domingo, 25 de maio de 2014

Entrevista com Paulo Arruda - Por Bruno Vitorino

O compositor Paulo Arruda. Foto por: Gustavo Pimentel

Dando continuidade ao registro da produção pernambucana que passa longe do conhecimento do público local e que, de modo ainda mais enigmático, não é tratada pelos grandes veículos de comunicação do estado, publico a entrevista que fiz com o compositor, arranjador e contrabaixista Paulo Arruda. Nessa extensa - contudo, sólida - conversa, o artista fala sobre sua trajetória, perspectivas estéticas, seu trabalho composicional, dentre vários outros pontos que naturalmente foram emergindo em suas considerações.


"O músico é através de sua música." - John Coltrane 


Bruno Vitorino - Primeiramente gostaria de perguntar: por que a música? Fale-nos um pouco de sua trajetória.
Paulo Arruda - Desde criança sempre tive interesse por arte em geral. Primeiro foi o desenho; assistia aos programas do desenhista Daniel Azulay e praticava nos seus cadernos que eram vendidos em bancas de revista na época. No início da adolescência, comecei a aprender violão com amigos e a me interessar por música. Como a maioria dos jovens da minha época, ouvi muito rock e música popular, mas alguns tinham interesse em música erudita e aos poucos fui adquirindo alguns discos que eram devidamente emprestados aos colegas. Desta época, lembro-me de ouvir basicamente Beethoven, Bach, Liszt e Mozart. Os discos eram caros e praticamente só se encontravam obras até o período romântico; música de concerto moderna, só tive a oportunidade de ouvir muitos anos depois. Também ouvia e gravava em fitas os programas Clássicos Especiais da Rádio Universitária, onde tive contato com a música de alguns compositores brasileiros como Villa-Lobos e Camargo Guarnieri. Como o desenho também me fascinava, fui com o amigo Mário Robson, que já era um grande desenhista na época, ter aulas com o professor Sílvio Gomes e, alguns anos depois, com o mestre Eugenio Paxelly - que é um grande artista plástico, tanto no desenho, pintura ou escultura - em seu belíssimo estúdio então instalado na Casa da Cultura.

Mas posso dizer sem dúvidas que a música sempre foi minha grande paixão. Com a ajuda do grande amigo Dilton Monteiro, que estudava no Conservatório Pernambucano de Música, aprendi a ler um pouco de música e arriscava sozinho em casa estudar alguns exercícios do método A escola de Tarrega do Oswaldo Soares, os 12 estudos do Villa-Lobos e algumas peças de autores brasileiros; estudar teoria pelo livro da Maria Luisa Priolli, e dos raros livros que me chegavam à mão. De quando em vez, assistia de penetra algumas aulas de teoria e percepção no Conservatório.

Trabalhei durante anos como designer especializado em computação gráfica (como era chamado na época); passei por produtoras de vídeo e trabalhei em televisão também. Tinha uma vida estabilizada, mas bastante estressante, quando decidi largar tudo e me devotar à música por completo. Era a hora de dar início a uma nova vida, cheia de desafios e, como todos sabem, vinte e seis anos já é uma idade avançada para começar os estudos sérios na área, mas pude contar com professores e amigos iluminados que me ajudaram a trilhar este novo caminho.

Entrei para o Conservatório e fui estudar baixo elétrico com o professor Marcos Araújo, que foi para mim como um novo pai (o meu tinha falecido poucos anos antes); sua enorme bondade com todas as pessoas e, especialmente com seus alunos, suas aulas que não eram só de instrumento, mas principalmente harmonia, onde o Marcão (como era conhecido) simplesmente era genial, pegando músicas simples e transformando-as em obras monumentais. Grande arranjador que me ajudou a escrever arranjos e disse que trocasse o baixo elétrico pelo acústico que, aí sim, eu teria bastante trabalho. Comprei um acústico, mudei de curso e fui estudar com o professor José Chagas. Em seguida dei continuidade aos estudos com outro grande mestre, o professor Thales Silveira, com quem continuei estudando baixo acústico, e também me ensinou harmonia e arranjo durante três anos em sua escola particular (hoje, chamada Tritonis). O ensino de harmonia e arranjo aqui em Recife era praticamente nulo, quem dominava o assunto raramente passava a frente o conhecimento (segundo me contaram músicos mais velhos), e o professor Thales Silveira com seu magnífico curso vem formando ótimos profissionais e ajudando no enobrecimento da atividade musical em nosso Estado.

Ao mesmo tempo ingressei no curso de Licenciatura em Música na Universidade Federal de Pernambuco, onde também tive professores que me ajudaram bastante. Aulas maravilhosas com os professores Sérgio Dias, Nelson Almeida e, principalmente, o querido professor Dierson Torres, que leciona harmonia e estética, muito me ensinou e ainda tem para ensinar!
BV  Razão ou emoção: qual a centelha que desencadeia uma composição?
PA - Creio num intercâmbio constante entre razão e emoção. Trabalho muito improvisando ao piano e vou sempre anotando ideias e guardando para serem utilizadas em seu devido tempo. Durante este processo de busca, deparo-me às vezes com um material que não permite ser anotado e arquivado; ele (o material) quer ser trabalhado exaustivamente até sua solução e neste caso você se envolve muitas vezes de forma neurótica (auto-hipnose), quase que doentia em resolver um determinado problema composicional. Mesmo desta forma, a emoção não trabalha sozinha, embora muitas vezes ela mostre em que direção a música deve seguir. Nesta parte entra a razão para dar preenchimento aos espaços, perceber se uma boa ideia rítmica não encobre uma textura ainda em processo de maturação. Ou seja, o ato de descobrir o que não funciona, o que não tem força musical, tem sido um dos meus maiores desafios.

Vou dar um pequeno exemplo: através do material no qual estou trabalhando vou anotando as ideias em poucas pautas, para posteriormente passar à orquestração, mas posso deixar indicado que instrumento ou naipes tocarão determinado trecho; algumas vezes tenho que refazer toda a orquestração de uma parte por ter confiado demais em processos orquestrais sólidos (a razão), e não ter buscado os desafios impostos para esta etapa do trabalho, arriscando combinações e cores que fogem das estruturas comuns das texturas orquestrais. Pode funcionar ou não! Serão precisos mais alguns anos de análise e estudos aprofundados a fim de adquirir a estética sonora que busco. Se vou encontrar, ainda não sei, mas tenho me esforçado para isso.
Divulgação: Gustavo Pimentel
BV - O que é ser um compositor erudito em Recife?
PA - Acredito que é difícil para todo o mundo. Claro que em alguns países têm-se maiores oportunidades, mas que não garantem a independência do músico apenas através da arte de compor. Não se pode viver apenas de composição por aqui, mas de outros trabalhos como arranjos, tocar em orquestras, música para cinema e documentários, dar aulas ou até fazer outros trabalhos não ligados à música. Isso torna muitas vezes o tempo escasso para a produção composicional, mas o que fazer?

