dos ouvidos é limitar o alcance da experiência estética, não é mesmo?

Boa leitura!


- Rógeres Bessoni:



Estou voltando a mergulhar num dos discos (para mim) mais geniais da América Latina na segunda metade do séc. XX: nada mais, nada menos que “A Terceira Lâmina”, de Zé Ramalho. Lançado em 1981, esse é um dos trabalhos mais importantes na minha formação como ouvinte de música, que ajudou a estruturar meu imaginário nordestino, não de qualquer forma, mas com o Nordeste visto através de um transe, misturando a realidade mais áspera com o mais puro visionarismo. Da grandiosidade apocalíptica de Canção Agalopada à fúria cangaceira de Cavalos do Cão, da visão psicodélica de uma Ave de Prata no calor do meio dia à melancólica e belíssima melodia da faixa título, A terceira Lâmina, o disco conduz o ouvinte a viajar por um Nordeste transfigurado e, ao mesmo tempo, mais real, seco e cru do que nunca. Uma obra poderosíssima sempre e, sem dúvida, uma das maiores obras-primas de toda uma geração. Reverência e gratidão eternas, grande mestre Zé Ramalho!





- Giba Carvalho:




Um dos pontos cruciais que decidi para minha vida em 2016, foi o de terminar algumas pendências com relação a leitura. A primeira a ser concluída foi o trabalho do meu amigo Ricardo Kelmer. “Indecências para o fim de tarde”, é um compilado de 23 contos eróticos que este menino treloso do Ceará acumulou desde a adolescência e chegando à maturidade de sua escrita (se é que isto é possível). No livro, encontramos “Lolitas” e tardes de amor regadas a baseados e boquetes. Passeamos pelo desejo incontrolável por chocolate, findando numa torta sexual. Gargalhamos com os episódios da secura de um ano e do amor por uma boneca inflável. E, do mesmo modo que nos faz rir, traz reflexão para a nossa mente. O Desejo da Deusa é um conto brilhante! Nele, o tema da repressão por parte da educação de “moral e bons costumes” e a doutrinação a tudo que está na Bíblia, explode num desejo incontrolável, que só é saciado com a libertação destas amarras. O tema é abordado sem agredir nenhuma das religiões, e nos deixa clara a certeza de que uma boa trepada é melhor do que qualquer uma delas.

Kelmer provoca, instiga, diverte e surpreende os leitores com seu modo único de escrever.

Indicadíssimo!


- Fernando Lucchesi:





Se há um disco na música pop que pode carregar os adjetivos “inovador” e “influente” é “Pet Sounds”, dos Beach Boys. O artífice desse marco da música pop foi o líder da banda, Brian Wilson. A obra é unicamente de Wilson, pois o disco foi todo pensado e executado em estúdio por ele e instrumentistas da Wrecking Crew (recomendo fortemente o documentário The Wrecking Crew, disponível no Netflix). Os outros componentes da banda colocaram apenas os vocais depois de tudo pronto. O grande mérito de Wilson foi injetar no pop feito até então instrumentos e harmonias pouco usuais, como teremim e instrumentos árabes. O álbum abre com a contagiante Wouldn´t It Be Nice (claramente baseada no wall of sound de Phil Spector). Seguem-se verdadeiras pérolas da música pop: God Only Knows, Caroline No, Sloop John B, I Just Wasn´t Made for These Times, You Still Belive in Me. Ao álbum poderia ter sido acrescida Good Vibrations, mas Wilson, um perfeccionista extremo, decidiu que a música teria que ser mais bem trabalhada. Isso não foi um problema, pois meses depois, a faixa foi lançada como compacto e atingiu o primeiro lugar da parada americana, tornando-se o maior êxito comercial da banda. “Pet Sounds”, no entanto, foi a obra que trouxe os Beach Boys para o panteão dos grandes da música do século XX.

P.S: Ainda não foi lançada no Brasil, mas recomendo também Love and Mercy a cinebiografia de Brian Wilson, com Paul Dano e John Cusack interpretando Wilson em duas fases distintas da sua vida. O filme traz muito do processo de gravação de Pet Sounds.




- André Maranhão:



A minha indicação deste mês vai para “Canções do Divino Mestre”, um trabalho lançado em 1998 e que se tornou algo muito além de um disco. Primeiramente, sua importância está em reunir grandes artistas da música popular brasileira para interpretar algo no mínimo inusitado: trechos do Bhagavad Gita (o monumental texto derivado dos Vedas e costumeiramente associado ao hinduísmo, bem como ao movimento Hare Krishna). Esses trechos não são apenas lidos no disco, como também alguns dos escritos do Bhagavad Gita foram convertidos em canções emepebistas bastante diversificadas.

