domingo, 24 de novembro de 2013

O Labirinto Polimétrico do Meshuggah - Por Bruno Vitorino


Por definição, o labirinto é uma estrutura arquitetônica feita para desnortear. Seus emaranhados caminhos levam a pessoa que se aventurou por percorrê-los a investigações minuciosas sobre a probabilidade em sua jornada na busca por um sentido. Contudo, a exposição contínua a padrões sobrepostos, assimétricos e sem a menor indicação de lugar resulta na perda absoluta do senso de direção. O indivíduo é, então, privado da noção geométrica do Espaço e lançado num limbo onde só existe a reverberação mecânica do Tempo a se desdobrar em si. Transpondo para a música esse conceito labiríntico, a banda Meshuggah urde uma complexa trama sonora combinando o peso do thrash metal com o cerebral encadeamento de angulosas séries rítmicas e letras de forte crítica aos mecanismos de controle e discursos de poder do mundo pós-moderno que impõem rédeas ao homem contemporâneo, privando-o da pluralidade do Eu. O resultado é uma música lancinante, mas de uma audácia estética singular.

Formado em Umeå, Suécia, em 1987, o Meshuggah ganhou notoriedade na cena metaleira internacional com seu segundo disco: “Destroy, Erase, Improve” (1995). Impregnado de uma agressividade corrosiva, o disco registra o trabalho do quinteto com ciclos rítmicos irregulares, ostinatos acentuando a região grave (eles tocam guitarras de 8 cordas), padrões polimétricos intrincados que, executados com uma precisão técnica virtuosística, vão envolvendo o ouvinte a cada tema com o asfixiante abraço da não-referência. À primeira audição do disco, tem-se a sensação de ser subitamente jogado num mundo desconhecido, hostil e de ar rarefeito. Não tem alisado, é porrada sem concessões! Na sequência, veio o excelente álbum “Chaosphere” (1998) que aprofundou as concepções estéticas abertas por seu antecessor e consolidou a banda como uma das mais interessantes do cenário heavy metal da atualidade, e “ObZen” (2008), a obra-prima do grupo, levou a criptografia rítmica ao ápice do rebuscamento. “Amplis, amplius! Sempre mais longe”.

O mais interessante de tudo isso é que o Meshuggah sempre gerou controvérsias dentro do universo metal. Ao subverter a trilha comum das guitarras velozes, dos compassos em 4/4 e das melodias cantaroláveis estabelecida por grupos como Iron Maiden, Metallica e Megadeth, a banda criou um universo perturbador e inteiramente novo que não soa palatável aos ouvidos mais bitolados. Justamente por renegar a cartilha da tradição, o quinteto sueco sempre enfrentou muita resistência dos puristas do gênero que viam em sua música uma mecanização inumana, robótica. No entanto, o que os detratores parecem não enxergar é que sua produção advém de muito estudo, de exaustiva reflexão e – o mais importante – da busca por novos direcionamentos expressivos, mais adequados à liquidez da realidade que hoje se apresenta. É impossível não perceber na obra do grupo reminiscências de Igor Stravinsky, que inverteu a lógica clássica da estruturação musical ao pôr o ritmo, e não a melodia, no cerne do desenvolvimento composicional, bem como da vanguarda jazzística em suas experimentações com o pulso variável. Ao insuflar essas abordagens no metal, o Meshuggah revolucionou o gênero. E, no último sábado (16/11), eu pude testemunhar ao vivo toda essa grandiosidade.

Após de anos de espera, a banda sueca finalmente aterrissou no Brasil em sua primeira turnê latino-americana que passou pelo México, enveredou pelo Chile e Argentina até, enfim, chegar a São Paulo. O foco das apresentações era o seu último disco, “Koloss” (2012), que pode ser considerado o registro mais reflexivo, digamos assim, do Meshuggah. No lugar da agressividade vocal exacerbada e da bateria a enfatizar todas as arestas dos padrões desenhados pelas cordas, surgem uma fúria contida e ciclos polimétricos maiores e contemplativos que, apesar de bastante assimétricos, não chegam a apagar a noção de tempo, apontando os vetores mais para o chão do que ao éter. Ficou mais fácil bater cabeça.

