sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Complexo de Lombriga - por Bruno Vitorino



"Não tenho paz, nem descanso, nem repouso; o que me vem é agitação" – Jó 3:26


"Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregor Samsa deu por si na cama transformado numa gigantesca lombriga." Esse bem que poderia ser o início do livro A Metamorfose se Franz Kafka fosse recifense. Imagino que ao invés de discorrer alegoricamente sobre a opressão esmagadora de um pai austero e quase sádico, o autor extrapolaria os demônios de seu núcleo familiar para retratar os tormentos que nascem de se descobrir um verme numa cidade que não passa de um amontoado de bosta.

Explico:

Obviamente que amo o Recife e que escrevo isso sob o ímpeto do desgosto e o assombro do desespero. Mas, infelizmente não há como ser de outra maneira... Aqui impera um “salve-se quem puder” generalizado de modo que uma verdade tão banal como a ideia aristotélica de que os seres humanos vivem em sociedade em busca do bem comum não passa de um devaneio. Alguns chegam mesmo a afirmar inclusive que se trata de um desejo pequeno burguês demais para ser implementado por essas terras. Síndrome de colonizado, vontade de ser americano - eles se referem aos EUA - e outras baboseiras que reverberam feito mantras nos diretórios acadêmicos dos cursos de ciências humanas (sou formado em História e já ouvi muito esse papo). Legal mesmo é socializar a miséria!

Hoje o Recife irradia um tacanho bairrismo materializado no pior dos sentidos: a cegueira crônica ante suas mazelas.

Em qualquer direção que se olhe, há uma transgressão, um desrespeito à regra, uma agressão à ideia de comunidade. Do motorista que não respeita a faixa de pedestre, passando pela construtora que desconsidera o interesse público para especular livremente com a conivência da presente gestão municipal e da sociedade civil (afinal há quem compre esses empreendimentos, não?), chegando ao prefeito recém-eleito que estranhamente nomeia um Secretário ficha-suja para compor o primeiro escalão de seu governo. É algo tão endêmico em nossa sociedade que transcende a normalidade para descambar na naturalidade. E essa diferença, meus caros, é crucial, pois o “normal” são práticas sociais de uma comunidade amalgamadas e significadas por um aparato cultural/ideológico que distingue e legitima esse grupo, ou seja, é o conjunto de símbolos que dá sentido a esse microuniverso. Já o “natural” é quando esses signos são introjetados de tal forma que são vistos como condição intrínseca ao Ser Humano. No nosso caso, é a naturalização do “jeitinho”.

Pois bem, ontem (20/12) após um dia de muito trabalho e do desgaste que é o embate com a Rua, chego à minha casa para, enfim, por os pés para cima e apenas existir.  Tudo corria bem até que, às 21h, fui violado no meu direito de descansar em minha residência. Nesse horário, deu-se início a uma festa de confraternização (eu acho) da Luni Produções que fica exatamente ao lado de minha morada. Barulho, música ensurdecedoramente alta (com banda inclusive), gritos e burburinho; toda essa combinação numa área estritamente residencial! Resultado: ninguém dormiu até as 2h da matina, quando a festa foi minguando.

Fiquei perplexo! O que faz com que essas pessoas se sintam no direito de perturbar o sossego de todos os moradores do entorno? O fato de serem artistas? A inconsequência do desinteresse pelo Outro? E logo essa turma descolada que prega o discurso de "uma cidade para todos", participa de movimentos #Ocupe(...) e outros engajamentos políticos supostamente intelectualizados. Pois é! Justamente eles, sem o menor pudor, desconsideraram esses preceitos de uma cidade mais humana para incomodar toda uma vizinhança de trabalhadores apenas para promover vernissages de "ver e ser visto" nesse teatro dos vícios em que vivemos. Afinal, uma festa na Luni Produções é sinal de, hipoteticamente, distinção artística e, quiçá, social! É como um carimbo a referendar a sua entrada numa espécie de seleto grupo de artistas alternativos locais bem sucedidos. É quase um privilégio ser convidado. Por que então esses eleitos dos deuses haveriam de se preocupar com os reles mortais que acordariam cedo no dia seguinte para pegar no batente?

“Mas, nada está tão ruim que não possa piorar”; é o que dizem. Meu filho, um bebê de 6 meses e 20 dias, acabou acordando com toda essa balbúrdia. “Fodeu! Puta que pariu! E agora?!”, pensei. No auge do desespero, liguei para a polícia. “Já existem outras reclamações iguais a sua, senhor. A viatura já partiu para o local”. Alívio... Mas, depois de esperar em vão a chegada das autoridades e experimentar a raiva, a desesperança, a angústia e, por fim, a frustração; despertei de meu estado letárgico. De Recife, a Veneza brasileira ao Hellcife, o inferno na Terra. Como num livro de Kafka, de súbito, parecia que eu tinha sido arrancado de uma paisagem onírica e me vi um verme com merda até a cabeça!

