domingo, 28 de dezembro de 2014

Variações em 5/4: Sonic Highways

Arte de capa de Sonic Highways, novo álbum da banda Foo Fighters.

A última postagem do ano marca, além do retorno da coluna Variações em 5/4, a primeira colaboração de nosso novo integrante, o senhor Rógeres Bessoni. Nesta edição da coluna, os editores do blog lançam um olhar coletivo sobre Sonic Highways, o mais recente disco da banda Foo Fighters.
 
Aproveitando o ensejo, desejamos a todos os que nos acompanham um 2015 excepcional, repleto de saúde, alegrias e conquistas, pautado sempre na plenitude humana que dá sentido a essa breve marcha ante ao desconhecido que chamamos de vida.

Boa leitura!

- Giba Carvalho:

Expectativa. Sem sombra de dúvidas, esta foi a palavra que mais permeou a minha mente com relação a Sonic Highways, novo trabalho do Foo Fighters. E isto é completamente compreensível visto que, ele é o sucessor de Wasting Light, melhor disco de rock n´roll da década até o momento.

Grohl e seus companheiros caíram na estrada num mergulho em busca de influências históricas para a concepção do novo trabalho. De fato uma ideia interessantíssima! Aproveitaram a oportunidade e, além do disco, gravaram um documentário de oito capítulos para o canal HBO, que mostra toda a criação do novo álbum e as passagens por – Chicago, Washington DC, Nashville, Austin, Seattle, Los Angeles, Nova Iorque e Nova Orleans. Este é um ponto específico que pode tornar-se negativo no novo trabalho. Caso as pessoas não venham a assistir ao documentário, não saberão ao certo sobre a passagem por estes estados e todo processo de gravação desenvolvido e executado. E tem explicação. Mesmo flertando com o hard-rock, punk, grunge e algumas pitadas de progressivo, Sonic Highways soa como “apenas” mais um trabalho do Foo Fighters. É a velha “armadilha” inerente às bandas de grande identificação e eficácia com um estilo de fazer sua música. Ousaram, mas não mudaram a fórmula (talvez não precisem fazer) e isto é uma faca de dois gumes. Tudo vai depender das expectativas pessoais de cada um.

Para mim, Sonic Highways é um disco bom e tem seus pontos fortes na sequência. – Congregation – que é uma homenagem aos artistas e raízes da música country, embora soe como o mais tradicional do grupo, What did I Go? / God as My Witness – que é a canção onde percebemos com maior facilidade o ambiente (tão aclamado por Grohl) que foi gravado e Outside – um grunge cheio de contratempos e agressividade peculiar. E, mais para frente, encontramos a excelente In The Clear (melhor música do disco) – melódica, com refrão consistente e com a presença da Preservation Hall Jazz Band de Nova Orleans.

No mais, o Foo Fighters é a mesma banda coerente de sempre.

- Fernando Lucchesi:
   
Quando uma banda como o Foo Fighters, lança um algo do nível de Wasting Light, sucesso comercial incontestável e elogiado pela maioria da crítica, ela chega a uma encruzilhada em relação ao disco seguinte (acredito já ter falado algo a respeito no blog anteriormente): repetir a fórmula de sucesso, mesclar algo novo com toques do sucesso anterior ou mudar radicalmente em relação à “fórmula do sucesso” previamente utilizada e conhecida.

O Foo Fighters, ao que parece, optou pela mescla entre coisas novas (entenda-se: fora da fórmula anterior) e resquícios do bem sucedido disco anterior. O resultado foi um dos discos mais entediantes do ano. A despeito de o álbum conter algumas faixas bem interessantes com Something for Nothing (inicia com um andamento lento para depois explodir nos gritos insanos de Grohl) e de Congregation (pop/rock da melhor qualidade, com AQUELE riff pegajoso), a impressão é de que a maior parte das outras faixas está lá esperando entrar na trilha sonora de um novo filme da franquia American Pie. Músicas datadas, com um apelo pop sem nenhuma inspiração e uma sensação de preguiça inacreditável.

