segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Vivendo o Porto: A Tasca do Guedes - por Dom Angelo

 

Para quem realmente aprecia uma boa bebedeira entre amigos, não existe lugar melhor que um boteco. Se o local for antigo, modesto e barato, melhor ainda. Ao mesmo tempo em que o ambiente é envolvido pelos ares da energia instável do álcool, percebemos uma sensação relaxante e de aconchego, considerando o gole na cerveja, a comida rudimentar, a conversa afiada e a celebração da amizade como o verdadeiro e o único objetivo de ali estar.
Ok. Um fuga da realidade? Talvez sim, talvez não.
Em Portugal, esses locais levam o nome de Tasca. Segundo o dicionário Priberam (http://www.priberam.pt/dlpo/), a palavra significa “estabelecimento modesto que vende bebidas e refeições”. Por aqui encontramos tascas centenárias, muitas vezes subterrâneas, com paredes de pedra e azuleijos, mobília rústica e comida tradicional.
Às sextas ou sábados, o primeiro local que frequento antes de uma noite de diversão é a Tasca do Guedes. Ou simplesmente Casa Guedes. Localizada na praça dos Poveiros, essa tasca serve o melhor sanduíche de pernil do mundo. O estabelecimento tem apenas 4 mesas na parte de dentro, apesar de nas épocas mais “quentes” eles oferecerem mesas ao lado de fora do bar, mesmo em frente ao Jardim de São Lázaro.
Além da “sandes de pernil”, as especialidades do Guedes são as papas de sarrabulho, moelas, sopa de caldo verde e os queijos e frios regionais, tudo isso acompanhado de um bom frisante rosé, um vinho verde ou da velha cervejinha. Porém não se incomode de não arranjar uma mesa. Provavelmente vai acontecer. O Guedes vive cheio, muitas vezes com filas grandes para se fazer o pedido no balcão. Mas como a idéia é começar a farra de bucho forrado, o que vale mesmo é comer no balcão ou em pé, tomar a garrafa de vinho e sair pra noitada!
 

sábado, 26 de outubro de 2013

Black Sabbath: Tradição e Reverência - Por Fernando Lucchesi






Sempre que me lembro de algo relacionado com Heavy Metal, a primeira cena que me vem à cabeça é um diálogo que tive com um primo mais velho, fã do gênero. Tinha por volta de 7 anos quando comecei a prestar atenção nos seus discos de vinil, a grande maioria de bandas de metal com capas e mais capas de fotos de demônios e de cenas sombrias e assustadoras. Virei-me para ele e perguntei: “Como tu pode gostar dessa doideira toda?”. Ele pensou um pouco e me respondeu: “Daqui a alguns anos você é quem estará gostando e você saberá o porquê”. Fiquei com aquilo na cabeça achando que meu primo era mais doido do que imaginava.

Meu primo estava certo em parte. Não sou o maior entusiasta, mas sempre tive admiração pelas bandas responsáveis pelos alicerces do estilo. Das três bandas consideradas as mais influentes (junto com Led Zeppelin e Deep Purple), o Black Sabbath foi a última que capturou minha atenção. Hoje posso falar que, sem dúvida, ela é a que mais influenciou e moldou o Metal como o conhecemos hoje.
          
Exatamente no dia 13/10/2013 tive a oportunidade de confirmar a razão da veneração de muitos (inclusive a minha) pelo Sabbath. A apoteose, normalmente lembrada pelo desfile de escolas de samba, estava tomada por um mar de camisetas pretas. Gente de várias idades, cidades e sotaques diferentes. Todas ali para observar e reverenciar aqueles senhores, mas que quando jovens ousaram e criaram um som novo, sombrio e por vezes macabro. Em sua primeira passagem pelo Brasil com a formação 75% original (a única ausência foi o baterista Bill Ward) a banda despejou clássicos e músicas do seu mais recente disco “13” (um disco que possui muitos elementos dos primeiros discos da banda).

A banda abriu o show com a clássica “War Pigs” do álbum “Paranoid”. A música não podia ser mais atual, uma vez que os “senhores da guerra” continuam enviando jovens para um verdadeiro abatedouro chamado de “guerra” sempre com a desculpa da preservação da paz. Em seguida, Ozzy e companhia convidam os espectadores a imergir no seu som característico com a sinistra e pesada “Into the void”. Tentando entremear os clássicos do início da banda com músicas do mais recente disco, a banda provocou reações adversas no público. Os clássicos como “Snowblind” e a tríade do primeiro disco (“Black Sabbath”, “N.I.B”. e “Behind the wall of sleep”) causaram empolgação e reverência. Entre elas, uma deslocada “Age of reason” do disco novo causou mais letargia do que excitação e o público apenas “observou” a música. Analisando a reação do público às músicas novas, a única que a platéia contou em uníssono foi o primeiro single do álbum “13”, “Gos is dead”. A já citada “Age of reason” e “End of the beginning” (uma variação em cima da música “Black Sabbath”, do disco homônimo) serviram apenas para serem apresentadas ao público.