Quem quiser que veja poesia num lugar onde todas as pessoas carregam o medo perene de ter uma arma apontada para sua cabeça, onde o carro impera em detrimento do transporte público, onde prédios brotam como se fosse mato sem qualquer planejamento, onde o shopping é a redenção lúdica da população, onde não se pode sequer dormir em paz depois de um dia duro... Eu vejo apenas caos!

Enquanto situações como a que relatei ocorrerem naturalmente, o Recife que carrego no peito será apenas uma idealização e estaremos a chafurdar em nossa própria lama. Como podemos ser uma "cidade mais humana" se uma das regras mais básica da vida em sociedade – a lei do silêncio – não é respeitada?!

Um Novo Recife... Só rindo! Não conseguimos nem nos livrar do velho.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Temes o romântico? - Por Dom Angelo



Para algumas pessoas este texto será um atestado de cafonice de minha parte. Uma espécie de confissão obscura, ou mesmo uma revelação de “gostos duvidosos”.

Como muitos sabem, toco, estudo e pesquiso jazz. No mundo da música, sou fã de artistas como Miles Davis, Thelonious Monk, Bill Evans, John Coltrane, Ornette Coleman, Kenny Wheeler, ou de compositores como Stravinsky, Debussy, Bach, Liszt, Beethoven, Palestrina, e ainda de Jobim, Gismonti, Veloso, Buarque, Seixas, Ben Jor, Cartola, Science, sem esquecer de Gainsbourg, Pixies, Pistols, Floyd, Nirvana, Smiths, dentre outros.

Assim como a música desses mestres me emociona até hoje, algumas canções que fizeram parte da minha infância e pré-adolescência também me tocam de uma forma, digamos que...curiosa. Se você teve infância, pré-adolescência ou mesmo adolescência nos anos 80 e inicio de 90 sabe bem de que assunto estou falando.

Sabe aqueles momentos (quando não estava jogando Atari ou Master System) em que ficava ao lado do seu “rádio gravador” ouvindo a programação da rádio Cidade ou Transamérica, sempre com sua fita cassete a postos para gravar sua coletânea pessoal de sucessos? E aquele “clima de paquera” que rondava as discotecas dos condomínios e prédios? Quase sempre estava lá a menina que você estava afim e ficava ansioso para chegar o momento de chamar ela pra dançar uma música lenta. Com certeza você estava usando uma basqueteira M2000, um relógio Casio, calça jeans da Levis e uma t-shirt enorme quase chegando no joelho (ou você era da turma que usava dockside?).

Surpreende-me estar repetindo aquele clichê de saudosismo exacerbado para com certos momentos especiais. Mas o que psicologicamente os torna especiais? Você já deve estar cansado de ouvir do seu avô aquela frase: - no meu tempo é que era bom! Mas começo a desconfiar que nada disso está relacionado com a qualidade do que foi vivido, mas sim da sensação de novidade, do gosto pelo desconhecido, que seu ego começava a desfrutar.

A idade em que estou me referindo é justamente aquela da formação da personalidade¹ do indivíduo. São os momentos de adaptação social, intelectual e principalmente do contato e experiências com o sexo oposto. As primeiras conversas, brincadeiras e paixões. Sim! Paixões. E olhe que não era fácil. O ato de se apaixonar quando criança me remete a uma avalanche de sensações, dor e dúvidas. Pois é...o id² não perdoa!

Ao mesmo tempo, funcionando de substituição³ da vontade de voltar ao passado, aquelas situações de descoberta tiveram algum cheiro (Lapidus), algum gosto (Dipn'lik) e claro, alguma trilha sonora que embalou esses momentos mágicos. Assim, não é por uma opção RACIONAL que acabo por desfrutar de algumas músicas “cafonas” dessa época (como nos exemplos abaixo), mas sim por causa de uma ASSOCIAÇÃO psíquica e involuntária.

Ok? Tá explicado! Não tenho culpa no cartório!



e



¹ Segundo Freud, nossa psique está dividida em três partes: id, ego e superego.

² Fonte instintiva do nosso ser. Funciona buscando prazer e auto-conservação a todo custo. A principal força do impulso do “id” é a libido, energia voltada para sexualidade e sensações prazerosas.

³ Mecanismo de defesa do ego.