Escrevendo isto, lembro-me imediatamente de uma frase do compositor Mário Ficarelli: “o compositor, com raríssimas exceções, é um homem comum, ou melhor, incomum, porque além de trabalhar (e muito) para manter a si e a sua família, ainda trabalha tudo outra vez para manter e tentar elevar o nível cultural da comunidade e não ganhar nada mais por isso.” Uma definição perfeita do nosso grande compositor.

E pretendo fazer isso, continuar tocando, fazendo arranjos, dando aulas até, quem sabe um dia, poder sobreviver apenas de composição, mas já sabendo de antemão que o caminho é bastante tortuoso e complexo. Não que eu esteja reclamando do que venho fazendo, mas todos sabem que o sonho do compositor é viver de sua obra, e para sua obra.

BV Num mundo onde a arte é cada vez mais rebaixada a mero entretenimento e a experiência artística é substituída por espasmos de euforia compartilháveis nas redes sociais, como diminuir o abismo que separa a música erudita do grande público?

PA - É árdua a tarefa de fazer com que a música de concerto chegue ao grande público. A culpa não é destas pessoas, mas dos meios de produção cultural que não estão em nada preocupados com a disseminação da alta cultura, não apenas em relação à música, mas das artes em geral. Não trato apenas do caso da erudita, mas da vastíssima cultura musical pernambucana, como o frevo, maracatu, forró e caboclinhos que se encontram cada vez mais afetados pelo multiculturalismo implantado nos meios de difusão cultural.

A Orquestra Sinfônica Jovem do Conservatório Pernambucano de Música (na qual atuo como contrabaixista) cumpre bem o papel desta difusão. Através das viagens da orquestra pelo interior do Estado, a música erudita chega a milhares de pessoas que antes nunca tiveram acesso. A prova maior disto é que todos os lugares em que tocamos estão sempre lotados e, depois dos concertos, as pessoas vêm conversar conosco - emocionadas - e com um sentimento de gratidão tão sincero que sensibiliza e nos deixa sem dúvidas do quão importante é o nosso trabalho. Como podemos dizer que as pessoas não gostam, já que nunca tiveram a oportunidade de entrar em contato com este tipo de arte? Outro ponto de vasta importância deve ser citado: antes dos concertos, o maestro José Renato Accioly e a OSJ fazem um concerto-aula para crianças da rede estadual de ensino e para quem estiver disposto a assistir também; começando pela apresentação dos naipes orquestrais, depois os instrumentos individualmente e a função do regente na orquestra; ao final, trazemos uma criança para reger a orquestra, um momento belíssimo que sempre termina com muitos aplausos e onde se pode notar a felicidade dos pequeninos em contato tão próximo com a Grande Arte. Muitas crianças presentes nestas aulas estudam música em projetos sociais ou do próprio Conservatório e, ao verem e ouvirem a orquestra, tomam a decisão de que realmente vão seguir a carreira musical.

Quantos jovens temos em nossa orquestra que foram frutos de projetos como este? Inúmeros que, apesar das enormes dificuldades encontradas por quem quer fazer música com seriedade no Brasil, abraçaram o desejo de devotar suas vidas à música.

Em nosso Estado, precisamos de mais orquestras, bandas sinfônicas, grupos de frevo, e de uma atenção especial ao tipo de iniciação musical que está sendo aplicado em nossas escolas. Tenho conversado com várias pessoas que tem filhos no ensino fundamental e eles têm me relatado coisas absurdas, como se fazer pesquisa sobre o grupo Menudo ou apresentações cantando funk e brega! Onde está a culpa disto? Nas universidades? Os recém-formados professores não conseguem observar além daquilo que os foi ensinado na própria academia? Esse tipo de conduta deve ser execrado das nossas escolas, ou vocês não conseguem perceber que nossas crianças estão sendo intelectualmente estupradas.

Dois fatos recentes (na academia e na grande mídia) confirmam isto: a polêmica causada há alguns meses com o coral da USP, onde os calouros foram recepcionados com uma música das mais rasteiras possíveis. Ora, se dentro das universidades vemos coisas do tipo, o que esperar dos estudantes de iniciação musical que são formados por estas instituições? E no Jornal Nacional, da TV Globo, quando da morte do Claudio Abbado não foi citado que o maestro italiano foi aluno de um dos nossos maiores músicos, o maestro Eleazar de Carvalho.
O brasil omite o Brasil.
BV Sendo mais específico no quesito produção musical, como você enxerga a música e seus desdobramentos intrínsecos em Pernambuco?
PA - Tenho observado e analisado durante anos dois aspectos que considero fundamentais em relação às atividades musicais em nosso Estado: indivíduos que mal sabem afinar seus instrumentos fazendo ‘música’ (com o devido perdão à música, pelo uso da palavra), e críticos que são incapazes de elaborar qualquer consideração válida ou mesmo básica sobre a arte dos sons, e que defendem de forma doentia toda a encenação promovida por esses ‘músicos’ (também o devido perdão aos músicos, pela aplicação do termo), e desta forma encontram o perfeito equilíbrio da ignorância com a mediocridade – vocês fazem de conta que são artistas e nós fazemos de conta que sabemos escrever sobre o assunto.

Infelizmente, são a maioria. Existe um abismo desmesurado em Pernambuco entre as pessoas que se dedicam com real comprometimento à música e outras que tem como desígnio a banalização, transmutando-a à esfera do entretenimento vulgar.

Para analisar este ponto, gostaria de fazer uma citação sua que li aqui no blog: “grupos formados por músicos desprovidos do mais elementar domínio técnico de seus instrumentos, que esbanjam uma poesia (?) sem sentido algum, apresentam cantores desafinados e constroem em torno de seus integrantes uma aura milimetricamente deliberada de artistas sérios, criativos e inovadores.” Classificando ao final como a “consagração do mal feito”, termo que considero perfeito!

