quinta-feira, 10 de setembro de 2015

Selvagem Wolverine – Por André Maranhão




Não faz muito tempo que Walter Palmer, um dentista dos Estados Unidos, resolveu caçar no Zimbábue e matar o leão Cecil, um dos mais carismáticos símbolos daquele país africano. A repercussão do fato foi rápida, pois em um mundo global, onde se joga o jogo das identidades (como diria Stuart Hall) Palmer amargou em poucos instantes, fortes mudanças sobre a sua reputação, desdobrada pelas opiniões públicas, imprensa e redes sociais. Se antes ele era simplesmente um profissional norte-americano de uma pequena cidade em Minneapolis, cujo ofício era o de cuidar das pessoas – em poucas horas, Palmer passou a ser considerado como uma criatura sem coração, compaixão e um mau caráter – coisa ainda mais agravada se pensarmos que o felídeo Cecil ainda agonizou por 40 horas antes de ser completamente abatido.

Ora, também não faz muito tempo que a Editora Panini publicou Selvagem Wolverine, uma série espetacular da Marvel. A primeira saga, intitulada Venha Conquistar as Feras, teve o roteiro assinado por Phil Jimenez e Scott Lope. Ela apresenta um Wolverine frontalmente crítico às matanças de elefantes e rinocerontes na África, além de opositor a todo um comércio clandestino de marfim. É claro que parte dessa militância já se fazia bem presente no filme Wolverine Imortal (lançado em 2013 no Brasil), quando o velho Logan, vivido por Hugh Jackman demonstrava toda a sua solidariedade a favor de um urso brutalmente perseguido nas montanhas do Canadá por caras armados com arcos e flechas envenenadas. A diferença é que em Selvagem Wolverine, um frisson curioso parece tomar conta da história, quando o tráfico de marfim se cruza com algo aparentemente improvável: a prostituição infantil do sudeste asiático. Numa encruzilhada ética e em um mundo marcado por seus ricochetes (usando aqui um termo de George Yudice) e turbulências, Logan se reparte entre os destinos das garotas da Ásia, os animais da África e o seu passado manchado de sangue, guerras e, inclusive, caçadas. A consequência disso se faz em uma trama atualíssima, sobretudo quando nos percebemos como parte de um mundo global (ou até glocal), cujas posições e práticas vivenciadas em pequenos espaços de ação podem interferir nas condições de vida de atores humanos e não-humanos, espalhados em posições tão desiguais.

Já a segunda parte de Selvagem Wolverine se chama Ira, e é esplendidamente contada e historicizada por Richard Isanove – um artista francês que estudou animação em Paris e na Califórnia. Ira se passa na fronteira entre os Estados Unidos e o Canadá ao longo da Grande Depressão, sentida pela crise de 1929 em Wall Street. À época, Logan (que fazia bicos com transporte clandestino de bebidas alcoólicas em plena Lei Seca) se vê com a desafiadora tarefa de proteger crianças de criminosos sanguinários e calculistas. Embora ainda desprovido do adamantium enxertado em seus ossos pelo programa Arma X, Logan já dispunha de seu fator regenerativo e dos instintos de carcaju, que lhe serão exigidos ao longo de seus embates contra figuras temíveis e claramente impiedosas em Ira.

Não diminuindo a relevância e a atualidade temática de Venha Conquistar as Feras, Ira é seguramente a melhor parte de Selvagem Wolverine, pois além de ilustrações mais ricas, está repleta de exercícios narrativos que incluem parte da história dos imigrantes dos Estados Unidos, além de diálogos que não se deixam cair na monotonia ou no lugar comum das séries de heróis das HQs incumbidos pela missão de derrotar alienígenas, vilões fantasiados, ou monstros redundantes. Ira é novela gráfica que se aproxima de um traço noir, perfeitamente sugestiva nos adversários de Logan, dessa vez, engravatados, armados com facas, lâminas de barbear, garrotes, metralhadoras, e mancomunados com as polícias locais além da máfia de Chicago. Num período em que Al Capone se digladiava com Eliott Nes, uma história como Ira deixa as mortes correrem soltas, que se acoplam com total sentido e se tornam ainda mais icônicas quando transpostas para lugares como motéis, orfanatos e montanhas do Colorado. Selvagem Wolverine é certamente um dos lançamentos mais profícuos da Marvel em 2015. A sua leitura vale muito. Se Will Hunting (um personagem vivido por Matt Damon em Gênio Indomável) disse que os grandes livros são aqueles que nos deixam de cabelo em pé, com certeza Selvagem Wolverine é forte candidato para levantar nossa cabeleira!

