terça-feira, 28 de julho de 2015

A Iconoclastia do Engodo - Por Bruno Vitorino

O cantor pernambucano Johnny Hooker - fonte: Google Imagens.


Acabando nós todos cegos, como parece ir suceder, para que queremos a estética? – José Saramago[1]


Se contada nos dias de hoje, a lenda de Hércules teria não doze, mas treze trabalhos heroicos. Acreditando ser possível a insanidade de reinventar o mito em nosso tempo, o semi-deus estaria a mando não de um Euristeu, rei covarde e fraco, mas de um novo rei sem rosto, hipócrita e mimado que age no invisível, nos limites entre a realidade humana e o mundo imaterial dos bytes, porém que a tudo controla e vigia: o Facebook. Para o filho de Zeus, protegido de Palas Atena, não seriam mais necessárias uma força sobre-humana ante os obstáculos, um destemor impávido frente às manifestações bestiais dos caprichos dos deuses e uma bravura rutilante de se embrenhar nos além-mundo dos homens. Tudo isso seria inútil, vão. A ele não seria exigido mais que uma paciência interminável e uma consciência profunda do gritante despropósito de suas tarefas.

Em meu delírio, exercício deliberado do anacronismo e das atribuições errôneas, imagino que, logo após enfrentar a hidra, aquela besta do mundo subterrâneo, de corpo disforme, com inúmeras cabeças mesmerizadas a esconder uma outra de contornos mais definidos, tez avermelhada e dona de um raciocínio cinicamente partidarizado dissimulado em gritos de fúria retórica, a qual ocupa os armazéns do Cais José Estelita avocando para si a exclusividade em proteger a joia do Estelita; deveria nosso Hércules contemporâneo encarar o trabalho extra que lhe imputou seu novo suserano: ir a um vernissage cult e descolado no lounge do novo Roof Tebas embalado ao som do disco de estreia do cantor pernambucano Johnny Hooker, “Eu Vou Fazer Uma Macumba pra Te Amarrar, Maldito!”. Pois, só na condição de semi-deus para suportar uma audição a sério desse trabalho (e por “a sério” entenda-se “de forma concentrada, minuciosa”, partindo do pressuposto que há nele algum valor estético).

Em seu disco, Hooker faz da canção a plataforma do escracho e da dor de cotovelo brega cult de maneira muito sagaz - obviamente não do ponto de vista musical ou poético -, pois, sendo a persona que incorpora um gay libertino, coloca seu trabalho artístico num campo minado moral patrulhado tanto pela sociedade descentrada da pós-modernidade quanto pelas minorias ativistas e seus seguidores. E ao fazer isso, o cantor assenta seu trabalho (e ele sabe disso, imagino) num território inacessível à crítica, a qual, sem o menor trabalho (especialmente a local, bairrista ao extremo), logo arruma meios para enaltecer o viés “performático, provocador e iconoclasta” do artista pernambucano em textos marcados pelo oba-oba laudatório, de brodagem clientelista, endossando, assim, o elogio mútuo de uma forma que só uma dispendiosa assessoria de imprensa poderia proporcionar. Jornalismo cultural domesticado que, deixando-se levar pelo complacente espírito do clubismo e pela lógica passageira das tendências, substitui a reflexão estética pela chancela de valor das estrelas de sempre e dos “queridinhos” do momento. Negócios, enfim.

Qualquer análise mais a fundo que exponha a fragilidade da condição artística do cantor periga ser desqualificada pelas armadilhas das questões minoritárias de gênero - neste caso a tag “homofóbico” logo me vem à tona - e seu autor, de ser vilipendiado publicamente nas infinitas terras do rei de hoje. Sei disso. Mas, ousarei aqui correr o risco, pois parto de um pressuposto humanista muito elementar: todo ser humano tem alma, independente de cor, credo, nacionalidade, classe sócio-econômica e opção sexual. E é essa essência que sente, chora, ri, essa coisa sem nome, única, que trazemos dentro de nós que me interessa, não o papel social que seu invólucro desempenha. O mais é puro supérfluo, e eu não cometerei o erro generalizado de substituir a essência pela carapaça. Outra coisa: até onde me consta, sou livre para pensar, e na condição de crítico musical tenho a obrigação de problematizar uma obra, gostando ou não dela, e de lançar um olhar independente que, além de qualificá-la, perceba suas relações com a realidade que a circunda.

Previamente esclarecidas algumas questões para uma eventual patrulha dos moralistas inveterados da contemporaneidade e da cavalaria da Verdade Comportamental do rei Facebook, e mirando no que importa, resta dizer que o disco de Johnny Hooker é musicalmente fraco, porque se baseia no cansativo lugar-comum da estética brega-cabeça da classe média recifense, releitura higienista da periferia apesar de se dizer o contrário, que elevada à categoria de arte tomou conta da produção musical desta pequena vila. Tudo bem que os arranjos de metais são surpreendentemente bem feitos e bem executados, e que Hooker sabe, ao menos, projetar sua voz com algum cuidado nos timbres e na afinação. Algo por si só raro dentre os cantores da “cena” recifense, supondo logicamente que não esteja o Pro Tools e outras maquiagens eletrônicas a nos fazer de tolo. No entanto, é muito pouco para salvar o disco de uma banalidade sonora que remete a uma quase modorra.

