quarta-feira, 19 de junho de 2013

O Gigante - Por Bruno Vitorino


No íntimo, eu já sabia... Sempre soube, na verdade, que era apenas uma questão de tempo. Algo inevitável. Demorou pouco mais de um ano, mas finalmente aconteceu: ontem à noite, virei estatística. Voltando para casa depois de mais um dia de trabalho, fui reduzido da minha condição de pessoa a mero número e passei a ser mais um ciclista atingido por um carro na cidade do Recife.

O local do ocorrido foi a rua Hoel Sette – pertinho da Praça da Jaqueira. Eram 18:30. O trânsito, para variar, estava entre o caótico e apocalíptico. O fluxo, parado ou quase isso. Eu vinha calmamente à direita, com a bicicleta devidamente sinalizada, com capacete, seguindo as leis de trânsito e os protocolos da boa convivência nas ruas, quando, a uns quatro carros à minha frente, percebi que tinha um veículo há um bom tempo com a seta ligada tentando entrar na via. Nenhum carro deu a vez e logo eu, idealista que só vendo, fui inventar de ser gentil e dividir o espaço público com um cidadão igual a mim... Deixei ele passar. Foi o meu erro. O carro que vinha na minha cola não quis esperar, acelerou e me atingiu. Só me restou ficar puto!

Por sorte, tudo não passou de um susto. Não me machuquei, tive apenas prejuízo material. Contudo, experimentei a imensa frustração compartilhada por muitos que, como eu, procuram uma maneira alternativa de se locomover em sua cidade e que também foram vítimas da negligência de outrem. Nesse dia, esbarrei na velha questão do típico motorista que se julga senhor de engenho, vê as ruas como seu latifúndio e, por fim, utiliza o carro como insígnia de poder e diferenciação social. Ciclistas são apenas intrusos e estão sujeitos a uma truculência cínica que sorri silenciosamente a cada acidente. Não deveriam sequer existir. “Sai da rua, filho da puta” é a frase carinhosa que provavelmente todo ciclista urbano já deve ter ouvido. O ranço aristocrático dos tempos de colônia segue firme.

Caminhei eternos 15 minutos até minha morada, carregando minha bicicleta como se fosse um companheiro ferido de guerra - alegoria mais do que apropriada já que o trânsito brasileiro matou, só no ano passado, mais de 40.000 pessoas. Meu corpo era uma sombra esmaecida. Minh'alma, um vórtice a sorver a realidade. O Aleph... Enquanto andava, via pessoas correndo na rua, um carro a avançar o sinal vermelho, gente jogando lixo no chão. Pensamentos invasivos me assaltavam... Lembrei-me do momento que vive o país; do aparente despertar político-social; da imagem de pessoas insatisfeitas indo às ruas, cobrando das instituições e dos donos do poder ações contundentes para a solução efetiva dos problemas que há muito atingem o Brasil. A contradição latente da imagem de indivíduos transgredindo regras básicas da vida em sociedade com a ideia de pessoas que reclamavam aos governantes um país melhor se misturava em minha cabeça num turbilhão. Algo não batia. O gigante acordou! Será mesmo?

As manifestações que eclodem em todo o país são lindas (ainda mais por serem apartidárias) e enchem meu coração de orgulho e esperança, mas isso é apenas uma parte importante do processo de transformação, por uma razão simples: não é possível haver nova política e se não houver nova sociedade. Parece-me imprescindível que as pessoas repensem individualmente o seu papel enquanto cidadãos e qual sua importância na construção de uma comunidade de fato voltada para o bem comum. É preciso, antes de tudo, uma revolução particular, interna, íntima. Extirpar o "jeitinho brasileiro", o chorume aristocrático de nossa sociedade e abraçar a plenitude da igualdade democrática que delimita direitos e deveres para todos independentemente de classe social. As transformações perenes e mais efetivas precisam começar nas micro-relações, do reconhecimento do Si e do Outro como equivalentes no processo político que fundamenta a Nação, o Território e o Estado. Da base ao topo. Do lixo no lixo ao dinheiro para a educação. Do povo para as instituições e seus representantes. O gigante acordou? Não! Ele ainda está em coma e respira por aparelhos. Mas, ao menos, abriu um dos olhos.