A apresentação aconteceu na casa de show Carioca Club, um espaço conhecido na cidade por abrigar eventos do chamado de “pagode romântico”, que nada mais é senão um eufemismo para o chorume produzido no processo de decomposição mercadológica do samba. Porém, contrariando a lógica, o local escolhido não poderia ser mais adequado: mediano, refrigerado, limpo, com um excelente serviço e um primoroso equipamento de som e iluminação. Organização impecável! Imediatamente lembrei-me das agruras que enfrentei num passado não tão distante nos “sábados de rock pesado” do Abril pro Rock. Senti um calafrio e um imediato alívio ao constatar que era apenas um trauma mau curado de minha adolescência. Nesse ambiente acolhedor, eu conseguiria voltar toda a minha atenção para o palco.

Uma pequena figura em tercinas, que recebia aqui e acolá chapiscos de acentuação rítmica da bateria, ecoava. Sob ela, o bombo fincava um padrão quaternário que acrescentava textura ao esquema, preparando o terreno para mais a frente acomodar a monumental edificação polirrítmica que se modificava internamente com o seu desenvolvimento, intercambiando entre si suas camadas feito engrenagens: “Swarm” abria o concerto. Em seguida, o Meshuggah emendou com a alucinante “Combustion” e seu motivo quaternário picotado apresentado pela guitarra, transpassado pela contagem enviesada da bateria que descambava, após uma seção de hard core moderado, num caleidoscópio rítmico de binários, ternários e suas combinações.

Eu estava pasmo! Era impressionante ver os cabras em ação, tão à vontade com essas estruturas extremamente complexas. A guitarra base de Mårten Hagström erguendo e mantendo os alicerces temáticos; a habilidade de Frederik Thordendal em improvisar tranquilamente nas situações rítmicas mais adversas e ainda acrescentar-lhes tensão e adornos melódicos; as inabaláveis linhas do baixo de Dick Lövgren; a segurança e a firmeza no canto gutural de Jens Kidman e, principalmente, a presença sobrenatural da bateria de Tomas Haake que tocava simultaneamente padrões independentes no bombo, caixa e pratos: tudo estava lá, acontecendo diante de meus olhos! A apresentação seguiu, e vieram outras pedradas não menos atordoantes como “The Hurt That Finds You First”, “Demiurge”, “Bleed”, “Dancers to a Discordant System”, “I Am Colossus”, “Do Not Look Down” e mais algumas outras músicas dos dois últimos trabalhos da banda. Ao final, atendendo ao pedido do público, os suecos fecharam a conta com a devastadora “Future Breed Machine” purificando a alma dos headbangers na roda de pogo, num momento de pura catarse digna de um ritual pagão de uma tribo bárbara.

Chovia. A música que acabara de ouvir reverberava em minha cabeça. Seus ciclos chocavam-se, fundiam-se, enraizavam-se em minha memória. Fitando o infinito pela janela do táxi, eu refletia sobre o cada vez mais raro fenômeno da criação artística. Pensava em como a repetição de fórmulas se mostra hoje tão lucrativa para o establishment da indústria cultural no seu sórdido negócio de vender o conformismo estético para uma massa amorfa, passiva, preocupada estritamente com o divertimento instantâneo e banal, reduzindo a arte a mero cosmético. Mas a experiência pelo qual eu acabava de passar me fez crer que há ainda os que investem contra essa lógica, atuando no subterrâneo do mercado onde habitam resquícios dos velhos ideais da construção artística: o caráter reflexivo da experiência estética, a integridade do artista ante as estruturas formais de comércio da arte, o domínio técnico dos meios de expressão simbólica, a procura pela expansão da linguagem. Nesse sentido, o Meshuggah atua como um desfibrilador que tenta reanimar um corpo em estado letárgico. Depois de pensar nisso tudo, só me restou dizer: louvados sejam os que ousam!

domingo, 3 de novembro de 2013

O Resto é Mise-en-scéne! - por Giba Carvalho

    


A música brasileira vem apresentando um fenômeno diferenciado nos últimos tempos: a capacidade de autocopiar-se. No início do ano passado, fiquei atônito ao saber que os "cultuados" rapazes do Mombojó iriam lançar um disco com releituras dos "maiores sucessos" da "grandiosa" carreira de três discos. Isto já me deixou com a famosa pulga atrás da orelha. O primeiro disco da banda, intitulado "Nadadenovo", é audível e proporcionou aos rapazes o perigoso (e agora comum) status de "inovadores da cena musical". Depois deste disco, eu questiono aos leitores deste blog - "O que virou o Mombojó?" Na minha opinião, um emaranhado de agonia ao tentar mostrar algo diferenciado, que sacramentou toda banalidade dos trabalhos pós-primeiro álbum, com este compilado de aniversário. Aquela velha história - "já que não temos Nadedenovo, vamos enganar os trouxas com Tudodovelho".