Além disso, o álbum é poeticamente vulgar - para muito além das questões de gênero - pelo simples fato de ser mal escrito e chulo, denotando um amor caricato entre indivíduos desprovido de qualquer dimensão metafísica, romântica, digamos assim, que no final reduz os amantes a uma condição animalesca de pura carne na qual se relacionam tão somente por instinto, numa espécie de fauna selvagem e exótica em eterno cio. Como fica evidente, por exemplo, na balada à trilha sonora de Tarantino Volta - “É impossível ter de escolher entre teu cheiro e nada mais” -, na “sofrência” com toques de guitarra surf music de Alma Sebosa – “Não responde meus recados, me trata feito lixo / Se não me quiser, não me procure nem mais pra foder”, na construção de óbvio duplo sentido do ska dançante Chega de Lágrimas – “Chega de lágrimas, eu vou meter... / O pé na estrada / Me livrar de você”, no carimbó Boato – “Bebo o leite quente do amor da gente / Nada me satisfaz”, no pop brega Você Ainda Pensa? – “Você ainda pensa em mim quando fode com ele?”, no pastiche de frevo canção Desbunde Geral – “A gente se pega, se bole e se morde no chão de estrelas / Que meu corpo receba o desbunde geral”. E fica nisso.

“Mas Bruno, você tem de entender que só o fato de um artista debochado como Johnny Hooker existir já é, por si só, um ato de coragem, e não reconhecer isso é, no mínimo, preconceituoso sim!”, pareço estar ouvindo a repreensão de Sua Majestade Rede Social. Aí, alteza, com toda a humildade devo dizer que discordo duplamente. Embora que não considere aqui primordial a questão de gênero, como já disse antes, claro que enxergo que o lugar da fala tem sua relevância para entendermos as questões do discurso. Bourdieu e tantos outros já discorreram sobre isso em inúmeros trabalhos. Porém, não importa aqui a sexualidade do interlocutor do discurso poético, ou seja, de onde vêm os enunciados, pois qualquer que seja ela não salva a baixeza da mensagem em si. Eis a primeira discordância.

Já em meu segundo desacordo digo que, se olharmos com cuidado para o álbum do cantor recifense como um todo, veremos que ele mais parece se situar numa butique de luxo de um estilista qualquer ou num apartamento bacana nas áreas mais exclusivas da cidade com o simples intuito da controvérsia efêmera, do que nas trincheiras cotidianas da luta da comunidade LGBT na batalha pelo respeito, dignidade e reconhecimento a que tanto faz jus. “Ah, mas é uma performance artística, Bruno! Por favor...”, grita impaciente o rei. De fato, Majestade. Mas, o que fica dela? Um choque gratuito? Uma polêmica midiática vã? Uma sedição mercantilizada? É para isso que serve a música? É esse o grande mérito artístico de Johnny Hooker? Se for, acho muito pouco. E se é para dar um exemplo de uma notável produção artística de gênero, prefiro muito mais, em termos de realização cultural e repercussão na sociedade, um filme como “O Segredo de Brokeback Mountain”: uma obra de arte com incomparável beleza plástica, conteúdo emotivo, críticas contundentes a modos e costumes arraigados na tessitura social e reflexões bastante pertinentes e fundamentais sobre o amor entre pessoas do mesmo sexo. O lugar da fala e o conteúdo da fala estabelecendo entre si um forte vínculo através de um trabalho de vasta densidade estética, cultural e artística.

Por estas razões, vejo em todo o frenesi promovido pela imprensa e público em torno da figura artística de Johnny Hooker como uma declaração contumaz de que estamos mal, mas muito mal mesmo, em termos de Cultura, e que “Eu Vou Fazer Uma Macumba pra Te Amarrar, Maldito!” é apenas mais um dentre tantos outros álbuns desnecessários provavelmente fadado a, dentro de mais alguns meses, cair no total esquecimento, substituído por um novo e lucrativo modismo transgressor de ocasião. 






[i] SARAMAGO, José; “Ensaio Sobre a Cegueira”, Companhia das Letras, São Paulo, 2014, pág. 128.

