domingo, 10 de maio de 2015

Variações em 5/4: Vulnicura



Na coluna deste mês, os editores do blog comentam o mais novo trabalho da cantora Björk, seu recém-lançado “Vulnicura”.

Boa leitura!

- Giba Carvalho:

Em seu novo álbum, Björk tenta expor e ao mesmo tempo sarar as feridas do fim do seu casamento. Parece receita de bolo da vovó, mas até mesmo na gélida Islândia, o idoso mote afetivo serve como inspiração para novas composições. Pois bem, "Vulnicura" é um disco muito bem produzido e que possui alguns pontos interessantes.

Primeiramente, os trabalhos da "Deusa do Gelo" parecem ser feitos para transcender o espaço único da música. Talvez por conhecimento das apresentações ao vivo de Björk, insista em dizer que a artista em foco pensa sempre que seus discos são unicamente para encenações tão peculiares as suas apresentações. É como se fosse uma peça de teatro constante, intensa, lotada de diversos artefatos e que toda produção fonográfica fosse a trilha sonora para tal. Ao vivo funciona muitíssimo bem. Já para audição, “Vulnicura” torna-se enfadonho e confuso.

Os gemidos incessantes de Bjork transitam de forma eficaz numa tentativa de mesclar música erudita com tons de eletrônico. Tenho que levar em consideração, que em comparação com trabalhos anteriores, este é um dos álbuns que ela menos arriscou em termos instrumentais. Isto fez com que o disco soasse altamente estranho. A mescla supracitada é insuportável (com exceção dos arranjos de cordas que são muito bons). Voltando ao ponto de vista vocal, a cantora desfila momentos de extrema emoção e dramaticidade em vários momentos do álbum. Para que o leitor tenha idéia, as seis primeiras canções do disco são como se fosse um glossário dos períodos pré e pós-separação. Não tem como não ser de outra forma. É completamente perceptível.

“Vulnicura” é um disco passional por inspiração, chato nos arranjos e contraditório nas composições. Nada diferente das almas que sofrem por amor.

- André Maranhão:

Para mim está bem claro que Björk é um ícone da música. Seus lances performáticos, somados aos seus gestos camaleônicos deixam isso claro há mais de décadas. O álbum “Vulnicura” também faz jus a todas essas qualidades da artista islandesa. O uso de instrumentos eruditos embaralhados com sintetizadores, colagens, ruídos sampleados, além da vocalização bastante afinada de Björk, contendo, inclusive melodias nórdicas, estão presentes nas canções desse trabalho. Creio que em algumas faixas isso funciona bem. Aqui, destaco Stonemilker (para mim, a melhor do disco); History of Touches; Atom Dance e Black Lake – embora, não considere todas elas necessariamente boas por completo. As demais faixas me parecem confusas, onde Björk vagueia entre os mares de sua voz desconexa com os ritmos eletrônicos e os instrumentos acústicos que trouxe para o álbum. Apesar da importância dessa artista, confesso que em alguns momentos, foi uma tarefa bastante árdua concluir a audição de “Vulnicura”. Mas é possível que ao se combinar com as apresentações de Björk no palco, essas canções envolvam mais, pois lá estarão presentes outros recursos multimidiáticos e cênicos, tais como telões, figurino, maquiagem, expressão corporal, importantes para compor o sucesso da artista, cuja competência ela já demonstra possuir faz tempo.

- Fernando Lucchesi:         

Ainda me recordo a primeira vez que ouvi falar em Björk. Uma colega de classe me falava demais sobre a banda dela, o Sugarcubes. No entanto, como qualquer pessoa no começo dos anos 1990, a primeira vez que vi e ouvi Björk foi através da MTV no clipe de uma música chamada Human Behaviour. Clipe muito bem feito, mas quando ouvi o estilo de música que ela cantava a decepção foi grande. Aquela voz baixa, quase fraca que parece que vai desaparecer realmente não fez minha cabeça. Eis que agora foi proposto pelo blog analisar o novo álbum dela, intitulado “Vulnicura”.

Bom, quase 20 anos depois de ter escutado Björk pela primeira vez continuo achando uma das coisas mais enfadonhas da música. A voz dela aliada a alguns arranjos de teclado meio New Age transformam boa parte do álbum num excelente soporífero, mas seria injusto dizer que tudo é ruim. Os arranjos de cordas são muito bonitos e bem executados, como, por exemplo, em Stonemilker e Lionsong, só para citar dois exemplos. Outro destaque do disco é a longa e intensa Family

Enfim, se você é fã de Björk você vai se deleitar com Black Lake, uma mistureba de sons eletrônicos de dez minutos de duração e vai achar o disco uma das coisas mais revolucionárias do planeta. Mas se você, assim como eu, não tem nenhum apreço pelo som dela, passe longe desse disco.