Para a chatice ficar completa nada mais apropriado do que encerrar o disco com a longa e chatíssima I Am a River. Um chororô que dura infindáveis sete minutos, com direito a arranjos de cordas para dar uma falsa impressão de magnitude da música. Como diria um dos componentes do blog: esse disco é mais fraco do que choque de lanterna!

- André Maranhão:

O fato de todas as faixas do álbum Sonic Highways terem sido gravadas em locações diferentes chamou a minha atenção, embora confesse não saber até que ponto esta postura dos Foo Fighters seria fruto de uma exigência técnica em vez de uma jogada de marketing.

Em se tratando das canções, achei interessante a presença da guitarra barítono de Rick Nielsen em Something From Nothing já que tal instrumento não é tão popular no pop rock ou no rock alternativo, mas tem sido de suma importância em outros gêneros musicais como o surf music, country e jazz. The Feast and the Famine segue uma linha mais próxima de um rock de verão, embora não rivalize com uma canção aos moldes de Breakout – lançada pelos próprios Foo Fighters ao final dos anos noventa.

A faixa que eu mais gostei foi Congregation, pois nela a banda parece perfeitamente entrosada: há uma ótima cobertura de guitarras-base e o solista Chris Shiflett se coloca muito bem, juntamente com o baixo de Nate Mendel. Por fim, vale destacar a performance de Taylor Hawkins à frente da bateria. A segunda melhor faixa sob o meu crivo é I Am a River; uma balada que cresce aos poucos e fica boa no refrão.

Subterranean, a única canção com a presença marcante do violão de aço, cairia muito bem numa trilha de 007... What Did I Do, God as My Witness, em certos momentos me soou longa demais, e só se tornou interessante a partir de sua metade. Em Outside, a introdução e as pausas para os solos de guitarra imprimem um tom mais dinâmico, mas nada em especial. Também não vejo (e ouço) nada de novo em In the Clear.

Eu li que em algumas páginas anglo-americanas, Sonic Highways recebeu avaliações em torno de “regular”. Desta vez, me aproximarei dos conceitos de Metacritic, The Guardian, Entertainment Weekly, dentre outros, e darei um “C”, para o mais novo trabalho dos Foo Fighters. Acho que eles já produziram hits melhores...

- Rógeres Bessoni:

É com todo o respeito que paro para ouvir um novo trabalho de uma banda como o Foo Fighters, levando em consideração a trajetória de uma das poucas bandas que, nas últimas duas décadas, têm significativamente ajudado a manter de alguma forma pulsante o tão maltratado – e, atualmente estéril – rock and roll. Talvez isso me leve mesmo a aumentar minhas exigências e expectativas quando me deparo com um trabalho que sei que é sério. Mas o Budismo nos alerta que as expectativas elevadas acarretam decepções consideráveis, e foi justamente o caso. Ouvindo o Sonic Highways, só me convenço mais veementemente de que esse senhor de idade, o rock, precisa urgentemente passar por uma nova demolição/revolução, como a que os próprios integrantes do Foo Fighters ajudaram a realizar no começo dos anos 90. No entanto, de lá para cá, as placas tectônicas do rock têm se mantido numa imobilidade soporífera. E aqui chegamos ao desapontamento com o Sonic Highways.

Em primeiro lugar, quero frisar uma coisa: o disco NÃO É RUIM, mas também não instiga. É bom, sólido, bem tocado, mas só isso. “Só isso”?  É. Porque é a repetição de padrões sonoros que já estão ecoando há mais de 20 anos e, para mim, não acrescentam mais nada. Neste sentido, o disco ficou morno, alternando entre alguns momentos bons e outros realmente chatos, sem ter apresentado nenhuma faixa impactante ou poderosa – com exceção, para mim, de Something From Nothing, que começa com uma melodia também morna, com uma linha de guitarra mais que repisada, mas que cresce para uma explosão vigorosa, ficando realmente muito boa. Uma das músicas que mais me agradaram recentemente e que, na verdade, me pareceu mais Audioslave que qualquer outra coisa. Tive a impressão de ouvir Tom Morello no trecho mais pesado. Mas o resto do disco, infelizmente, não se manteve nesse nível.