5 comentários:

  1. Parabéns Bruno! Até que enfim alguém teve a coragem de fazer uma análise lúcida e séria sobre o trabalho de Johnny Hooker. Não entendo tanta euforia em torno de um “artista” que poderia passar despercebido se não tivesse espaço (quase que diário) nos jornais. Certa vez fui a UFPE para assistir a um Show de Lobão (que não veio) e tive a infelicidade presenciar uma apresentação (abertura) de Hooker. Fiquei chocada!! Eu e a maioria dos presentes, tanto que saímos antes dele terminar. Esse cidadão não cantava, esbravejava! Correndo freneticamente de um canto ao outro do palco desferia à plateia, que assistira estarrecida, palavras de baixo calão exigindo aplausos. Fico estarrecida ao vê-lo comparado a grandes artistas brasileiros. Não identifico em sua “música” nada que possa relacioná-lo ao poético Cazuza. Sua performance no palco em nada se assemelha a grandiosidade e a beleza harmoniosa de Ney Matogrosso, esse, até onde sei, nunca fez de seu guitarrista mastro de poli dance. Considerar Hooker “um grande artista, um super star andrógino, um vozeirão” como disse o senhor Ernesto Barros ao JC, é querer se aproveitar do sucesso momentâneo vivido ele, é querer sair bem na fita para os pseudo-pensantes das noites recifenses. Mais uma vez me pergunto: porque tanto frenesi? Se Johnny Hooker é o que temos de melhor como será o pior? Porque outros (grandes) artistas pernambucanos não tiveram (e não têm) o mesmo espaço nos jornais assim como Hooker?. Como bem disse Bruno, o sucesso de Johnny Hooker tende a ser meteórico, o que eu concordo. Com certeza alguém irá criar e lançar em breve um novo artista do momento! É esperar pra ver e rezar para que seja algo melhor!!

    Cristina Monteiro

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    1. Cristina, bom dia! Primeiramente, peço desculpas por apenas ler tuas opiniões nos textos de Johnny Hooker hoje. Agradeço, em nome de todos, tuas valorosas participações em nossas postagens. Você tem a sensibilidade de perceber que é justamente este debate que procuramos provocar nas pessoas. O confronto com embasamento, qualidade e opiniões concisas. Gostaria de discorrer com você sobre quando falei sobre Cazuza e Ney Matogrosso. Como citei no texto, percebo que ambos são influências claríssimas para o ator-cantor pernambucano. Cazuza pelo modo "escrachado" com que cantava (e JAMAIS por sua poesia) e Ney Matogrosso, inegavelmente, por suas performances em cima do palco (o lance de se produzir e "requebrar"). Não tive a oportunidade de vê-lo em cima do palco e compreendo o "choque" que ele pode ter causado. Mas, não será exatamente isto que o referido artista esteja procurando? E, de minha pergunta anterior, veio outra: "Será que isso é tão original assim?"

      Um forte abraço e obrigado,

      Giba Carvalho.

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  2. Meu caro Giba, já tive oportunidade de ler seus textos e confesso comunguei de seu pensamento, daí não contextualiza-los. Gostei de todos, exceção do que você falou sobre Johnny Hooker, não em sua totalidade. No entanto o de Bruno tocou em um assunto que estava em minha garganta com uma espinha de peixe. Infelizmente tive a "oportunidade" (que você não teve) de vê-lo ao vivo no palco e reafirmo tudo que falei, foi traumático! e olhe que sou uma pessoa aberta a diversidades culturais de nosso país e muito conheci na minha formação sociológica, mas no meu ponto de vista esse jovem não contribui em nada para nossa cultura, a impressão que tenho é que ele é um mero produto da "indústria" musical que produz cantores visando obter lucros do público carente de novidades. Infelizmente o legado que estamos deixando para nossos filhos e amigos não causa impacto significativo que mereça uma classificação na nova ordem musical, o último morreu com Chico Sciense.De todo modo acho válido seus comentários e muito aprendo com eles, continuem assim e parabéns a todos pelo propósito do blog.

    Cristina Monteiro

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  3. Arretado Bruno! Esse cara é um chato, gosta de aparecer e chamar a atenção, não canta absolutamente nada. Vai ver que é por isso que ele se fantasia todo e faz aquelas mugangas no palco. Ele deve ter um patrocinador muito bom pra manter-se na mídia, já vi muita gente boa não conseguir ser notícia nos jornais nem em nota de rodapé. Só no Brasil mesmo, absurdo!
    Ricardo Silva

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  4. Muito bom o texto!
    Há poucos dias o Johnny Hooker se apresentou aqui, em João Pessoa, e, devido a um incidente com a produção do evento, ele se tornou um mito, depois de ter seu microfone desligado, assim como as luzes do palco.
    Sua produção, extremamente desrespeitosa com os horários das apresentações dos artistas locais, deu massada, criou caso e até esculhambou outros artistas. Daí se tira a arrogância e prepotência desse ser midiático, unica e exclusivamente fruto da nossa imprensa medíocre.
    Já o valor estético, não discorro muito por não ser boa entendedora (inclusive o texto me ajudou bastante). Tem umas elites que parecem ter vergonha de se assemelhar às classes menos abastadas quando se trata de curtir brega. Então maquiam, disfarçam o gênero, chocando tanto a ponto de fazer as pessoas não pensarem. Este é o público de Hooker.
    Saudades do Reginaldo Rossi.

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