Vejamos. Em entrevista o compositor recifense Willy Corrêa de Oliveira nos traz a seguinte observação: “você só se relaciona com uma linguagem, só se exprime numa linguagem quando você a conhece”. Já ouvi até dizerem que se você estudar muito você perde o feeling! (condicionamento bastante normal num país em que o ex-presidente afirmava não ler livros, porque lhe davam dor de cabeça, e da atual presidente que não consegue lembrar o nome do livro que a emocionara tanto) Ora bolas! Ser músico significa estudo em tempo integral da linguagem e da técnica, seja você instrumentista, cantor, compositor ou regente. Se o indivíduo não tem a música como prioridade em sua vida, ele não é honesto consigo e muito menos com o seu público. A vida e o fato de se fazer música não se separam. No meu caso, por exemplo, dedico a maior parte do dia a tarefas musicais: compor, estudar contrabaixo, piano, regência, ouvir muita música e vários outros estudos e leituras relacionadas como religião, política, filosofia e história, que estão intimamente conectados ao desenvolvimento da música por séculos, mas que para estas pessoas isto passa completamente despercebido. A música se tornou, nas mãos destes, um fantoche do grotesco.

E para deixar a situação mais grave, essa aura é completamente sustentada e aumentada pela crítica “especializada” como o suprassumo da criação musical, mas não se enganem, porque praticamente não existe nos jornais e na TV alguém que possa tratar do assunto com a devida sensatez. É sempre comum ler nas matérias de música aqui em Pernambuco críticos agarrados literalmente à letra e bobagens visuais e pirotécnicas que não colaboram em nada a compreensão musical, apenas confundindo o leitor ou telespectador com termos abstratos. Tem que analisar a letra? Claro que sim! Mas e a música? Fale-me da música! Como disse o compositor russo Igor Stravinsky: “[os críticos] não estão sequer equipados para julgar nossa ‘gramática’. Não veem como é construída uma frase musical, não sabem como se escreve música; são incompetentes quanto à técnica da linguagem musical contemporânea”. Se no tempo deste grande compositor os críticos já eram falhos, imaginem hoje com o aparato da doutrina gramscista dentro das nossas universidades e da imbecilização coletiva promovida pelos meios de comunicação de massa, em comunhão com o governo?!

Mas, nem tudo é detrito! Temos ainda várias pessoas e grupos que primam pela qualidade estética da arte musical, e acreditam que desta forma podem ajudar na (re)construção de uma sociedade que se encontra esfacelada moralmente e que foi brutalmente afastada de toda manifestação artística sincera.

São poucos, mas ainda os temos.

BV Você faz parte da Orquestra Retratos, do grupo Quarto Aberto e da Orquestra Sinfônica Jovem que focam respectivamente na música regional, na improvisação jazzística e no universo erudito. Como esses três campos repercutem em sua produção?

PA - A Orquestra Retratos (que terá o seu primeiro disco “De Sol a Sol” lançado em breve) prima pela qualidade técnica e estética sonora do grupo, que é formado por instrumentos de cordas dedilhadas. O maestro e bandolinista Marco Cesar que durante vários anos está à frente do trabalho, frisa como é importante o refinamento também na música popular, trabalhando elementos musicais como fraseamento, dinâmica e cor orquestral dentro deste grupo. Trabalho maravilhoso, e que em breve poderá ser visto em algumas cidades do nordeste, através da tournée da orquestra no segundo semestre deste ano (as datas serão divulgadas em breve).

O grupo Quarto Aberto é formado por Fred Lyra e Wallace Seixas nas guitarras, Hugo Medeiros na bateria e por mim no contrabaixo. Para mim, tocar com esses grandes amigos sempre foi uma experiência de aprendizado enorme. Hugo com seus avançados estudos de polirritmia, sempre trazendo novos desafios para todos, além de um som magistral que sabe tirar do instrumento; prova de um músico que tem se dedicado durante anos no aperfeiçoamento da arte. O que dizer do meu amigo Fred Lyra? Que ama Bartok e Steve Coleman! Um músico de concepções maravilhosas, em que percebo a sutileza de Webern, ao mesmo tempo em que caminha para a violência rítmica e hipnotizante de Stravinsky. E do meu querido Wallace Seixas, que anda levando nossa música para o mundo todo. Com dois discos lançados e um livro maravilhoso com suas composições e arranjos. Saudade de tocar com os senhores!

A Orquestra Sinfônica Jovem do Conservatório Pernambucano de Música foi extremamente importante em minha formação e decisão de seguir por completo a composição. A orquestra com iniciativa do maestro José Renato Accioly vem tocando compositores pernambucanos consagrados como Capiba, Clóvis Pereira e, dando espaço para jovens compositores mostrarem suas obras como foram os casos de Mateus Alves com sua “As Duas Estações Nordestinas”, Ivan Souza com a “Suíte Norjazztina”, Sérgio Ferraz com o seu “Concerto Armorial para violino e orquestra” e a minha obra “Cangaço de Vida e Morte”.

Sobre a forma em que lido com os três campos, é que cada um desses trabalhos trazem características diversas, mas sempre se pode aproveitar matéria e elementos de um para outro. Acho esse intercâmbio precioso e bastante construtivo no que diz respeito à percepção e intuição musical. Posso dizer que continuo aprendendo muito com todos eles.

BV Apesar do título, seu poema sinfônico “Cangaço de Vida e Morte” evita o regionalismo caricato e apresenta uma construção narrativa que privilegia o inusitado. Como se deu o processo composicional dessa obra?

PA - O cangaço levou quatro anos para ficar pronto. Trabalhava nele durante os períodos de férias na universidade. Um dia perguntei ao maestro José Renato Accioly se poderia tocar com a Orquestra Jovem do Conservatório uma obra minha, e ele aceitou plenamente a ideia. Terminei a obra, que iria ser tocada pela orquestra no final de 2012. Mandei a peça para o Concurso Tinta Fresca que é realizado pela Filarmônica de Minas Gerais, e com grande felicidade soube que a peça tinha sido selecionada e seria tocada pela Filarmônica em setembro daquele ano.

No texto que escrevi para ser usado no programa do concerto digo o seguinte: nesta composição, intitulada Cangaço de Vida e Morte, busquei delinear não apenas a imagem do cangaço como fenômeno social, mas outros aspectos que o envolvem; imagens e sons característicos do sertão nordestino. A Caatinga, a seca, a fé e também a desesperança.

Como você observou, a peça foge do regionalismo estereotipado que temos aqui em Pernambuco. Ele o regionalismo existe, mas não está escancarado como em obras que seguem essa estética. Não que isso seja ruim, adoro a música Armorial, ela corre em nosso sangue, não podemos negar isto. Mas, procurei ir mais longe, trabalhando com elementos modernos e desta forma encontrando um equilíbrio entre o novo e a tradição.


BV Essa composição foi selecionada na 4ª edição do concurso Tinta Fresca promovido pela Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, uma das mais importantes do país. Como foi essa experiência?