Seguiram-se então mais três músicas de um mesmo disco (“Fairies wear boots”, “Rat salad” e “Iron man”) do clássico “Paranoid” (o maior sucesso comercial da banda). O ato final do show reservaria mais dois clássicos do Sabbath: “Children of the grave” e “Paranoid”. Essa última, talvez numa sutil ironia, inicia-se com o riff de outro grande sucesso do Sabbath, “Sabbath bloody Sabbath”, do álbum homônimo. A ironia deve-se ao fato da referida música não ser executada em sua totalidade, pois é evidente que Ozzy não tem mais condições de, sequer, cantar razoavelmente a música.       

Espero, sinceramente, que tenhamos mais uma oportunidade de vermos esses senhores aqui no Brasil, pois cada apresentação deles é uma verdadeira aula de Rock n´roll/ Heavy Metal.

Sobre os músicos:

Ozzy: Compensou perfeitamente a notória desafinação com um carisma/simpatia invejável. Concordo com muitos amigos, que entendem muito mais de Heavy metal do que eu, que Ronnie James Dio era melhor vocalista que Ozzy (pelo menos no aspecto técnico). Mas, para mim, o som do Sabbath está intrinsecamente ligado à voz de Ozzy.

Tony Iommi: A despeito do tratamento que vem fazendo contra um linfoma, estava seguro e aparentava tranquilidade enquanto desfilava sua inesgotável quantidade de riffs geniais. Definitivamente o maior responsável pela sonoridade do heavy metal.

Gezzer Buttler: Excelente na execução do seu instrumento. Teve seu grande momento, como não poderia deixar de ser, na execução da abertura de “N.I.B” com seu solo de baixo.

Tommy Clufetos: “Soltou a mão” sem pena. Substituiu com sobras Bill Ward.


Observações sobre o show:

  • Como pude assistir ao show atrás da área reservadas aos deficientes, pude constatar o respeito àqueles que realmente necessitam daquela área. A utilização do banheiro reservado a eles não era permitida nem mesmo à produção do show.
  • Apesar do preço extorsivo por uma lata de cerveja (R$ 8,00) a infra-estrutura estava muito boa.
  • O som estava literalmente “no talo”. Altíssimo e de excelente qualidade. Soube que em SP houve problemas para quem estava mais distante do palco, pois o local do show era um campo aberto.
  • Continuo sem entender muito bem porque alguns fãs continuam achando que o Black Sabbath faz uma ode ao capeta (a despeito de algumas poucas letras falarem abertamente em Lúcifer). Estava eu lá tranqüilo na minha, quando se aproximou um elemento tocando “air guitar” e nos intervalos do seu “show” particular, ele gritava “Viva Satanás”! Atribuí isso a três fatores: o nível etílico, o desconhecimento da língua inglesa ou a algum problema de audição. Ozzy passou a noite INTEIRA falando “God Bless you” (Deus os abençoe). Portanto, gritar “Viva Satanás” parece tão coerente quanto gritar “Viva Xuxa” durante o show.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

A Religiosa - por André Maranhão Santos





A mais recente adaptação de A Religiosa, assinada pelo diretor e roteirista Gillaume Nicloux difere da versão Nouvelle Vague de Jacques Rivette – censurada pelo governo francês dos anos sessenta. E um dos pontos diferenciadores entre ambas as versões se dá em como os ideais de liberdade e luta pelos direitos humanos aparecem na versão de Nicloux, além dos seus paralelos com a filosofia iluminista, já que tal filme deriva do roman-mémoires La Religieuse de Denis Diderot, publicado no final do século XVIII e que se baseia no caso de Margueritte Delamarre, uma jovem francesa que lutou para sair da vida monástica num período contemporâneo à vida de Diderot.

Em A Religiosa, Suzanne Simonin é a personagem principal; uma garota que entra para um convento sem o desejar, passando por humilhações, assédios morais, sexuais, além de discriminações, somados ao seu desejo de abandonar o hábito de freira. Suzanne é interpretada de maneira notável pela atriz belga Pauline Étienne, que aparece escudada pela grande Isabelle Hupert e por Martina Gedeck (bastante famosa após A Vida dos Outros e que sendo alemã protagoniza o filme em francês, mantendo a forte tradição de atrizes europeias poliglotas).