Em vários, vários momentos, tive aquela sensação: “já ouvi isso”. São os mesmos vocais, indo do “grunhido” ao mais “meloso”, com alguns momentos de explosão na medida certa. As guitarras fortes, em bases barulhentas, eventualmente com notas esticadas ou ponteadas com notas soltas, mas sem nenhum riff marcante, de pegada e, para mim, o que é pior e incompreensível: a continuação de uma escola de guitarra praticamente sem solos. Da mesma forma, a cozinha, com baixo e bateria precisos, firmes, não traz nenhuma levada inovadora, nenhuma quebradeira surpreendente. Talvez por serem sons da saída da minha adolescência, isso sempre me passa a impressão de que, mesmo com músicos maduros, a banda se manteve de certa forma adolescente. Estamos falando da personalidade de uma banda consagrada, eu sei disso. Sei que a manutenção de algumas estruturas também tem sua importância, principalmente para os cultores de um estilo, e o Foo Fighters não é de maneira alguma formado por integrantes amadores ou imaturos. Entretanto, o grande perigo é o criador ficar escravo da criatura. No caso da concepção musical, arriscado é os autores de um dado nicho não saberem mais inovar dentro dos padrões que estabeleceram, ou reconhecer que pode ser a hora de romper com tais padrões, que podem ter sido bons e necessários parâmetros no começo, mas que depois se converteram, em maior ou menor escala, em uma zona de conforto - a simples aplicação de uma fórmula, que não desafia mais nem a banda, nem o público. Sei também que o ponto deste comentário é o Foo Fighters e não seria tão adequado terminar com comparações explícitas, e minha intenção não é comparar A com B e decidir sobre que é “melhor”. Não é nada disso, mas acontece que só reforço cada vez mais uma percepção que já tenho há alguns anos e venho repetindo: de fato, pouquíssimas bandas “envelhecem” como o Pearl Jam.

- Bruno Vitorino:

Eu não gosto do Foo Fighters. Na verdade, nunca gostei. Por mais que tenha tentado reverter esse quadro em ocasiões passadas, acabava sempre a cada empreitada por não me identificar com a sonoridade da banda. E, para agravar ainda mais minha repulsa, irritava-me profundamente as malfadadas tentativas de Dave Grohl e companhia em serem engraçadinhos, debochados, fingindo-se comediantes em seus clipes – Breakout, Learn to Fly, Long Road to Ruin, Low, The One -, vinculando, dessa forma, o rock a uma espécie de oligofrenia juvenil coletiva, que se espalhava com uma virulência gigantesca via MTV, e não mais à urgência expressiva e ao caráter subversivo com os quais o estilo sempre dialogou. Assiste a esses vídeos que menciono e me diz nos comentários se estou enganado.

No quesito “a nova salvação do rock”, devo confessar que prefiro muito mais a pegada crua do Queens of the Stone Age, suas melodias instigantes, o cuidado na montagem das estruturas sonoras, a ironia fina de suas letras e, o mais importante, o fato de sua música trazer sempre algo de inesperado, rico, contrariando os detratores do gênero que vêm nele apenas uma forma primitiva de articular os sons, abrindo-lhe, com isso, infinitas possibilidades estéticas – ouve atentamente A Song for the Dead e na sequência Mosquito Song; tenho certeza que pensarás estar ouvindo duas bandas distintas. A razão disso tudo se deve à consciência criativa de Josh Homme e seu profundo conhecimento do que é o rock and roll, dos timbres que manipula e dos inesgotáveis recursos que um estúdio de gravação pode prover a mentes criativas. Qualidades que, por exemplo, o senhor Dave Grohl não tem; ou se as tem, não desenvolve. “Ah, mas em Songs for the Deaf, Dave Grohl participa tocando bateria. Esqueceu, foi?!”, alfineta meu querido leitor. Certamente. Tens razão. Mas, o êxito de sua participação se deve muito mais ao encaminhamento dado ao projeto por Homme, e, verdade seja dita, em alguma parte a Nick Olivieri, do que ao baterista, que não passou de um convidado ilustre. Não esqueça o senhor que o disco musicalmente mais bem sucedido do Foo Fighters, Wasting Light, carrega escancarada influência de Josh Homme, como já denuncia as guitarras na introdução da faixa de abertura Bridge Burning. Também não me parece fruto do acaso que quando a ideia desse ótimo disco nascera em seu peito, Grohl estivesse em turnê com o Them Crooked Vultures, ou seja, trabalhando com a entidade John Paul Jones, mas inteiramente submerso no universo estilístico de Homme. Não há que se negar os fatos, e os fatos são tudo.

