domingo, 17 de janeiro de 2016

Playlist de Editores: Janeiro/2016


No ar, a primeira coluna “Playlist de Editores” do ano! Nesta edição, os nossos editores vão além das audições de discos e indicam livros e filmes que lhes chamaram a atenção recentemente. Afinal, se o painel da Cultura se manifesta em várias plataformas expressivas, exercitar a sensibilidade artística e o prazer intelectual somente através dos ouvidos é limitar o alcance da experiência estética, não é mesmo?

Boa leitura!


- Rógeres Bessoni:



Estou voltando a mergulhar num dos discos (para mim) mais geniais da América Latina na segunda metade do séc. XX: nada mais, nada menos que “A Terceira Lâmina”, de Zé Ramalho. Lançado em 1981, esse é um dos trabalhos mais importantes na minha formação como ouvinte de música, que ajudou a estruturar meu imaginário nordestino, não de qualquer forma, mas com o Nordeste visto através de um transe, misturando a realidade mais áspera com o mais puro visionarismo. Da grandiosidade apocalíptica de Canção Agalopada à fúria cangaceira de Cavalos do Cão, da visão psicodélica de uma Ave de Prata no calor do meio dia à melancólica e belíssima melodia da faixa título, A terceira Lâmina, o disco conduz o ouvinte a viajar por um Nordeste transfigurado e, ao mesmo tempo, mais real, seco e cru do que nunca. Uma obra poderosíssima sempre e, sem dúvida, uma das maiores obras-primas de toda uma geração. Reverência e gratidão eternas, grande mestre Zé Ramalho!





- Giba Carvalho:




Um dos pontos cruciais que decidi para minha vida em 2016, foi o de terminar algumas pendências com relação a leitura. A primeira a ser concluída foi o trabalho do meu amigo Ricardo Kelmer. “Indecências para o fim de tarde”, é um compilado de 23 contos eróticos que este menino treloso do Ceará acumulou desde a adolescência e chegando à maturidade de sua escrita (se é que isto é possível). No livro, encontramos “Lolitas” e tardes de amor regadas a baseados e boquetes. Passeamos pelo desejo incontrolável por chocolate, findando numa torta sexual. Gargalhamos com os episódios da secura de um ano e do amor por uma boneca inflável. E, do mesmo modo que nos faz rir, traz reflexão para a nossa mente. O Desejo da Deusa é um conto brilhante! Nele, o tema da repressão por parte da educação de “moral e bons costumes” e a doutrinação a tudo que está na Bíblia, explode num desejo incontrolável, que só é saciado com a libertação destas amarras. O tema é abordado sem agredir nenhuma das religiões, e nos deixa clara a certeza de que uma boa trepada é melhor do que qualquer uma delas.

Kelmer provoca, instiga, diverte e surpreende os leitores com seu modo único de escrever.

Indicadíssimo!


- Fernando Lucchesi:





Se há um disco na música pop que pode carregar os adjetivos “inovador” e “influente” é “Pet Sounds”, dos Beach Boys. O artífice desse marco da música pop foi o líder da banda, Brian Wilson. A obra é unicamente de Wilson, pois o disco foi todo pensado e executado em estúdio por ele e instrumentistas da Wrecking Crew (recomendo fortemente o documentário The Wrecking Crew, disponível no Netflix). Os outros componentes da banda colocaram apenas os vocais depois de tudo pronto. O grande mérito de Wilson foi injetar no pop feito até então instrumentos e harmonias pouco usuais, como teremim e instrumentos árabes. O álbum abre com a contagiante Wouldn´t It Be Nice (claramente baseada no wall of sound de Phil Spector). Seguem-se verdadeiras pérolas da música pop: God Only Knows, Caroline No, Sloop John B, I Just Wasn´t Made for These Times, You Still Belive in Me. Ao álbum poderia ter sido acrescida Good Vibrations, mas Wilson, um perfeccionista extremo, decidiu que a música teria que ser mais bem trabalhada. Isso não foi um problema, pois meses depois, a faixa foi lançada como compacto e atingiu o primeiro lugar da parada americana, tornando-se o maior êxito comercial da banda. “Pet Sounds”, no entanto, foi a obra que trouxe os Beach Boys para o panteão dos grandes da música do século XX.

P.S: Ainda não foi lançada no Brasil, mas recomendo também Love and Mercy a cinebiografia de Brian Wilson, com Paul Dano e John Cusack interpretando Wilson em duas fases distintas da sua vida. O filme traz muito do processo de gravação de Pet Sounds.