PA - Sobre o Tinta Fresca, posso dizer que foi uma das experiências mais emocionantes da minha vida. Os dias que passei em Minas foram de imenso aprendizado com o júri, formado por Marlos Nobre, Ronaldo Miranda e Mário Ficarelli (que faleceu este mês em São Paulo) e da vivência com os colegas compositores Andersen Viana, Hermilo Santana, Rodrigo Hyppolito, Luigi Antonio Irlandini e Carlos dos Santos que foi o vencedor da edição com o seu maravilhoso Noturno.

Experiências do tipo deveriam ser obrigatoriamente repetidas com todas as orquestras do país. Tem muita gente escrevendo, mas, é sempre difícil conseguir a execução de uma peça sinfônica. Tive a chance através da Filarmônica de Minas e, espero que outras orquestras façam o mesmo, pois, mesmo com todos os esforços envolvidos, e que são muitos, a contribuição para a nossa música deve vir a ser sempre maior.

BVQuando o público recifense terá a oportunidade de ouvir essa peça?

PA - No dia 28 de maio terei a grande honra de ter o Cangaço de Vida e Morte executado pela Orquestra Sinfônica do Recife sob a regência do grande compositor Marlos Nobre. Creio que seja um novo caminho que está sendo trilhado pelo nosso maior mestre. Com a reestruturação da nossa Orquestra Sinfônica, através do Marlos Nobre, que vem tocando constantemente novas peças de jovens compositores e, inserindo a música brasileira de concerto em todos os programas, como no último concerto o ano passado, em que o repertório foi todo de compositores brasileiros. Isso nos traz uma alegria e esperança imensas, de que um novo e fértil período está se instalando no que diz respeito à música de concerto em Pernambuco.

BV - Quais os planos para o futuro?

PA - Estou finalizando uma obra comissionada pelo maestro Nilson Galvão para a Orquestra Criança Cidadã, que se chama Música para Cordas e Percussão em três movimentos: I.Quaerere, II.Via, III. Nanciscor (que significam procurar, o caminho e encontrar). Trabalho com a ideia de busca que carregamos por toda a vida, principalmente no que diz respeito a busca espiritual de cada um. Este projeto foi idealizado pelo juiz João José Rocha Targino, onde alunos da comunidade do Coque tem aulas de teoria, solfejo, percepção e instrumento. É importante destacar que muitos destes jovens já atuam em orquestras profissionais, o que evidencia a seriedade com que o trabalho é feito.

Também venho trabalhando numa nova peça para grande orquestra. Não devo citar o nome, pois vou enviá-la para concursos de composição.

Para o percussionista Emerson Coelho da Orquestra Sinfônica Jovem do CPM, venho trabalhando no Concertino para Vibrafone e Orquestra de Câmara.

Um concerto para Violão e Quinteto de Bandolins para o Guilherme Calzavara e o Quinteto de Bandolins do Recife, grupo criado pelo maestro Marco Cesar em que tocamos música popular e erudita também.

Venho trabalhando também em poemas do Joaquim Cardozo, alguns para voz e piano e outros para coro. Estou fazendo estes trabalhos com voz me preparando para escrever uma longa obra com o texto do Morte e Vida Severina do João Cabral de Melo Neto, que é um dos meus livros preferidos. Para esse trabalho pretendo usar grande orquestra, coro, solistas e narrador. Sei que uma obra desta envergadura vai me tomar alguns anos de trabalho e muito estudo!

Estou estudando agora com o professor Marcílio Onofre, no curso de extensão em composição (COMPOMUS) na Universidade Federal da Paraíba. Marcílio é um ótimo professor e tem me ajudado bastante a conhecer as novas técnicas de composição, além de pesquisar bastante sobre as novas formas de técnicas expandidas em vários instrumentos. Ao final do ano, farei a prova para tentar ingressar no mestrado em composição da UFPB.

E no próximo ano tentar gravar meu primeiro disco, que vai se chamar: Cangaço de Vida e Morte e Música de Câmara.

Sigamos com Deus!

quinta-feira, 22 de maio de 2014

Variações em 4/4: Futebol e Barbárie



Nesta edição de nossa coluna mensal, os editores comentam a mistura cada vez mais hedionda de violência urbana e o futebol no país sede da Copa do Mundo.

- Fernando Lucchesi:

Quando o tema foi proposto por um dos integrantes do blog achei altamente pertinente. A sugestão veio ainda sob o impacto da morte do torcedor nas imediações do estádio do Arruda, atingido por um vaso sanitário. Não foi a primeira vez que um vaso sanitário foi arremessado do estádio, diga-se. Será a última? Não vou aqui tecer um comentário esperançoso, pois já discuti MUITO com parentes, amigos e cheguei à temida conclusão: não há esperança no horizonte para a resolução desse problema. O maior problema, penso, é a nossa legislação. Não há nada, mas absolutamente nada, que impeça o sujeito de digladiar-se com torcedores adversários, danificar patrimônio público e particular e estar solto algumas horas depois. Pois adivinhe onde estará esse sujeito no fim de semana seguinte? Fazendo o que de novo? Pois é! Não precisei colocar resposta para ser entendido.

O argumento que mais escuto é: “mas na Inglaterra resolveram isso!”. Calma! Resolveram em parte. Não vemos aquelas cenas absurdas dignas de uma rinha humana, mas elas (as organizadas) ainda existem e são extremamente perigosas. Duvida? Assista “The Real Football Factories” e entenda o que estou falando. De toda forma, a Inglaterra amenizou o problema com um ENDURECIMENTO da legislação e reforço da força policial, inclusive com uma polícia especializada para esse tipo de situação. O aparato policial é eficiente a ponto de conseguir monitorar aqueles que não podem ir aos estádios. Em dias de jogos do time do infrator, ele deve estar ou na delegacia ou prestando serviço comunitário.

O que quero dizer, queridos leitores, é: junte um aparato policial despreparado, uma legislação permissiva e em decorrência dessa a falta de punição, autoridades que não tem conhecimento quase básico do problema (que aliás, gastam dinheiro público para fazer uma “visitinha” à Inglaterra para ver o problema e as soluções de perto, mas nada aprenderam, aparentemente) e interesses dos clubes em financiar essas “coisinhas” chamadas de organizadas e temos praticamente um coquetel molotov social/futebolístico.

Lembro que em meados dos anos 90 surgiram aqui em Recife as famigeradas “galeras”, que tinham ligações com as mesmas organizadas que aterrorizam hoje. Elas se dissolveram? Não. Passaram um tempo hibernando e agora recrudesceram de forma incontrolável. Disse recentemente num comentário de um amigo no Facebook: “Isso só irá acabar quando esses delinquentes acharem que matar, roubar, furtar e quebrar perdeu a graça, pois o Estado não sabe nem por onde começar”. INFELIZMENTE!