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

O Que Ouvi de Interessante no Mês de Agosto – Por Bruno Vitorino


Agosto foi um mês de saxofonistas na minha escuta. Talvez por causa de certa preocupação e pesquisa das questões da melodia – motivos, tema, fraseados, articulação, etc. – tenha intuitivamente voltado meus ouvidos para estes instrumentistas. Separei aqui três dos discos que ouvi mês passado, todos projetos capitaneados por saxofonistas, mas que apontam caminhos estéticos diferentes entre si, atestando o quão pessoal pode ser a música em sua infinita variedade.


1.     Mark Turner Quartet – Lathe of Heaven:




Dos saxofonistas contemporâneos radicados em Nova Iorque, Mark Turner sempre me pareceu a menos badalado de seus pares em seu mundo da arte, atuando à sombra de figuras estelares como Chris Potter, Joe Lovano e Joshua Redman, recebendo pouca atenção da crítica especializada e desempenhando um papel relativamente discreto no circuito internacional do jazz. No entanto, o tenorista formado na Berklee College of Music e descoberto pelo trombonista/produtor Delfeayo Marsalis (o mais novo dos irmãos da dinastia Marsalis) no início dos anos 1990 vem conseguindo se sobrepor à subestima com um estilo de improvisação bastante particular que privilegia longas e bem arquitetadas linhas melódicas, o uso dos espaços e da variação motívica, saltos inesperados nos registros do sax notadamente a explorar os agudos como recurso provedor do clímax; sintetizando, com isso, numa espécie de dialética sonora, explosão emotiva e contenção racional de seus impulsos. Obviamente influenciado por John Coltrane e Sonny Rollins, pois são referências inescapáveis a qualquer saxofonista do gênero, seu estilo, entretanto, busca primordialmente reconectar o tenor à tradição de certa forma esquecida do contemplativo Cool Jazz, mais especialmente ao sax de Warne Marsh, daí a singularidade de sua sonoridade.

“Lathe of Heaven”, disco lançado em meados do ano passado pelo selo alemão ECM Records, documenta a maturidade de Turner enquanto solista decantada ao longo de sua carreira, além de enfatizar, pela primeira vez, a meu ver, seu talento inerente para a composição além dos esquemas convencionais de saxofonistas prolixos no qual um tema é estruturado por blocos que expõem uma melodia - geralmente complicada, cheia de notas e picotada por acentos rítmicos incomuns -  através de centros tonais que servem de guia para os músicos nos solos que giram indefinidamente sobre toda a forma. Neste sentido, o que se encontra no álbum do tenorista é a preocupação de um compositor inteiramente consciente de seus objetivos estéticos em enfatizar os silêncios, desenhar melodias vagarosas que se movem calmamente por meio de notas longas tocadas em contraponto que gravitam sobre uma seção rítmica bastante fluida e liberta dos constrangimentos impostos pela noção tradicional de swing em 4/4; valendo-se da ausência de um instrumento harmônico para, além de depositar mais responsabilidade sobre todos os envolvidos no delicado processo coletivo da interpretação em contextos de espaço amplo, articular seções ancoradas por um sentido harmônico (geralmente modal) a outras inteiramente abertas de improvisação coletiva. Com isso, Turner, Avishai Cohen (trompete), Joe Martin (contrabaixo) e Marcus Gilmore (bateria) conseguem a proeza de transitar com muita naturalidade entre tradição e o avant-garde numa música que propõe uma ideia pouco usual de lirismo que é, de alguma maneira, clássica, mas inteiramente nova. Disco altamente recomendado.