Não obstante a digressão acima, particularmente guardo solene respeito a Dave Grohl pelo que fora outrora com o Nirvana, e pela sua integridade enquanto band leader da maior banda de rock de sua geração – e que só não é a maior do mundo hoje, porque o U2 e os Stones ainda estão em atividade. Pode-se falar o que quiser dele, mas ao menos ele tenta novas possibilidades sonoras e não se deixa cooptar pelo doce mel da glória midiática. Ao contrário, usa-a a seu favor, propondo, em certa medida, um remodelamento interno dessa estrutura que foca no efêmero das estrelas de ocasião. Não se pode desprezar, só a título de ilustração, o colossal trabalho de pesquisa encabeçado pelo músico que originou o disco Sonic Highways e resultou num seriado homônimo, produzido em parceria com a HBO (que no Brasil está sendo transmitido pelo Canal Bis aos domingos às 19:30, horário local), no qual Grohl, percorrendo os grandes centros urbanos de seu país, procurou de uma só vez: redescobrir as raízes da música popular norte-americana; traçar um mapa da cena underground dos Estados Unidos; buscar as origens do rock; ensinar às novas gerações um pouco da história da cultura do século XX; e, de lambuja, ainda se inspirar para um novo trabalho com sua banda. Por isso tudo, escutei o mais novo trabalho do Foo Fighters cheio de esperança e com muita cerimônia. E o começo do álbum me pareceu muito promissor. Aquela guitarra de timbres brilhantes abrindo Something From Nothing, tocada de modo simples, enfatizando as suas três primeiras cordas (mi, si e sol), estabelecendo assim a estrutura básica do acorde de mi menor, e delegando ao movimento cromático descendente do baixo (sou wagneriano, quedas de meio tom me agradam) o sentido harmônico, deu-me a falsa impressão de que eu iria gostar do disco. Na metade da música, já estava entediado.

O grande drama deste trabalho reside justamente na contradição entre o imenso projeto de pesquisa que o precedeu, o qual estudou diversos matizes sonoros e culturais, e a contundente monocromia do álbum. Pois, Sonic Highways é carregado de lugares-comuns do rock enfadado: mão pesada nas guitarras, vocais rasgados e letras adolescentes (ouça What Did I Do). Muita atitude, alguma pretensão intelectual, e pouco - ou quase nenhum – conteúdo. A impressão que se tem ao final da audição é que se trata de um disco com apenas uma faixa de pouco mais de quarenta minutos, não fossem os espaços propositais separando um tema do outro a nos dizer o contrário. Apenas Subterranean quebra a mesmice do disco, mudando os timbres das cordas (os violões de corda de aço fulguram aqui); brincando com a métrica ao intercalar sessões rítmicas em 6/8 a outras em 4/4; trazendo, de início, um singular encadeamento harmônico não funcional, em estrutura constante (F#m/Am/Em/Gm), costurado por uma bela linha de fundo, que depois descamba num enigmático lá maior o qual incorpora em si um bocado de seu modo paralelo, o menor natural – há nesse momento um acorde “Em” tão sublime e inesperado que confere a essa parte da composição toda sua beleza melancólica. Música realmente tocante e a tenho escutado repetidamente. Contudo, é o único exemplo de brilhantismo que existe no trabalho, o que por si só não é capaz de salvar o disco.