Especialmente, há uma importante contribuição para mim em A Religiosa: tal qual Ligações Perigosas – filme de 1988, adaptado do livro de Chordelos de Laclos, estrelado por Glenn Close, Michelle Pfeiffer e John Malkovich – os ambientes mais recônditos da vida privada apontam para os jogos de poder, a sedução, a manipulação em pleno cotidiano e mentalidades do mundo francês do século XVIII. A Religiosa também se articula com outros filmes tais como O Nome da Rosa (adaptado do romance de Umberto Eco, dirigido por Jean-Jacques Annaud, estrelado por Sean Connery e tendo Jacques LeGoff como consultor histórico) e Dúvida (de John Patrick Shanley) com Meryl Streep, Phillip Seymour Hoffman e Amy Adams no elenco, por se tratarem produções que explicitam os abusos recorrentes ao longo da instituição religiosa no Ocidente e apontam para a emergência das leis como instrumentos fiscais contra as arbitrariedades empreendidas em lugares sagrados e mais restritos.

Num pensamento iluminista consonante, outro filósofo como Voltaire via nas benesses que alguns governos concediam à estrutura política da Igreja uma série de perigos e violações à Humanidade. O filósofo defendia a oração não como dominação ou despotismo, mas como algo em profundo diálogo com o papel fiscalizador do Direito Civil. “O magistrado deve apoiar e conter o sacerdote, da mesma forma que o pai de família deve mostrar consideração para com o preceptor de seus filhos e impedir que abuse deles”, assim o enfatizou em seu Dicionário Filosófico.

Também é sabido do papel estratégico que a vida feminina dos conventos proporcionou à economia dos bens masculinos e às relações de poder entre os gêneros. Evitar o casamento de certas filhas para não repartir o latifúndio na forma de herança, ou se valer dos espaços clericais para efetuar um processo civilizador sobre a figura feminina – naquela que sabe os seus lugares e limites e não contraria a autoridade da figura masculina – eis aqui exemplos cruciais do interesse patriarcal por via da domesticação religiosa. Embora a Coroa de Portugal nem sempre mostrasse favorecimentos à criação de novos espaços de reclusão para a entrada de mulheres na vida monástica (já que via no aumento do número de mulheres celibatárias um risco para o crescimento populacional de uma colônia como o Brasil) a monarquia lusitana quase sempre encorajou as casas de recolhimento em solo brasileiro. No século XVII, já havia conventos na Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo, tendo este número se multiplicado em outras localidades como Pernambuco, Maranhão, Minas Gerais e na Região Sul, tanto na forma de conventos quanto nas casas de recolhimento. Em Trópico dos Pecados, Ronaldo Vainfas argumenta que essas casas também estipulavam diversas restrições às mulheres, preferindo, inclusive, moças brancas e de famílias abastadas. As casas de recolhimento também atuavam enquanto recebedoras de mulheres casadas durante a ausência dos seus respectivos maridos, retiros espirituais de viúvas e correção de condutas femininas “indevidas”.

O que pretendo aqui não é desqualificar ou negar a existência da vocação na vida monástica e na reclusão, mas atentar para a importância do exercício histórico / democrático que o filme A Religiosa pode estimular em conjunto ao significativo valor que o pensamento iluminista pode elucubrar num contexto como o de Diderot. Por outro lado, a Razão não precisa atuar como a legítima redenção do Ser, já que na própria época de La Religieuse, alguém como Kant foi capaz de frisar que vivia na “era do Iluminismo” no lugar de viver numa época de pleno esclarecimento. Mas o filme que inspirou esta postagem pode reavivar o debate sobre o direito à fé, o lugar, a filiação e as formas da vida religiosa, e analogamente à personagem Suzanne - que desejou abandonar a vida monástica para professar sua fé sob outros modos - no mundo contemporâneo, a Democracia deve garantir o direito de uma islâmica usar um hijab, como também de ampará-la caso não queira usá-lo ou deseje parar de usá-lo.

Devo finalizar com uma lição sobre a fé que aprendi num livro de Walter Benjamin, intitulado A Origem do Drama Trágico Alemão, onde aquele filósofo, judeu, esotérico e fugitivo do Holocausto cita a seguinte alegoria: “Santa Teresa vê, numa alucinação, a Virgem esparzindo rosas sobre a sua cama, e conta a visão ao seu confessor ‘Eu não vejo nenhumas’, responde este. ‘Claro, a Virgem trouxe-as para mim’, é a resposta da santa”. Cada vez que eu releio, me conforto com este depoimento, pois semelhante a Benjamin, consigo acreditar que há um gesto radicalmente sensorial quando Cristo é deslocado para o plano do provisório, do cotidiano e do precário. No filme A Religiosa, a personagem Suzanne Simonin parece alimentar esta linha de raciocínio, ao ver que Deus se faz através de um prisma ético que antecede as instituições e que na fé religiosa pode residir uma via de contestação, de luta e de renovação da liberdade humana.