2.     Steve Lehman Octetc – Mise en Abîme:




O disco do Steve Lehman é uma porrada! É um trabalho que apresenta ao ouvinte sério e aos músicos interessados com os aspectos da composição, interpretação e improviso possibilidades inteiramente novas e inspiradoras. Desdobramento natural de sua tese de doutoramento em música na Universidade de Colúmbia (clique AQUI para ler), em “Mise em Abîme” o saxofonista depura sua abordagem musical baseada em três conceitos chave: a música espectral, que consiste basicamente em decompor uma nota musical em sua série harmônica e considerar todo esse halo sonoro nas escolhas da orquestração, harmonização e improviso; improvisação afrológica, que mais do que uma técnica ou estilo, sintetiza um conceito de improvisação, um ethos musical fundamentado na espontaneidade das decisões tomadas "na hora" durante a performance, no caráter colaborativo do ato de tocar, na preocupação em articular personalidade e perspectivas individuais através do som; e limiares rítmicos, ideia que foca na percepção cognitiva dos fenômenos rítmicos. Mas, calma! Não se assuste com todo esse embasamento teórico, pois não se trata de uma música científica, laboratorial e inorgânica, mero exercício formal e acadêmico da construção sonora. Há, isto sim, uma ousadia de se procurar novas maneiras de compor, improvisar e interpretar um tema por trás de todo este aparato conceitual que mais remete à música erudita de vanguarda que ao jazz. No entanto, Lehman tenta aqui erguer uma ponte entre estes dois mundos, fazendo com que se retroalimentem e se expandam enquanto linguagens e plataformas expressivas. E, ao fazer isso de maneira muito firme através de uma música inteligível e palatável, propõe uma outra sensibilidade, uma outra construção estética que defina um novo conceito de beleza bem distante daquela que se sedimentou em nossa memória auditiva. Música para mentes abertas, ouvidos inquietos e curiosos. Altamente recomendado!



                 
3. John Coltrane – Offering: Live at Temple University:




Em outubro de 1956, John Coltrane foi expulso do aclamado quinteto do trompetista Miles Davis. Miles, digamos usando um termo suave, estava “triste” com o comportamento do saxofonista. Seus problemas com o álcool e o vício em heroína faziam com que Trane estivesse sempre em más condições: chegava atrasado, cochilava no palco, errava as entradas dos temas, era displicente nos improvisos... Era o fundo do poço. Até que, em meados de 1957, Coltrane, nas palavras do próprio, experimentou, “pela graça de Deus, um despertar espiritual que me levou a uma vida mais rica, plena e mais produtiva”[1]. Por conta dessa epifania, o saxofonista entrou numa espécie de primeiro ciclo criativo que lhe rendeu as camadas de som (sheets of sounds), complexos esquemas harmônicos e os álbuns “Blue Train” e “Giant Steps”, ambos clássicos e obrigatórios. A partir de então, o aspecto espiritual passou a estar presente na concepção musical de John Coltrane, e, à medida que ele continuava sua busca por uma música que abarcasse todas as suas necessidades expressivas, este caráter religioso foi tomando um papel cada vez mais central em sua produção.