- André Maranhão:



A minha indicação deste mês vai para “Canções do Divino Mestre”, um trabalho lançado em 1998 e que se tornou algo muito além de um disco. Primeiramente, sua importância está em reunir grandes artistas da música popular brasileira para interpretar algo no mínimo inusitado: trechos do Bhagavad Gita (o monumental texto derivado dos Vedas e costumeiramente associado ao hinduísmo, bem como ao movimento Hare Krishna). Esses trechos não são apenas lidos no disco, como também alguns dos escritos do Bhagavad Gita foram convertidos em canções emepebistas bastante diversificadas.

Em segundo lugar, “Canções do Divino Mestre”, não deve ser aqui comentado e nem indicado sem fazer jus à importância de Rogério Duarte; figura reconhecida nas artes visuais e na poética do movimento tropicalista no Brasil. Mais além, a conexão de Rogério com espiritualidades orientais foi capaz de nos brindar, inclusive, com a tradução do Bhagavad Gita diretamente do sânscrito para o português, realização que foi aqui publicada pela Companhia das Letras e que se tornou uma referência indispensável para as leituras sobre temas sobre a fé. Consequentemente, a importância da tradução de Rogério Duarte e sua articulação no cenário da MPB foram absorvidas e transpostas para um formato de disco, graças também a Carlos Rennó.

Finalmente, dentre as 32 faixas dispostas no disco, meus destaques vão para as canções A Eternidade da Alma; Oferenda a Mim; A Base do Supremo; A Semente Original, interpretadas por Gilberto Gil, Gal Costa e Mou Brasil; Moreno Veloso, Pedro Sá, Quito; e Geraldo Azevedo, respectivamente. Do ponto de vista do registro documental, mais nomes de relevo completam a obra: Chico César, Waly Salomão, Siba, Belchior, Tom Zé, Arnaldo Antunes, Arrigo Barnabé, Cássia Eller, Luiz Brasil, Jussara Silveira, Lenine, Elba Ramalho, o próprio Rogério Duarte, dentre outros.



- Bruno Vitorino:





Como a ideia original desta coluna é escrever sobre audições recentes e monopolizadoras de nossa atenção, tinha escrito um rápido comentário sobre o álbum “V”, da banda Legião Urbana. É um disco, de certa forma subestimado, que tenho escutado bastante ultimamente. Portanto, lançar um breve olhar sobre o amadurecimento de Renato Russo enquanto poeta e do trio - que apesar das suas gritantes limitações técnicas, delimita uma sonoridade própria – me parecia oportuno. A força de versos como “É a verdade que assombra / O descaso que condena / A estupidez o que destrói / Eu vejo tudo o que se foi / E o que não existe mais” ainda permeia meus pensamentos e me mostra como o mainstream pop jovem de nosso país já nos brindou com uma densidade artística capaz de tocar corações e mentes, transformar almas mediante a experiência estética. O que é, diga-se, totalmente o oposto do que encontramos hoje no mundo das vivências à la carte e de estímulos superficiais e contínuos. Além de tudo isso, meu filho Theo vive me pedindo para colocar “a música da nuvem”... Mas, ontem, cumprindo um acordo que tínhamos feito, levei meu pequeno ao cinema para assistir a “O Bom Dinossauro” e me vi obrigado a mudar de pauta.

É um filme que através da fábula consegue equilibrar imáginario infantil e reflexões filosóficas, diria, a respeito de valores e instituições transversais como a família, o amor filial, a amizade, a lealdade, o respeito e a tolerância. Mais ainda: joga na nossa cara como esses preceitos basilares de nossa socialização e convívio traduzem, na verdade, a essência do que somos enquanto seres humanos. Algo que parece estarmos esquecendo por trás das infinitas telas que compulsivamente olhamos na busca por likes e categorizações das hashtags, na vida em capsulas que levamos todos os dias, encontrando um simulacro de alma e de sonho no consumo estetizado de tendências. Não sem razão, a estória se desenrola num passado longínquo, onde não havia nem a distração da tecnologia e nem a vertigem das selvas de pedra; somente a vida dura do trabalho honesto, a relação respeitosa com a Natureza e o contato real e presente com o Si e o Outro.  

No longa, acompanhamos a história de Arlo, um pequeno e inseguro dinossauro, que tenta a duras penas encontrar o seu lugar no micro-universo em que vive - o pequeno sítio de sua família -, mas que pelas vicissitudes do destino se vê lançado numa jornada para o auto-conhecimento, a expansão das fronteiras do próprio ser e a redescoberta do mundo. Destaque para o personagem “Spot”, um inusitado co-protagonista que rouba a cena com sua inocência, força e lealdade; um ser perdido num “oco de mundo” hostil que de forma alegórica nos ensina (ou nos faz relembrar) que a amizade fraterna pode brotar no peito dos indivíduos mais díspares.