- Giba Carvalho:      

“Nós abandonamos o trabalho, a família, mulher, filhos. Abandonamos tudo para defender o nosso clube. O clube é a nossa vida e por ele nós estamos prontos para lutar sempre, seja para matar ou pra morrer!”

É com esta frase que vi do presidente de uma das torcidas organizadas de um dos maiores clubes do Estado de São Paulo que inicio meu texto. Você acha que ele é diferente dos elementos que chocaram o país ao arremessar duas privadas e matar um membro de uma torcida rival, infiltrado numa co-irmã de outro estado aqui em Recife? Não! Eles não são diferentes. O “hooliganismo” brasileiro, no meu ponto de vista, está muito mais ligado ao extravaso de frustrações pessoais, supostamente movimentadas por sentimentos (parte pelo clube e parte por revoltas sociais) e onde os membros sabem que as punições são mais brandas, do que a outra coisa. E o nosso futebol atual vive à mercê do humor destes elementos. O esporte em si, está em segundo plano há muito tempo. Como consequência, vemos todas estas barbáries acontecer embaixo do nosso nariz e nos sentimos cada vez mais impotentes. Não existem leis específicas para crimes praticados para estes “cidadãos” (enquanto torcedores) e que utilizam a imagem do clube para praticar todo tipo de bandidagem que se possa imaginar. Torcidas organizadas são sinônimo de tudo de pior que possamos imaginar para o sistema penal brasileiro: tráfico de drogas, assassinatos, porte ilegal de armas, vandalismo contra o patrimônio público, violência sexual (existem casos de estupros e abuso sexual nas sedes das mesmas) e etc.

Afirmo, com plena certeza, de que o que falta para a resolução deste problema, em âmbito nacional, é interesse por parte das autoridades, endurecimento das leis e, principalmente, punição severa aos Clubes. Infelizmente (e triste de quem negar) estes elementos estão totalmente mancomunados com as Diretorias dos Clubes.  Tal receio, por parte das várias Diretorias, é coisa de quem tem o rabo preso. Nada justifica acesso às dependências de qualquer clube se você não paga mensalidades. Aqui no Brasil é o que mais encontramos: invasões, agressões a atletas e até mesmo a funcionários que nada tem a ver com o futebol. Coisas do país dos absurdos!

Voltando a falar do caso ocorrido no Estádio do Arruda, tenho a certeza de que se não fosse ano de Copa do Mundo, os envolvidos ainda estariam foragidos. O futebol no Brasil ainda é visto como lazer e modo de vida, mesmo com todos estes atos insanos por parte de vários elementos que deveriam estar com estadia garantida em algum presídio do país. Não podemos continuar tapando o sol com a peneira! Mudanças urgem acontecer para que o futebol volte a ser prazer e para que nossos filhos não se tornem apenas expectadores de Náutico x Destilaria do Cabo, Sport x Paulistano e Santa Cruz x Santo Amaro. Do contrário, continuaremos afundando nesta “privadização” esportiva atual chamada futebol.

- Bruno Vitorino:

“Chamam de Pátria nossa miséria!” – Humberto Effe

Costuma-se dizer que o Brasil é o país dos absurdos. Vou um pouco mais além: o Brasil é o país da naturalização dos absurdos. É como se o ultraje fosse parte constituinte de nossa identidade cultural de tal forma que nos acostumamos à banalidade e ao diário do nefasto em nossas vidas, nutrindo no íntimo - e compartilhando com o Outro via Facebook - uma espécie de revolta letárgica ante o caos. Achamos normal, corriqueiro, os políticos corruptos, os ônibus superlotados, os assaltos à mão armada, a extorção institucionalizada em carga tributária e seu parco retorno público, os atropelamentos de ciclistas, os concidadãos ensimesmados, os infantes lavadores de vidro nos sinais... Não gostamos, mas nos resignamos à apatia política e à hipocrisia moral e nos deixamos iludir por nossa contagiante irreverência e a irrefreável capacidade de rir do que não tem graça. E assim vamos vivendo.

No entanto, o fato é que temos problemas históricos arraigados no âmago de nossa sociedade que fornecem as bases para a rotinização do absurdo. Não cabe aqui neste breve comentário elocubrar teses sociológicas sobre o Brasil, mas todos sabem que educação, distribuição de renda, moradia, saúde pública - para ficar só no básico - sempre foram um problema severo que nunca foi encarado como deveria pelas elites políticas que governaram e governam este país e discutidos/reivindicados com serenidade e contundência pela sociedade civil. Ao contrário, dentre inúmeras desdobramentos, propiciou uma série de larápios “salvadores da pátria” e um sem número de teorias rocambolescas sobre o caráter redentor da miséria que tabula o pensamento de muito intelectualóide de rede social por seu suposto caráter anti-burguês. O resultado disso é uma gangrena social que se espalha pela tessitura de nossa sociedade. O futebol, infelizmente, não fica de fora dessa dinâmica do abjeto.

Para o torcedor comum, aquele que ama o futebol enquanto espetáculo, ir a campo hoje é primeiramente enfrentar uma via crucis: chegar ao estádio umas três horas antes do jogo; desdobrar-se para comprar o ingresso (se for resgatar a entrada pelo “Todos com a Nota” então...), aguardar em pé a abertura dos portões; adentrar aos empurrões num estádio desconfortável para assistir a um jogo sofrível; depois da partida, ficar literalmente preso sob o olhar intimidante do batalhão de choque da polícia que vê em todos potenciais delinquentes; e, finalmente, sair às pressas para fugir da barbárie e do terror promovidos pelas torcidas organizadas em brigas e em costumeiros arrastões pós-jogo. A cidade se converte em praça de guerra num cenário digno dos mais profundos círculos do Inferno de Dante. Passei por tudo isso quando fui ver a primeira partida da final do pernambucano entre Sport e Náutico. Fazia tempo que não ia à Ilha do Retiro e estava com saudades de casa e de ver meu time jogar. Mas, minha euforia e paixão logo se convertem em frustação e tristeza. E tenho certeza que muitos compartilham comigo esses sentimentos.

Penso que, com o esvaziamento dos estádios do torcedor - o autêntico a que me refiro acima - das famílias, dos amigos, e de todos aqueles que veem o futebol como um esporte nobre, um instrumento agregador da comunidade e um mitigador das diferenças sociais, já que somos todos um só nas arquibancadas, abre-se espaço para a invasão do banditismo que corrói nossa sociedade. Coloque-se na equação a ausência de um Estado que efetivamente garanta a segurança de sua população e a real inclusão social, a ineficácia do códice jurídico para tratar dessas questões, a relação promíscua que os clubes (e alguns jogadores) mantém com as organizadas e chegaremos à tragédia que aconteceu no Arruda. E que, vale ressaltar, poderia ter ocorrido em qualquer um dos estádios dos grandes times do Recife. Esse episódio grotesco e vergonhoso, que alcançou contornos globais, afinal, somos, querendo ou não, o país sede da Copa do Mundo, grita que estamos longe do que se conhece por Civilização. Vivemos numa casa de espelhos onde a realidade social é escamoteada em discursos, abobrinhas, falácias, delírios e incompetência. E não tenho esperança de que superaremos isso.