Imagino que a experiência do “ao vivo” em estádios grandes, com um público eufórico que urra de delírio até para roadie em passagem de som, Sonic Highways funcione. Mas, enquanto disco, soa enfadonho. No entanto, meu caro leitor - e espero sinceramente que não me ojerizes pelo que escrevi até então -, tudo não passa de uma questão pessoal, pois a música reverbera no interior de cada um das mais infinitas maneiras. Escuta e vede o que diz teu espírito.

domingo, 14 de dezembro de 2014

O Pau Metafísico - Por Bruno Vitorino

O primeiro conto ficcional da série "Animais Sociais" que pretendo escrever ao longo de 2015. Trata-se de literatura fantástica, logo irreal, fruto dos desvarios de minha mente insana que se põe a fantasiar sobre lugares e personagens absurdos. Portanto, uma eventual semelhança com a realidade material de nossos dias terá sido obra do acaso. Acredito ser impossível a existência dos personagens que crio, ainda mais numa cidade tão avançada sócio-culturalmente como Recife, vanguardista que só ela. Boa leitura! 

O Homem de Vitrúvio Pós-Moderno: O Homem sem Falo. Edição de imagem por Eládio Ferreira. 

Sou um idiota e tudo o que faço é querer e precisar de coisas. – Chuck Palahniuk


Ah, o espelho... Essa tênue lâmina e seu raro poder de nos por diante de nós mesmos, como se saíssemos de nossos corpos para que, num breve instante, percebêssemos em terceira pessoa a realidade imutável das coisas que nos cercam e a nossa existência objetiva no mundo dos homens. Sua sinceridade implacável desnuda as ilusões que cultivamos. Assim, inteiramente nu diante do espelho do quarto, nosso herói experimentava novamente a angústia da verdade. Depois de vasculhar minuciosamente os objetos de seus aposentos e de sentir orgulho de possuí-los, numa espécie de ritual de autocomiseração, sua atenção se voltava para seu corpo. Como lhe envaidecia sua forma física, fruto de anos de malhação e Whey Protein. As pernas finas, mas definidas, seus braços musculosos, seu abdômen firme, seu peitoral trabalhado; todas essas qualidades que julgava possuir, e que considerava dignas dos mais elevados valores humanos, muito lhe agradavam. Mas, ao final da sondagem, havia sempre a dura realidade que o espelho não escamoteava em cerimônias e eufemismos: um pau pequeno, ínfimo, ridículo que lhe roubava toda a paz de espírito. Ao contrário das outras vezes, porém, o desespero levou-o à aventura que irei contar agora.

Saiu de seu quarto e foi ter com seu pai na sala. Ressentido e incomodado com a vergonha de não ser o varão que fantasiava, foi direto: “Pai, sou um completo idiota e tenho um pau pequeno! O que devo fazer?!”. A gravidade da denúncia foi tamanha que fez com que o pai deixasse de assistir ao Manhattan Connection – e logo na fala do Mainardi – para voltar seus ouvidos para o filho. Advogado bem sucedido, frequentador dos circuitos sociais mais exclusivos da cidade, o pai era um homem fino e benfazejo que gostava de ostentar aquilo que seus pares acreditavam ser insígnias de refinamento cultural e poder econômico. Era leitor voraz das tramas intricadas de Dan Brown, dos romances profundos de Chico Buarque e dos enredos cósmicos de Paulo Coelho. Ouvia com muita frequência os expoentes da MPB contemporânea: Maria Gadú, Vander Lee, Ana Carolina e, especialmente, Marisa Monte, a qual considerava a última grande diva da música brasileira. Só andava de SUV importada e dividia a humanidade entre os que iam uma vez por ano a Miami se entregar ao delírio consumista dos outlets e os que não podiam fazê-lo. Era, como se pode perceber, um ser de alma rasa, mas, imensamente rico.