- Bruno Vitorino:

Não sou um expert em Björk. Muito pelo contrário. Quase nada conheço da cantora, além de sua brilhante atuação no filme “Dançando no Escuro” (2000), dirigido por Lars von Trier, e da trilha sonora que a artista compôs para esta película densa e emocionalmente profunda. Lembro – e isso faz muito tempo – de ter ficado bastante impressionado com a música em si, o uso que Björk fazia de batidas eletrônicas, da sonoridade emanada do maquinário que sua personagem manipulava, das harmonizações vocais, dos timbres orquestrais, enfim com a música grandiloquente feita por alguém que sabia exatamente o que estava fazendo. Um trabalho musical primoroso que dialogava de modo muito interessante com o filme, conferindo-lhe ainda mais peso emotivo. Por sinal, nunca me esqueci do quão desnorteado fiquei ao final da sessão de cinema. O impacto do filme, potencializado pela trilha sonora, atingiu-me em cheio e saí da sala embevecido pelo prazer estético.

Para além deste trabalho, no entanto, nada conheci além do hype-diva que envolve a cantora islandesa. E, apesar de ter gostado de “Dançando no Escuro”, todo este frenesi cult me manteve afastado e absolutamente desinteressado por sua música desde então. Acabei trilhando outros caminhos sonoros que me levaram para longe de suas fronteiras estéticas. Contudo, “Vulnicura” e a necessidade de comentá-lo para a coluna fizeram com que me reencontrasse com Björk depois de todo esse tempo. Foi, confesso, uma agradável surpresa.

“Vulnicura” é um disco extremamente íntimo no qual a cantora disseca o fim de seu relacionamento com Matthew Barney e a devastação humana que isso lhe causou numa espécie de drama eletro-orquestral. É um disco fragmentado, como um coração em frangalhos, onde cada canção esmiuça resquícios de sentimentos por vezes conflitantes, pinta aquilo que poderia ter sido entre eles e medita sobre as repercussões emocionais do ocaso do amor onde, no entanto, um ainda ama. Porém, a segmentação do álbum, mais do que comprometer sua coesão narrativa, aprofunda-a, pois cada música parece estabelecer entre si um laço emocional, como se cada uma delas jogasse luz sobre um aspecto diferente do sofrimento uno. O andamento largo que perpassa todo ele, mantém, do ponto de vista musical, sua unidade e é o fio condutor que leva o ouvinte a percorrer as paisagens emocionais que  Björk constroi com o uso de belas tessituras nas cordas, de uma sólida base rítmica promovida pelas programações eletrônicas e de ricas melodias que cortam os céus desses mundos confidenciais. Destaque para Stonemilker, History of Touches e Family.   

Sim, concordo, o disco é "paradão" (embora prefira o termo “contemplativo”). Sim, as inflexões vocais de Björk são, de fato, um pouco irritantes (embora haja muita beleza expressiva e técnica em sua voz). Sim, reconheço também certa contaminação new age nos temas (embora prefira ouvir os ecos de Jean Sibelius que as cordas me trazem). Concordo com tudo isso! Mas, se levarmos em consideração que vivemos num tempo no qual os artistas se reduziram a celebridades midiáticas que fomentam estilos de vida e padrões de consumo, que a sensibilidade coletiva se vulgarizou ante o inútil e o superficial, que pouco ou quase nenhum espaço é dado à criatividade no que sobrou daquilo que a humanidade conheceu um dia por arte; somos obrigados a reconhecer a coragem de Björk em compartilhar, de modo franco e inteiramente aberto, com milhares de pessoas ao redor do mundo, o abissal e doloroso mergulho dentro de si traduzido de maneira bastante exitosa numa música tão delicada, e de certa forma resgatar, com isso, a perspectiva esquecida da arte que busca unir os indivíduos no abstrato de seu arcabouço simbólico. Particularmente, acho um feito notável neste “mundo prostituto”, para usar uma expressão de Rubem Fonseca.

Por todas essas questões, meus caros, “Vulnicura” é um disco que merece, ao menos, uma audição bastante atenta.