Olhando meu filho, constato que nunca poderei levá-lo para assistir a um jogo. Quem em sã consciência não se sente arriscando a vida ao ir a campo? Eu me sinto e muito! Ainda mais quando penso em meu rebento. Por isso, receio que o amor que ele certamente desenvolverá pelo seu time terá de ser platônico, alimentado na frieza da televisão e no distanciamento do sofá de casa.

- André Maranhão:


Eu não vejo um problema isolado que explique a situação calamitosa do futebol num país como o Brasil. Em minha opinião, é preciso identificar quais gatilhos disparam em conjunto[1], tornando aquele esporte um caso emblemático de problemas sociais. Muitos de nós nos deparamos com várias notícias envolvendo violência, corrupção, impunidade, desigualdade econômica e regional entre os clubes brasileiros, como também entre os seus torcedores. Creio que uma copa do mundo como a de 2014, a ser realizada no Brasil, não trará mudanças consideráveis no painel do nosso futebol. No máximo teremos estádios novos / reformados e uns elefantes brancos fincados em rodovias escuras e precárias, cuja solução em prol de uma mobilidade urbana mais eficaz parece ainda bem remota.

Além da barbárie recaída sobre a violência, identifico a barbárie por parte de várias autoridades irresponsáveis para com os cofres públicos. Sobre a primeira, um dos alvos mais fáceis de retaliar é as torcidas organizadas. O Estado apenas simula uma prestação de contas e tenta acalmar um clamor da opinião pública e do senso comum, quando bane temporariamente as torcidas organizadas. Para mim, isso é um grande erro. Responsabilizar todos os torcedores das organizadas pela violência do futebol é apenas expiar o bode. É preciso identificar quais dos seus membros agem violentamente, seja nos estádios, nos bairros e estações em vez de proibir toda uma torcida de entrar nos estádios. Qualquer multidão é muito mais que uma mera soma de indivíduos. A soma das partes é diferente do todo; já o diziam Aristóteles e Émile Durkheim. Para mim, boa parte dos episódios violentos ocorre em situações de multidão e invisibilidade – ainda mais incitada pela ausência de câmeras, de uma polícia devidamente especializada para clássicos futebolísticos e pela falta de monitoramento e identificação da delinquência através de câmeras. Ora, uma receita como essa culminaria, mais cedo ou mais tarde, numa bomba chiando; num coquetel molotov social.

Sobre a barbárie com os cofres públicos, trarei dois exemplos. O primeiro é do clube Mainz 05, atualmente na Fussball-Bundesliga – a Série A do campeonato alemão. Em 2011, o time recebeu um novo local para sediar seus jogos: a Coface Arena. Com capacidade para 34 mil torcedores (sendo 19 mil sentados e quase 14 mil em pé) o estádio também conta com lugares para portadores de acessibilidade e Imprensa. A obra foi construída com 65% de estrutura pré-moldada – o que contribuiu na agilidade e custeio de sua construção. O resultado foi de R$ 135 milhões, bancados majoritariamente por verba privada, incluindo não só a arena, mas o seu entorno no orçamento. Em contrapartida, você sabe quanto custou a reforma do Maracanã em 2013? R$ 1,192 bilhões de muita verba pública! É isso mesmo; apenas para reformar o Maracanã...

Por fim, façamos um balanço com o segundo exemplo: qual foi a sede da última Copa do Mundo? África do Sul. A edição do mundial deste ano será no Brasil, e o torneio em 2018 será na Rússia e Catar, que dividirão a condição de sede. No final de 2013, a organização Transparência Mundial divulgou um ranking de corrupção internacional. Um dos pontos principais baseados na pesquisa foi o gasto com o dinheiro público. Quão mais próximo do escore 100, menos corrupto seria considerado um país. No topo da pesquisa ficaram Dinamarca e Nova Zelândia, empatadas com 91 pontos. O Brasil ficou empatado com a África do Sul na posição 72 com 42 pontos. Embora o Catar ficasse em 28º (à frente de países como Portugal, Espanha e Israel) vale salientar a que a grande mãe Rússia (responsável em Sochi 2013 pelos Jogos Olímpicos mais caros da história, incluindo os de verão e os de inverno) ficou em 128º. Talvez a FIFA, uma entidade constantemente denunciada por práticas tão corruptas queira justamente isso: outro país corrupto para colaborar nos seus esquemas de procedência duvidosa. Alguém disse por aí que o Japão se reconstruiria do tsunami sofrido em 2011 antes do Brasil terminar seus estádios da Copa de 2014. Não há nenhum absurdo em acreditar nisso!




[1] Faço aqui uma alusão a Jon Elster com o termo trigger.

segunda-feira, 12 de maio de 2014

Ninguém Sai Vivo Daqui - Por Fernando Lucchesi


Após longos 33 anos, finalmente é lançado no Brasil o livro “Ninguém sai vivo daqui” (do original “No one here gets out alive) de Jerry Hopkins e Danny Sugerman. O livro foi um best seller quando lançado nos Estados Unidos e lançou luz  sobre a carreira e as  circunstâncias da morte do frontman do The Doors,  Jim Morrison (fato, até hoje, cheio de dúvidas a respeito do que realmente ocorreu). Os autores buscaram depoimentos com todos aqueles que tiveram convivência direta com Morrison, inclusive sua mãe e seu irmão. O “inclusive” surge, pois sabe-se que o vocalista respondia em diversas entrevistas, quando questionado sobre seus pais, que seus genitores haviam morrido.

Boa parte da infância/adolescência do até então desconhecido James Douglas Morrison é narrada nos primeiros capítulos do livro. Desde os primeiros amores, as suas influências literárias até suas passagens pelas Universidades nunca concluídas (entre elas uma de cinema, uma das maiores paixões do cantor). As influências literárias são de extrema importância para a narrativa, pois mais à frente veremos o porquê da origem de muitas das letras da banda.