“Por que tanto desespero, meu filho?! O que houve?!” Pela primeira vez em muito tempo, estabelecia-se entre esses dois homens a solidez que toda relação paterno-filial exige. A aflição do filho transformou uma relação de conveniência e pouco comprometimento mútuo em algo profundo, ainda que efêmero e indefinido. “Pai, não sei mais o que fazer. Tenho tudo o que preciso para o sucesso: tenho grana, sou bonito, frequento os lugares da moda, uso roupas de marca, pego um monte de mulher, mas...”. “Mas, o quê, filho?”. “Meu pau é tão pequeno...”, disse o nosso herói embargando a voz e olhando para baixo a imprecar o destino que o fez tão bem nascido, mas desprovido da virilidade que se exigia de um jovem em seu papel social. O constrangimento era tanto que se poderia respirá-lo. “Calma, meu rapaz. Para tudo na vida se dá um jeito. Ainda mais para nós que temos dinheiro. Saiba de uma coisa: não se deixe abater por um detalhe, meu filho, porque, na verdade, o tamanho do pau não importa. O que realmente conta é o que você agrega a ele.” Disse o pai em tom conciliador e com um cínico riso de superioridade que a vida talhara em seu rosto, dando-lhe um falso ar de sábio calejado pelo tempo. “Agregar? Como uma prótese? Não, pai. Isso não.” “Relaxe.”, disse o pai voltando-se para a televisão. “Deixe que eu resolva isso para você. Confie em mim, que já sei do que você precisa.”, arrematou para, aproveitando-se da confusão do filho, sacramentar-se aos olhos deste como o dono da conversa e senhor das circunstâncias. A contundência do pai deixou nosso herói encucado, contudo não mais agoniado com a revelação que o espelho há pouco lhe obrigara a encarar. Preferia a anestesia do não saber à dor da verdade. Aquietou-se.

No outro dia, ainda de manhã, o pai batia à porta. “Filho, acorda! Tenho um negócio para te mostrar. Venha logo!” Aturdido, o jovem rebento olhou para o relógio. 11:33. “Já vou!”, disse ainda bocejando. “Certo. Espero você lá embaixo”. Ainda sem entender muito bem quais os intentos do patriarca, nosso herói entrou desprovido de expectativas no elevador, imbuído tão somente da banalidade que só a rotina pode proporcionar ao ser humano. Só que, desta vez, a viagem lhe levaria ao encontro do inesperado. Lá chegando, viu o pai, numa das vagas de garagem, com os trajes que a advocacia lhe exigia e com um sorriso de político em época de campanha. “Venha, meu filho! Venha logo!”, disse-lhe, abraçando-o. “Aqui está a solução que lhe prometi!”, apontando para algo encoberto com uma capa preta. “Não vou fazer suspense. Você sabe que não gosto dessas coisas.”, falou, puxando a coberta e revelando uma moto alaranjada novinha em folha. Mas, não era qualquer moto, vale ressaltar. Era uma moto esportiva de luxo Honda CBR 1000RR, muito conhecida pelos entendidos no assunto como “Repsol”! Uma máquina feroz de velocidade e de design arrojado que corta o vento como uma lâmina. Acossado feito bicho do mato, o filho foi se aproximando do presente, olhando com atenção cada componente seu com uma expressão insondável no rosto. O genitor apenas contemplava a cena, já certo do sucesso de sua empreitada. “Sente nela.”, comandou docemente ao que o filho prontamente atendeu, não sem certo estranhamento. “Isso. Agora ligue a moto.”, disse com seu riso triunfal de canto de boca. O ronco grave do motor desencadeou no filho uma estranha sensação de poder que lhe agradava. O som de seu brinquedo novo reverberava a masculinidade que ele mesmo não tinha, e, por ser agora sua propriedade, sentia-a parte de si. Parecia mais macho em cima dela, infinitamente poderoso, como um iluminado detentor de um artefato forjado pelos deuses ou coisa que o valha. Um Prometeu roubando o fogo do Olimpo. “Perfeito. Agora acelere!”. “Vruuuuuuuuuuuuuuuuum!”. Transe. O filho não mais sentia o corpo. O vigor do barulho da moto abriu-lhe as portas da percepção numa experiência transcendental. De repente, e de modo absolutamente imprevisto, viu-se muito além de si mesmo e existencialmente conectado ao cosmo. E conectado pelo pau! Pois, o ruído ensurdecedor que a moto emitia ao mais singelo gesto de sua mão direita assumia contornos fálicos impetuosos e viris que a diminuta genitália que a Natureza lhe proveu jamais sequer insinuou. No fim das contas, não era uma moto que ganhava do pai, e sim um pau metafísico para, finalmente, chamar de seu. Mas, estúpido que era para avaliar toda a, digamos, dimensão espiritual que essa liturgia mecânica desencadeava, contentou-se em gozar da sensibilidade epidérmica que o momento lhe brindava. A simbiose estava completa. “Bem, o tanque está cheio. Divirta-se.”, disse o pai como se nada houvesse acontecido que não a entrega de um simples regalo. O nosso herói, entretanto, encontrava sua vocação.