Em segundo lugar, “Canções do Divino Mestre”, não deve ser aqui comentado e nem indicado sem fazer jus à importância de Rogério Duarte; figura reconhecida nas artes visuais e na poética do movimento tropicalista no Brasil. Mais além, a conexão de Rogério com espiritualidades orientais foi capaz de nos brindar, inclusive, com a tradução do Bhagavad Gita diretamente do sânscrito para o português, realização que foi aqui publicada pela Companhia das Letras e que se tornou uma referência indispensável para as leituras sobre temas sobre a fé. Consequentemente, a importância da tradução de Rogério Duarte e sua articulação no cenário da MPB foram absorvidas e transpostas para um formato de disco, graças também a Carlos Rennó.

Finalmente, dentre as 32 faixas dispostas no disco, meus destaques vão para as canções A Eternidade da Alma; Oferenda a Mim; A Base do Supremo; A Semente Original, interpretadas por Gilberto Gil, Gal Costa e Mou Brasil; Moreno Veloso, Pedro Sá, Quito; e Geraldo Azevedo, respectivamente. Do ponto de vista do registro documental, mais nomes de relevo completam a obra: Chico César, Waly Salomão, Siba, Belchior, Tom Zé, Arnaldo Antunes, Arrigo Barnabé, Cássia Eller, Luiz Brasil, Jussara Silveira, Lenine, Elba Ramalho, o próprio Rogério Duarte, dentre outros.



- Bruno Vitorino:





Como a ideia original desta coluna é escrever sobre audições recentes e monopolizadoras de nossa atenção, tinha escrito um rápido comentário sobre o álbum “V”, da banda Legião Urbana. É um disco, de certa forma subestimado, que tenho escutado bastante ultimamente. Portanto, lançar um breve olhar sobre o amadurecimento de Renato Russo enquanto poeta e do trio - que apesar das suas gritantes limitações técnicas, delimita uma sonoridade própria – me parecia oportuno. A força de versos como “É a verdade que assombra / O descaso que condena / A estupidez o que destrói / Eu vejo tudo o que se foi / E o que não existe mais” ainda permeia meus pensamentos e me mostra como o mainstream pop jovem de nosso país já nos brindou com uma densidade artística capaz de tocar corações e mentes, transformar almas mediante a experiência estética. O que é, diga-se, totalmente o oposto do que encontramos hoje no mundo das vivências à la carte e de estímulos superficiais e contínuos. Além de tudo isso, meu filho Theo vive me pedindo para colocar “a música da nuvem”... Mas, ontem, cumprindo um acordo que tínhamos feito, levei meu pequeno ao cinema para assistir a “O Bom Dinossauro” e me vi obrigado a mudar de pauta.

É um filme que através da fábula consegue equilibrar imáginario infantil e reflexões filosóficas, diria, a respeito de valores e instituições transversais como a família, o amor filial, a amizade, a lealdade, o respeito e a tolerância. Mais ainda: joga na nossa cara como esses preceitos basilares de nossa socialização e convívio traduzem, na verdade, a essência do que somos enquanto seres humanos. Algo que parece estarmos esquecendo por trás das infinitas telas que compulsivamente olhamos na busca por likes e categorizações das hashtags, na vida em capsulas que levamos todos os dias, encontrando um simulacro de alma e de sonho no consumo estetizado de tendências. Não sem razão, a estória se desenrola num passado longínquo, onde não havia nem a distração da tecnologia e nem a vertigem das selvas de pedra; somente a vida dura do trabalho honesto, a relação respeitosa com a Natureza e o contato real e presente com o Si e o Outro.  

No longa, acompanhamos a história de Arlo, um pequeno e inseguro dinossauro, que tenta a duras penas encontrar o seu lugar no micro-universo em que vive - o pequeno sítio de sua família -, mas que pelas vicissitudes do destino se vê lançado numa jornada para o auto-conhecimento, a expansão das fronteiras do próprio ser e a redescoberta do mundo. Destaque para o personagem “Spot”, um inusitado co-protagonista que rouba a cena com sua inocência, força e lealdade; um ser perdido num “oco de mundo” hostil que de forma alegórica nos ensina (ou nos faz relembrar) que a amizade fraterna pode brotar no peito dos indivíduos mais díspares.

Em resumo, um filme belíssimo, que retoma um antigo recurso narrativo – catarse – para nos mostrar que as provações e desafios da vida, mais do que calejar nosso espírito e adormecer nossos sentidos, ensinam-nos a nunca perder a esperança e seguir em frente, pois nunca estamos, de fato, sozinhos.