O livro, como toda biografia honesta deveria ser, procura retirar o biografado do pedestal de “Deus do Rock” e colocá-lo como um ser humano falível, com momentos de “Dr. Jekyll e Mr. Hyde”. Um Morrison carinhoso e ao mesmo tempo perverso com amigos, familiares e seus “conhecidos” (pessoas que orbitavam ao seu redor procurando usufruir de sua fama e dinheiro). Nesse aspecto, os autores não poupam o biografado. Há inúmeros relatos de bebedeiras, consumo de drogas (que para uma figura repleta de excessos, como Morrison, até que é moderado), discussões, confusões em shows envolvendo polícia, fãs e produtores.  O que mais chama a atenção nesse ponto do livro é o relacionamento quase mortal entre Jim e a bebida. Fácil perceber que grande parte da personalidade de Morrison estava diretamente atrelada ao quanto ele consumia de álcool - e quando falo “consumia” não significa uma noite de bebedeira. Ele era capaz de sumir por dias para, por exemplo, levar amigos até a fronteira com o México somente com o intuito de beber. A bebida ajudava Morrison a ser aquele cara ”cool”, que ele na verdade nunca foi. Ele era um sujeito extremamente inseguro e tímido, e a bebida era uma forte aliada dele para lidar com as pressões e exigências do estrelato.

Outro aspecto muito bem enfatizado, de maior relevância até, se refere às letras e músicas produzidas pelos Doors, sua origens e influências musicais.  O livro detalha a produção de cada álbum, como as músicas escolhidas para serem lançadas como single. No entanto, a melhor parte do livro está reservada para os shows e as turnês do grupo. São notórios os shows feitos pela banda em que Jim mal conseguia lembrar as letras ou prolongava a música por intermináveis minutos. Grande parte desse tema dos shows é dedicada à fatídica apresentação realizada em Miami, na qual Morrison foi acusado de conduta pública lasciva por simular felação com o guitarrista da banda. Foi perseguido implacavelmente por um juiz e um promotor que buscavam os holofotes. O processo oriundo dessa apresentação pôs em grande risco a continuidade dos Doors e pela primeira vez deixou o vocalista preocupado com a possibilidade de ir para cadeia. O que mais chama atenção nesse trecho do livro é a informação de que o grupo fez alguns shows no México (desconhecia completamente essa informação) e que a turnê europeia da banda foi extremamente bem sucedida tanto em termos de dinheiro como de performance de palco

O livro acompanha a carreira do cantor até seus últimos dias em Paris, quando morreu, supostamente, de um ataque cardíaco. Não se sabe ao certo se súbito ou causado por alguma substância. Não seria exagero dizer que o livro, juntamente com o filme, lançado onze anos depois, ajudaram a forjar um mito dionisíaco em torno da persona  de Morrison.

A sensação que tive após a leitura do livro foi perfeitamente captada por Jerry Hopkins no epílogo do livro: “Devo acrescentar, como uma nota de rodapé, que quando terminei de escrever os primeiros esboços do livro, não estava gostando de Jim Morrison tanto como gostava quando comecei”.  

P.S: Dizer que o livro é espetacular, seria redundância, mas se você quer ver um Morrison colocado como qualquer um de nós, não recomendo a leitura do prefácio de Danny Sugerman. Há uma louvação um tanto quanto desnecessária ao biografado. Deixe para ler depois de terminado o livro e veja se mesmo assim você concorda com o que Sugerman escreveu.

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Howard Becker e Os Mundos da Arte - Por André Maranhão Santos

Howard Becker ao Piano na 63rd Street em Chicago (circa 1950).


Possivelmente, várias pessoas que entraram em contato com análises sobre a arte o fizeram a partir de textos assinados por filósofos, estetas, historiadores, jornalistas ou biógrafos. No entanto, há outro caminho bastante relevante e não menos significativo, embora tenha emergido pouco em certos momentos. Falo aqui da perspectiva sociológica, e mais notadamente da Sociologia da Arte – a qual tem desenvolvido (pelo menos desde o século XIX) observações interessantes acerca de vários trabalhos artísticos e em suas formas mais diversas.

Um dos pontos de partida bastante emblemáticos para a Sociologia da Arte foi o ensaio de Max Weber (1864-1920), intitulado Os Fundamentos Racionais e Sociológicos da Música. Através de uma ciência recém-fundada como a Sociologia, Weber identificou nas divisões musicais do Ocidente (escalas, harmonias, melodias, tons, compassos) características análogas ao racionalismo da vida ocidental. Em outras palavras, Weber procurou frisar que a música ocidental se acoplava ao estilo de vida da própria sociedade do Ocidente, como também à sua visão de mundo (Weltanschauung).

Ao passo em que a Sociologia era instituída nas academias e nos países, outros grandes expoentes também se debruçavam sobre o tema da arte, sendo Maurice Halbwachs (1877-1945); Norbert Elias (1897-1990); Alfred Schütz (1899-1959); Theodor W. Adorno (1903-1969); Gisèle Freund (1908-2000); Pierre Bourdieu (1930-2002); Antoine Hennion (1952); Nathalie Heinich (1955) e Tia de Nora (1958) alguns dos seus nomes mais importantes. Nesse processo houve um grande intercâmbio de ideias entre tradições sociológicas diferentes, onde Alemanha, França e Reino-Unido merecem destaque.

Porém, outro cenário foi não menos crucial para a organização de uma Sociologia da Arte mais efetiva: nos Estados Unidos, sobretudo na Universidade de Chicago (fundada pelo magnata John Rockfeller) os estudos sociológicos receberão não apenas novas teorias mas estimularão trabalhos caracterizados por metodologias enriquecedoras e pioneiras. Todo este movimento ficou conhecido como Escola de Chicago, abrindo portas para técnicas de pesquisas tais como a observação participante, o estudo de caso, a etnografia, as entrevistas. Os sociólogos começaram a estudar gangues, comunidades, imigrantes, operários, policiais, sanatórios – dentre outros grupos e espaços mais específicos dentro de uma cidade – baseados no interesse de perceber como as pessoas interagiam em suas situações do cotidiano. Podemos destacar George Herbert Mead (1863-1931); Robert E. Park (1864-1944); Hebert Blumer (1900-1987); William Foote Whyte (1914-2000) e Erving Goffman (1922-1982) como estudiosos indispensáveis nesta tradição.

O debate levantado pela Escola de Chicago ofereceu um fértil cruzamento entre a Sociologia e a Psicologia Social, além do desenvolvimento de uma nova corrente das Ciências Sociais – a do Interacionismo Simbólico. Mas a Escola de Chicago e o Interacionismo Simbólico não podem ser compreendidos sem creditarmos a importância do Pragmatismo nesse processo. Pode-se afirmar que os Estados Unidos não desenvolveram um pensamento exclusivamente pragmatista, mas podemos afirmar que o Pragmatismo é o que há de mais enriquecedor no pensamento filosófico norte-americano, cujos nomes como William James, John Dewey, George H. Mead e Charles Sanders Pierce se tornaram expoentes célebres. Se eu pudesse resumir a visão pragmatista citaria a célebre frase de Dorothy e William Thomas que diz: “se os homens definem as situações como reais, elas são reais em suas consequências”. O mundo não é completamente dado de antemão, mas as pessoas têm capacidade de construí-lo, ordená-lo e hierarquizá-lo socialmente.