Ir à faculdade tornou-se um evento. Aluno do quinto período do curso de Direito, o nosso herói era pouco afeito aos estudos. Na verdade, ingressara na vida acadêmica mais para dar alguma satisfação ao pai, que bancava sua faculdade e esperava vê-lo seguir carreira jurídica, do que por vontade própria. Na superficialidade de seu íntimo, tinha a vaga consciência de que não sabia exatamente o que queria da vida. Orbitava entre a inércia, os paparicos típicos de filho único e a falta de perspectiva, de modo que, intuitivamente, seguir os caminhos já pavimentados pelo pai lhe pareciam suficientes. Não necessitavam esforço. Além do mais, justiça seja feita, gostava do clima de azaração que permeava as turmas pelas quais passava e dos fins de noite nos barezinhos das redondezas para conversar as trivialidades inúteis de sua existência. Logo, não tinha do que reclamar. Só que agora com a “Repsol”, ir às aulas deixou de ser uma mera rotina para alcançar um novo patamar. Passava agora pela rua da faculdade não mais ocultado pela obscuridade do comum que a civilidade impõe aos homens, mas sob as luzes da posição de destaque, acelerando pausada e levemente sua moto para insinuar aos demais a potência que esta lhe delegava, tal como um animal selvagem que busca impor-se líder e reprodutor de um grupo através da combinação da força bruta com o exibicionismo coreografado de seus atributos. Queria ver e ser visto. Mais ainda, queria ser admirado por aqueles desprovidos desse maquinário possante que tinha à mercê de suas vontades. Os olhares que lançava de esguelha captavam o assombro dos desconhecidos, enchendo-lhe o peito de glória e prestígio. Ainda que apenas para si mesmo. Ainda que o barulho incomodasse os outros. Não importava! É uma capacidade premente dos tolos ver realidade em suas fantasias. De toda forma, chegando ao estacionamento, deu de cara com um colega de classe. “Porra, véi! Uma ‘Repsol’, doido! Botou pra fuder!”, disse o colega num dialeto rudimentar que derivava do português de outrora. “É, véi! Arretada, né não?!”, redarguiu. “E então! Berra muito na alta! Eu tinha uma Hornet, mas essa daí é bem mais foda. Óa, tu tá ligado que nas quintas tem um grupo de moto que roda pela cidade?!”. “Tô não. É sério?!”. “É, pô. E só tem moto foda! Desse naipe aí. Os caras se encontram pra exibir suas máquinas, curtir e dar um rolé por aí, tá ligado? Acho que tu devia sacar.” Epifania. O que mais poderia almejar um jovem castrado do ponto de vista freudiano, à deriva no mundo contemporâneo da aparência desprovido de paradigmas ou quadros coletivos que lhe servissem de norte para a Cultura, vagando de modismo em modismo em busca de um sentido? A ideia de um grupo de eleitos rasgando licenciosamente as ruas da cidade, espíritos livres a preencher a paisagem urbana com o grito selvagem do ronco de suas motos, guiados apenas pelo desejo inconsequente por adrenalina, era uma anunciação dos anjos, uma profecia sendo revelada. O nosso herói encontrava um propósito.