Lato sensu, “Offering: Live at Temple University” documenta um John Coltrane em sua última fase: absolutamente imerso naquela perspectiva transcendental de sua obra, de busca em não apenas se reconectar com uma Força Criadora através da música, como também em ampliar suas fronteiras estéticas para ainda mais longe. Olhando mais especificamente, o disco duplo traz o registro do concerto histórico dado por Coltrane e seu grupo em 11 de novembro de 1966 - quando ele já não mais se apresentava em clubes, e sim em igrejas e templos - em que, de maneira totalmente inesperada e espontânea, ele põe seu instrumento de lado e começa a cantar e bater no peito, inteiramente mergulhado num transe. Através deste precioso documento é possível identificar aspectos fundamentais da música do saxofonista em seu último estágio, isto é, sua preocupação com o ritmo pelo incremento de percussionistas;  o ainda vigoroso som do tenor e as intensas sessões de improvisação, a despeito da debilidade de sua saúde por causa do câncer no fígado que em 6 meses lhe retiraria a vida; e, o mais importante, como as composições serviam de plataforma para vôos individuais e coletivos pelas paisagens abstratas e rarefeitas do etéreo com o mais puro intuito de comunicar o sublime. Por isso, “Offering” é o testemunho de que Coltrane em seu mergulho na espiritualidade se entregou inteiramente a celebrar e agradecer ao Cosmo pela dádiva da vida, como se afirmasse um preceito dos sufis que defendiam que “a totalidade da criação é o som e que tudo surgiu e desenvolveu-se através do tom e do ritmo”[2]. Um disco obrigatório para os iniciados na liturgia de John Coltrane, mas, talvez, não adequado para aqueles que iniciam contato agora com sua obra.







[1] Trecho retirado do texto escrito pelo próprio Coltrane para o clássico “A Love Supreme”.
[2] KHAN, Musharaff Moulamia; “A Vida de Um Sufi”, Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1973, pág. 119.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

Capitão Britânia N.º1 – Por André Maranhão


A editora Panini tem publicado no Brasil uma série de edições clássicas dos quadrinhos internacionais, e uma de suas parcerias mais férteis é seguramente com a poderosa Marvel Comics. Entre tantas sagas e histórias legais, a Panini lançou em abril deste ano o Capitão Britânia, personagem dotado de poderes mentais, golpes superpotentes, voo e campo de força – cujas edições originais apareceram em Marvel Super-Heroes 377-388, Daredevil’s 1-11 e The Mighty World Marvel 7-33.

O Capitão Britânia tornou-se um herói carismático assinado por outros dois ícones britânicos – os xarás Alan Moore (autor de outros sucessos dos quadrinhos e dos cinemas, tais como Watchmen, V de Vingança, Do Inferno, A Liga Extraordinária) e Alan Davis (responsável por várias edições de Excalibur, Batman e Liga da Justiça), cujo traço se encaixa perfeitamente com a trama que envolve uma infinidade de universos paralelos, quiçá “omniversos” ou “multiversos”, como a própria saga nos sugere. O herói, cujo alter ego é o de Brian Braddock se depara com cidades de Londres alternativas, imersas em diversos tempos históricos; e se pensarmos que a narrativa foi originalmente publicada no início dos anos 1980, uma das Inglaterras mais polêmicas talvez emerja em 1982, quando o povo carrega em suas faces apáticas e zumbis um ar de tristeza e descrença na justiça e nos atores políticos que ali governam, mandam e desmandam. Aliás, em termos do poder político, é preciso lembrar que o próprio Reino Unido atravessava naquela época o governo Margareth Thatcher, com suas políticas de austeridade fiscal, privatizações e ações policiescas/ostensivas sobre os trabalhadores, assim como se envolvia na Guerra das Malvinas, cujo confronto com a Argentina deixaria marcas profundas em ambos os estados nacionais, a despeito da vitória militar britânica.

Os ricos cenários presentes em Capitão Britânia nos revelam personagens controversos, complexos e imprevisíveis. Seja com o elfo Jackdaw, a “Sua Duvideza” Saturnyne, o louco Jim Jaspers, Betsy Braddock (a irmã de Brian e a Psylocke dos X-Men), ou com o próprio mago Merlin, é possível nos depararmos com uma série de incertezas, de idas e vindas, além de fracassos vivenciados próprio Capitão. Muitas vezes, os fatos podem se tornar inclusive confusos e imprimirem repetições. Por outro lado, esses pontos se ajuntam com histórias curtas em uma sequência incomum de acontecimentos para os quadrinhos. Para quem nutre curiosidades e envolvimentos com o mundo das HQs, o Capitão Britânia é uma saga altamente recomendada!