Estimulado pelas reflexões do Pragmatismo e do Interacionismo Simbólico, um jovem pianista semiprofissional resolveu estudar Sociologia na Universidade de Chicago nos anos quarenta: Howard Saul Becker é responsável por algumas das melhores análises da arte a partir de uma perspectiva sociológica no século XX. Atualmente, Becker é professor da Universidade da Califórnia (UCLA), mas ao longo da sua vida alternou seus momentos de docência com sua carreira musical em bares, clubes, casamentos e gigs. Becker aliou o fato de ser pianista de Jazz antes mesmo de iniciar seus estudos acadêmicos, para estudar como os músicos agem durante uma apresentação, além de observar como eles acertam seus repertórios em cada ambiente, oferecem as canjas, o bis e lidam com as panelinhas e donos dos estabelecimentos onde se apresentam. Para esmiuçar essas observações, Becker lançou em 2009 Do You Know...? The Jazz Repertoire in Action – em parceria com Robert R. Faulkner; além de Outsiders: estudos de sociologia do desvio, outra publicação bastante reconhecida entre seus pares onde Becker dedica dois dos seus capítulos ao estilo de vida do músico de Jazz nas casas noturnas em Chicago nos anos quarenta.

Ao concordar com várias posições do Pragmatismo, Becker também parece ratificar a posição de David Hume, ao entender que as grandes obras artísticas são grandes para as pessoas que conhecem o suficiente para entendê-las e para quem elas são destinadas. Em seus livros Art Worlds e Falando da Sociedade: ensaios sobre as diferentes maneiras de representar o social, Becker transcende as pesquisas sobre o Jazz, e parte para as análises da arte em diferentes materialidades: cinema dança, pintura, fotografia, o canto dos detentos em presídios norte-americanos, a poesia – todos esses casos são temas de problematização sociológica. Becker então acaba defendendo que não cabe à Sociologia diminuir qualquer expressão que se diga artística em virtude de outra supostamente superior. Se há uma dimensão metafísica ou do engrandecimento de estados da arte em um tipo de arte e não em outro, deixemos tal especulação para a Filosofia. À Sociologia cabe defender que a arte é convenção, regras, formas arbitrárias socialmente instituídas e compartilhadas. A arte depende de cooperação, de recursos materiais, de críticos que endossem o julgamento sobre determinado trabalho ou determinado artista. A arte, portanto, não é uma criação tão espontânea assim ou focada no indivíduo como podemos pensar, mas está intimamente ligada à interpretação que os indivíduos dão às formas, aos símbolos, além de suas opiniões possuírem forças em graus diferentes na sociedade, já que a sociedade é também o agir de olho no que os outros fazem. Se os indivíduos definem certos objetos como artísticos, eles serão artísticos em suas consequências!

Becker pode ser acusado (assim como muitas vezes o foi) de negligente ante uma posição moral ou ética na arte. Ainda sim, tal crítica é bastante problemática, já que construir uma análise sobre a arte isenta de julgar se alguma expressão artística é superior a outras – como bem o fez Becker, é se filiar a um compromisso ético com a ciência social: o de seguir a metodologia da compreensão e da interpretação das realidades construídas pelas pessoas em seus cotidianos. Agir dessa maneira é uma forma de não mascarar a realidade social, já que os estudos da arte perderam muitas informações preciosas, quando seus analistas deixaram o preconceito e o esnobismo falarem mais alto que os dados de suas análises.

Sugestões de leitura:

BECKER, H. S. Art Worlds. California: University of California Press, 2008.

_____. Do you know? The jazz repertoire in action. California: University of California Press, 2009.

_____. Falando da sociedade: ensaios sobre as diferentes maneiras de representar o social. Rio de Janeiro: Zahar, 2009.

_____. Outsiders: estudos de sociologia do desvio. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

Página de Howard Becker:




domingo, 4 de maio de 2014

Chaka Nights - por Fernando Lucchesi


Ao buscar referências sobre o disco “Chaka Nights” do músico pernambucano Ricardo Chacon pela internet, a palavra que certamente mais irá aparecer é indie rock. É bem verdade que aquelas guitarras típicas do indie rock estão em várias das músicas, mas seria simplificar demais as influências que o músico optou por colocar em seu trabalho solo de estreia. O já mencionado estilo indie, psicodelia, rock n’roll e até mesmo reggae estão no caldeirão de influências do músico.

A sonoridade do disco está influenciada por uma fase de pop/psicodelia do final dos anos 1960/1970. A bela introdução de “Não sei lidar”, primeira faixa do álbum, serve como um cartão de visitas. Parece que estamos ouvindo uma faixa do clássico de Ronnie Von de 1967. As guitarras e as melodias comprovam isso. Já “Mil razões”, a melhor faixa do disco, revela a face roqueira do músico: riff extremamente “pegajoso”, melodia acelerada e vocais em segundo plano, algo próximo do Black Rebel Motorcycle Club em seus melhores dias. Ela, juntamente com “Nonsense”, é a que mais se aproximam do rótulo genérico de indie.  “Nonsense” traz a típica guitarra indie e tem seu alicerce no som produzido por bandas como Placebo e Sonic Youth (este em uma fase mais “leve”).

"While in a great Sunshine” parece simplesmente uma faixa de transição para a outra parte do disco recheado de uma sonoridade que remete a um som de influência regional. E é essa parte que apresenta maiores problemas. As referências são meio óbvias e as músicas soam muito parecidas com as de outras bandas locais. Pode-se até falar em uma certa falta de ousadia. “Telefonar” e “Só meu amigo”, por exemplo, poderiam estar em algum disco do Mombojó facilmente. O ponto positivo dessas duas faixas é que o músico não abre mão das guitarras psicodélicas. “A casa e a praia”, um reagge com arranjos de metais, remete a uma sonoridade que poderia ser confundida com algo do Eddie.         

Problemas à parte, a estreia de Chacon nos permite vislumbrar um futuro promissor para o músico desde que enverede pela sonoridade psicodélica, pois é ali onde está o ponto forte do autor: composições inspiradas, melodias intensas e uma guitarra despretensiosa, porém, eficiente. Depende dele, parafraseando o título de umas das músicas, resistir ao teste do tempo. Talento para isso ele provou que tem.