Chegou com antecedência ao ponto de concentração do encontro. Não conhecia ninguém, por isso achou prudente ser discreto. Tentou se aproximar sem fazer alarde, mas, nesse ambiente de entusiastas das motos de alto desempenho, uma “Repsol” atrai instantaneamente os olhares e agrega a seu proprietário todos os adjetivos de um sujeito excepcional. “E aí, parceiro? Tranquilo?”, falou amistosamente um dos participantes do grupo. Rapaz jovem, vestindo-se segundo os últimos catálogos das lojas de moda masculina, e um tanto mofino, pilotava uma Kawasaki Ninja verde que só por milagre parecia ficar de pé. “Tudo certo, véi.”, falou meio acanhado o nosso herói, ainda sentindo o ambiente e se aclimatando. “É a primeira vez que venho aqui, tá ligado? Um brother me falou desse grupo, aí vim sacar qual é.”, justificando-se. “Bem que achei que nunca tinha te visto por aqui. Bem-vindo! Aqui é sem stress. Ainda mais com uma máquina dessa aí, véi...”, disse o estranho lançando um olhar de desejo para a “Repsol”. “Ela berra muito, véi?”, perguntou o rapaz com um misto de timidez e empolgação. “Vruuuuuuuuuuuum!”, ao mais leve giro da maçaneta. “Caralho! É foda! Que berro da porra!”, disse-lhe o garoto cheio de entusiasmo. “Mostra a tua agora, véi.” “Vruuuuuuuuuuum!”. E essa jogatina de demonstração de poderio motorizado logo se transfigurou numa demonstração de virilidade, num teatro primitivo onde os machos mensuram seu poder através da comparação dos falos. Depois de algum tempo nessa folgança de acelerar as motos para medir qual era a mais potente, nosso herói sentiu uma excitação que se alastrava por seus nervos descambando no êxtase. Do mecânico ao fisiológico. Neste momento, quando o êxtase se arrefeceu em euforia, percebeu que todos estrangulavam suas máquinas, produzindo um cânone ensurdecedor de ruído. Os cavaleiros da noite urravam aos ventos um grito de guerra que celebrava seu poderio másculo artificial. De repente, lá no meio de tantas pessoas que nunca tinha visto, nosso herói sentiu-se entre os seus, parte integrante de um movimento e defensor de uma causa. Ao se tornar um membro padronizado dos caçadores de emoções efêmeras, sacrificou o pouco da individualidade que possuía para absorver o ethos que regia aquele microuniverso, sentir-se efetivamente incluído no grupo e reconhecido por seus companheiros como um igual. Essa era toda a dimensão coletiva que conseguia vislumbrar. Algo novo. Para que mais? Estava pronto para pegar a pista, confiante entre seus irmãos. “Tô instigado! A galera vai sair! Vamos nessa!”, falou celebrando seu entusiasmo e seguindo os outros membros da turba para pegar a pista. Assim, entre arrancadas bruscas, manobras arriscadas e muito barulho, a noite sucumbiu rapidamente ante a voracidade do tempo. Nosso herói encontrava seu destino.

De volta a seu quarto após essa epopeia de transgressão e velocidade, o nosso Aquiles se sentia pleno. Refestelava-se na lembrança do que vivera há pouco, ainda com a adrenalina percorrendo-lhe as veias. Novamente diante do espelho, nu, rememorava as cenas de triunfo heroico de seu passeio noturno, dignas de serem imortalizadas nas mais belas postagens nas redes sociais, os anais da fama de seu tempo. O modo como costurava os carros que lhe atrapalhavam o caminho, superando-os facilmente com o mínimo esforço de um giro de mão, as interjeições de euforia que bradava a cada acelerada aguda que dava, a cada empinada que conseguia, as emoções do perigo imanente à campanha, os gritos lancinantes de sua moto a violentar o véu da noite que encobria a cidade; toda essa experiência amplificava aquela dimensão cósmica que vivenciara quando ganhou a “Repsol”. Embora fosse incapaz de vasculhar a imensidão dos sentimentos que lhe povoavam, nosso herói se contentava em enaltecer a sensação de poder másculo que essa cruzada lhe proporcionou. A ostentação de uma precariedade moral profunda virava a seus olhos uma projeção fálica. Ele e sua moto, num só, penetrando o universo. Refez o costumeiro ritual de vasculhar os pertences materiais que lhe adornavam os aposentos e apreciar longamente o próprio corpo. Como de praxe, contemplou suas pernas, peitoral, abdômen e braços. Encarou seu pênis diminuto. Riu! Não um riso de escárnio, mas um riso de glória heroica, de aclamação narcisista, de orgulho másculo, pois agora tinha-lhe agregado algo infinito. Recompôs-se. Fitando seu reflexo, beijou o bíceps direito e se lançou à cama, exausto. Dormiu o sono tranquilo dos imbecis.