Amanhã (20/06) será dia de ocupar as ruas do Recife. De manifestar pacificamente nossa insatisfação nos rumos que estão sendo dados ao Brasil. Gritar por hospitais públicos “padrão FIFA”, real inclusão social, educação de Primeiro Mundo, transporte coletivo barato e de qualidade, fim da corrupção e tudo mais. Motivos não faltam e eu estarei lá a ajudar a despertar esse gigante que há muito se encontra "deitado eternamente em berço esplêndido". Mas, sinceramente tenho a esperança de que alcancemos a maior das vitórias: o revolucionar-se.

3 comentários:

  1. 1.Surpreso e esperançoso, acabo de ler o ocorrido. Sinto-me na sua pele. Sinto, há muitos anos, mais do que todos que você já viveu, esse episódio do eterno esperar por um acidente envolvendo duas rodas frágeis e um ser humano exposto. Há 35 anos uso regularmente a bicicleta (não diariamente, como gostaria). Durante 8 usei também a motocicleta para ir e voltar ao/do trabalho, por necessidade e falta de condições para comprar o segundo carro. Passei incontáveis sustos e três acidentes com a moto. Com muita sorte, nesses 35 anos de ciclismo, com a bicicleta me dei melhor. Alguns arranhões nos joelhos ou nos braços, mas nada grave. É muito difícil reeducar um povo que segue a lógica burra da cadeia do poder no trânsito: o pedestre, parte fraca, sempre sai perdendo (e às vezes dá causa a isso). O ciclista, o motociclista, o motorista urbano de carros pequenos, os demais motoristas de carros maiores, na sequência, urram -mais das vezes- no ronco dos seus motores, a insatisfação do estar parado no trânsito, enquanto os mais frágeis passam, leves e livres. Enfim... a lei das cavernas sempre prevalecendo e só muito de leve sendo apagada da memória "humanimal" que carregamos tantos milhares de anos depois de nos levantarmos nos membros posteriores e começarmos a usar o polegar opositor e balbuciar alguns rugidos desconexos.

    2. 190 milhões em ação, pra frente Brasil, salve a seleção... Quando será que aprenderemos que futebol não rima com coerência ? Que deixaremos de valorizar um "artista" de palco ou de campo, mais do que à nossa própria sobrevivência, saúde, segurança, educação, dignidade e honradez ? Por quanto tempo ainda teremos de suportar essas abjeções políticas que nos perseguem, enquanto nações mais jovens ou nossas coetâneas vão galgando aos poucos um status de desenvolvimento que nem sonhamos alcançar ? A reação a esses absurdos todos foi tardia. Desde a famigerada idéia dos petistas no poder, de trazer para o Brasil copas e olimpíadas até o dia de hoje, são passados vários anos e muita corrupção instalou-se no já corrupto ambiente político brasileiro. Agora é tarde, Inês é morta e o nosso suado dinheiro já foi surrupiado pelos espertos e hoje mudos e bilionários promotores do Gran Circo Brasil. Reclamar, na época (e como eu reclamei, meu Deus !) era de péssimo tom. Derrotista, descrente, reacionário, portador de complexo de vira-latas, a lista de impropérios que tive de ouvir foi longa. Paciência. Mas, é hora de apoiar esse "acordar do gigante". É hora, principalmente de tentar -vai ser difícil- fazer sentar no banco dos réus os ladrões de todas as cores e ideologias. De fazê-los, principalmente, devolver o nosso dinheiro roubado, miseravelmente roubado, em tantas, em milhões de "tenebrosas transações". É hora de recuperar -principalmente- nossa dignidade como Nação.

    3 Desculpe, Bruno, por ter-me alongado tando num simples comentário. Mas eu também queria participar dessa sua santa indignação. Tudo por um Brasil decente !

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  2. O problema é que no Brasil educação se confunde com etiqueta. O tal new rich axa que pelo fato dele saber comer uma salada com 10 pares de talhér, ou falar de coisas que viu pelo mundo, saber o nome de cada suvenir que trouxe da Europa, faz dele alguém com educação. Educado sim, porque quando ele está cortando pelo acostamento a engarrafada BR, ele está apenas sendo esperto. Então aí temos outro conflito: ser mal-educado é um sinonimo de mal-educado, qdo se usa isso pra passar pelo direito alheio.Assim chega-se a uma triste conclusão. Mas uma pessoa que conhece regras da etiqueta (pensando assim ser educado), nunca entenderá ou aceitará qdo lhe xamarem de mal-educado pelo fato dele estar apenas desempenhando seu lado ladino. É por aí...

    Tomé, o Iminente Pai.

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  3. errata: ser esperto é sinônimo de mal-educado

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