Em resumo, um filme belíssimo, que retoma um antigo recurso narrativo – catarse – para nos mostrar que as provações e desafios da vida, mais do que calejar nosso espírito e adormecer nossos sentidos, ensinam-nos a nunca perder a esperança e seguir em frente, pois nunca estamos, de fato, sozinhos.


quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Epitáfio – por Bruno Vitorino

O compositor brasileiro Gilberto Mendes. Fonte: Google Imagens,


É impressionante como num período de menos de um mês sofremos perdas irreparáveis no mundo da Cultura. Em 19 de dezembro, perdemos uma das maiores referências no período Romântico da música erudita, o maestro Kurt Masur aos 88 anos. Dez dias depois (29/12), no apagar das luzes de 2015, morre um dos últimos representantes da era jurássica do rock, o baixista da banda Motörhead Lemmy Kilmister aos 70 anos. A esperança que marca todo réveillon ainda reverberava em nossos corações, quando, no dia 1º, veio a notícia de que o mestre da música erudita contemporânea do Brasil, o compositor Gilberto Mendes, havia falecido aos 93 anos. E não parou por aí: ontem (05/01) perdemos um dos nomes mais importantes da música do século XX e a maior referência do Serialismo Integrado, o compositor e regente Pierre Boulez aos 90 anos. E quando eu achava que já havíamos tido baixas suficientes para lamentar por um século, eis que, ao acaso, descubro que o pianista Paul Bley faleceu em sua casa na Flórida no domingo passado (03/01) aos 83 anos. Que obituário desolador...

O pianista Paul Bley. Fonte: Google Imagens.
Como fica evidente pela idade desses artistas, assistimos ao ocaso de todo um ciclo cultural que se iniciou no século passado, deixando um legado inestimável para humanidade, mas que chegou ao fim por descontinuidade criativa e desinteresse estético. A mudança de paradigma nos preceitos da arte tornou a comunicação com esse manancial artístico de outrora apenas referencial, contemplativa  e saudosista, promovendo, por conseguinte, um estranho vácuo que nos desvincula artisticamente dessa produção. E quando falo em “mudança de paradigma”, faço referência ao modelo que até então vigorava baseado na música como uma forma de elevação do espírito humano, de expressão de uma visão de mundo ou como o veículo das inquietações de uma geração – o que seria o rock senão isto?! No entanto, tal modelo foi superado pela lógica efêmera da hibridização de arte e mercadoria, experiência estética e consumo, moda e ativismo político-social, estilização da vida e cool, Cultura e fun. Mais ainda: esta alteração de perspectiva, que vem se consolidando nos últimos 30 anos, promoveu – focando na produção musical – essa ruptura cultural com o passado e nos deixou órfãos de referências artísticas em nossos dias e com aquela incômoda sensação de vácuo criativo reinante.

Daí que não há mais espaço para “ícones de aço”, artistas-farol cujas obras são dotadas de profundidade estética e sócio-cultural a ponto de se inserirem no continuum da História de forma perene e se consolidarem enquanto memória, marcando gerações – como fizeram estes que se foram. Com a diluição das estruturas de pensamento unificadoras da coletividade em infinitos nichos de apreensão do mundo e o triunfo apoteótico da sociedade do consumo de massa, testemunhamos a destradicionalização dos bens culturais promovida pela sistemática do fluxo contínuo de novidades, do consumo-tendência estetizado e de um presentismo de superfície que vive no ritmo alucinado de postagens no Twitter. Assim, exemplificando, não há mais lugar em nosso tempo para o surgimento de um novo Paul McCartney – e me refiro não em termos de cópia musical, mas de estatura artística. Há, isto sim, espaço, palco, holofotes e aplausos para uma multidão de ídolos de ocasião que se sucedem infindavelmente, desprovidos de conteúdo artístico relevante, deificados pela mídia propagadora do hype (afinal, julgamentos qualitativos de uma obra é hoje considerado elitista, esnobe e demodê), os quais se diferenciam e se impõem por razões extra-arte que os capitalizam enquanto produtos culturais rentáveis – um discurso, uma extravagância, um padrão de comportamento, um exotismo, etc...

Por tudo isso, é de se lamentar bastante o retorno destes ícones para o Éter e daqueles que, ainda por aqui, em breve os seguirão no caminho irreversível da morte, pois são eles os últimos de sua espécie, seres em extinção, representantes de um tempo não tão distante em que a Arte se propunha fornecedora de sentido, encantamento e transcendência ante a crueza do mundo material e as contingências sensíveis da condição humana.

R.I.P.