- Rógeres Bessoni:

Björk, usualmente, me tira da minha zona de conforto. E isso está longe de ser um demérito. Mas, por si só, também está longe de ser um mérito. “Vulnicura” me trouxe, em seu começo, elementos poderosíssimos para mim, que são os excelentes arranjos de cordas, em alguns momentos com matizes dos violinos do leste europeu, de que tanto gosto. E terminou por aí. Para todo o resto, aplica-se o que vou morrer de velho falando, sem nenhum constrangimento – ao contrário, afirmo cada vez com mais firmeza: o mundo musical da pura técnica, sem melodia e sem apresentar uma construção sólida, me interessa muito pouco ou nada. E não acho que “Vulnicura” é um exemplar de “pura técnica” musical. No máximo, pode ser uma boa experiência sonora de técnicas de estúdio. No caso específico de Björk, a simples opção pela estética do bizarro não traz para mim nenhuma experiência de acréscimo ou revelação. Digo isso porque, para que “sirva” de alguma forma, a vivência de sair da zona de conforto tem que ter caráter iniciático. Um Mestre sempre lhe conduz a perceber como era mais estreito o lugar que você ocupava antes, e como é melhor a nova visão que se abre. E estamos falando de música, 45 minutos de andamentos quebrados, praticamente sem nenhuma linearidade, ruídos tecnológicos, sussurros, ruídos humanos que parecem de agonia, a loucura, o soturno, a fronteira do horror...

Ah, eu captei exatamente o que o álbum queria? A visita aos porões de uma mente atormentada? O transe esquizofrênico? Relatos do terror noturno? Uma tarde de um domingo de chuva, em depressão profunda, num sanatório? A literatura já produziu obras-primas por esses caminhos. O cinema também. A pintura e a música também. Era isso que Björk queria passar, e eu, acertadamente, captei? Não sei, e não é o que me interessa que falo em MÚSICA. A construção musical baseada exclusivamente em desconstrução não me diz absolutamente nada. O choque pelo choque não me conduz a nenhuma experiência estética libertadora, em nenhuma vertente da arte. Por exemplo, até hoje considero que assistir ao filme “Irreversível”, com o estupro de Monica Bellucci filmado em tempo real, sem cortes, foi um dos empregos de tempo mais inúteis da minha vida. Não pensei nada mais iluminado depois de ter me submetido àquilo. Foi assim que os últimos 45 minutos de Bjork não me libertaram mais do que 5 minutos de Mutantes, nem me revelaram a alma humana mais do que meia letra do Pink Floyd. Eloquência, maestria poética e virtuosismo, domínio da plasticidade dos sons - esses elementos são manejados acertadamente e grandiosamente por poucos. Nem todo ajuntamento de elementos configura para mim uma construção, ainda que espelhe uma intenção.

Hoje em dia, por exemplo, meu querido Recife é um amontado de edificações, e discute-se se isso resultou numa cidade. A ininterrupta fratura rítmica pode até ter revelado a descontinuidade da cabeça de Björk, pode até ter sido uma realização deliberada, planejada, mas não me conduziu pelas minhas próprias quebras existenciais – se é que o álbum algum dia se propôs a isso. Aquele encadeamento de sons não produziu em mim a perplexidade, a surpresa do aprendizado. E, ademais, quando uma obra pretensamente artística nos conduz ao desconforto, é significativo que também suscite em nós o deleite do insight, sem o qual esse desconforto não pode ser contemplado e digerido. Uma  situação de tormento perene, sem alívio, não se converte em luz – no caso, não se converteu em uma “luz estética”, digamos assim.

O portentoso rock progressivo, em seus diversos matizes, já me mostrou abismos. Mas, assim como Dante atravessou o horror guiado pela poesia, personificada em Virgílio, o progressivo nos conduz também por uma riquíssima malha poética e por um território de grande virtuosismo musical, além de verdadeiras odisseias melódicas. É, pois, ante todo o assombro que grandes obras já operaram em mim, que “Vulnicura” se me apresentou verdadeiramente sofrível. Eu sinceramente acho que o universo do ruído agressivo, do torto, do bizarro, do “desconstruído”, é um abismo em que a ocidentalidade caiu, e do qual não sabe sair. Pensaria diferente se visse que transitamos de dentro para fora da melodia a nosso bel-prazer, mas não vejo isso. A criatividade da construção melódica e das sólidas construções rítmicas, que rendeu à humanidade escolas como o blues, o samba, o flamenco, a música indiana e, mais recentemente, o grande hard rock (apenas como exemplo), parece uma ciência perdida. Parece algo que não é feito porque não se sabe mais como fazer. Respeito a artista, respeito toda e qualquer intenção artística, respeito os fãs, mas parafraseando a própria Björk, “I have musical needs, oh, needs...” E vamos em frente. O garimpo continua.