Passado algum tempo, eis que surge em 2013 "Mundo Livre S/A vs Nação Zumbi". Um duelo entre as duas bandas que foram pedra fundamental para o Movimento Mangue Beat. Esta é uma idéia utilizada nos EUA, no fim dos anos 90, por bandas de punk e hardcore. Como costumo ouvir bastante bandas do estilo, ressalto a famosa "BYO SPLIT SERIES", iniciada em 99 e dividida em 5 volumes. O formato era um disco de vinil, onde cada banda tocava 6 músicas da outra em cada lado (Álbum Split). Para aqueles que pensam que os caranguejos pernambucanos inovaram com este duelo enlameado de sucessos do passado, afirmo que já no ano passado foi lançado outro álbum intitulado "O embate do século - Ultraje a Rigor vs Raimundos". Confesso que gosto da idéia destes "álbuns split", desde que os mesmos sejam meio e não apenas mais uma tentativa de manter-se vivo no mercado. A Nação Zumbi, como única banda de primeira grandeza de Pernambuco desde que o  Movimento Mangue-Beat foi criado, não precisa disso. Ao procurar algo para ler sobre este trabalho encontro o seguinte - "O encontro no disco 'Mundo Livre S/A vs Nação Zumbi', em que um toca as músicas do outro, é mais do que uma celebração do movimento e das suas canções. É um exercício dos mais interessantes, feito por duas bandas bem diferentes, no topo de sua forma artística."

É este tipo de conveniência que não aceito. Afirmar que ambas estão no "topo da forma artística" é uma piada de pura "brodagem". A Nação Zumbi, mesmo conseguindo manter-se no primeiro escalão, jamais conseguirá chegar perto da grandeza do que foi com Chico Science. Até porque, desde o excelente álbum de 2002, alterna trabalhos irregulares e um monte de lançamentos no formato "ao vivo". Promessa de disco novo na praça em 2014, após 6 anos de ausência. Já o Mundo Livre S/A é um caso à parte. A banda vive completamente de passado e da postura "comuna-intelectual" do "ilustre caranguejo" Fred 04. (Apesar de ter lançado trabalho próprio há menos tempo que a Nação Zumbi.)

Para completar o time, eis que me deparo com a seguinte manchete nesta semana - "Mallu Magalhães é encantadora - diz jornal The New York Times". Fiquei curioso e fui ler as reportagens por inteiro. Concordo que uma crítica no jornal americano deixaria qualquer jovem com muito orgulho de seu trabalho. No entanto, percebi claramente que não passa de mais uma jogada de produtores. Estes lançaram um álbum por lá intitulado "Highly Sensitive". O álbum nada mais é do que outro compilado das músicas dos três primeiros discos da garota cantadas em inglês. Ouvi o último álbum da moça diversas vezes. "Pitanga" (2011) é um álbum muito bem produzido e extremamente bem gravado. Kassin e Marcelo Camelo acertam em cheio nos arranjos que a garota precisa para desfilar toda a infantilidade (ainda?) e sua voz extremamente semitonada. Por falar nisso, a matéria acerta em cheio quando afirma que a mocinha não se preocupa com "o tom" e erra terrivelmente quando vê isto como algo positivo. Afirmo isto, porque com os aparatos que existem hoje em dia nos estúdios, qualquer "Mané" canta e qualquer "Maria" vira fenômeno. Agora, na hora da febre do ao vivo, é que podemos perceber do que de fato um artista é capaz. Voltando a pauta principal do texto, percebemos que estas jogadas estão se tornando cada vez mais usuais dentro do mercado. Neste caso em específico, porque Mallu Magalhães tem 21 anos, três álbuns e a vida toda pela frente. Inclusive, para aprender a cantar. 

O que nós fazemos? Apostamos em talentos não tão talentosos? Perpetuamos semi-Deuses criados por nós mesmos? Regredimos a arroubos juvenis para achar qualidade e graça na música?

As respostas para estas peguntas não são nada fáceis. Ache as respostas dentro dos ouvidos, de preferência, dando a verdadeira relevância ao que merece ser ouvido. O resto é mise-en-scéne!

Versão do disco - Pitanga (2011):



Versão ao vivo no Rock in Rio (2013):