quarta-feira, 4 de abril de 2012

O Lirismo Abstrato de Masabumi Kikuchi - por Bruno Vitorino



Masabumi Kikuchi
No início do século XX, Arnold Schoenberg proclamava a alunos fascinados com sua complexidade que a composição nada mais era do que improvisação escrita e estruturada. Cinquenta anos depois, os vanguardistas do jazz ligados a Association for the Advancement of Creative Musicians – Roscoe Mitchell, Anthony Braxton, Muhal Richard Abrams – tentavam refutar acusações de leviandade estética e gratuidade sonora assegurando que improvisação era composição instantânea, ou seja, defendiam que sua música era devidamente organizada e cognoscível. Os extremos se tocam! Atento a essas perspectivas opostas e atreladas de modo indissociável, o pianista Masabumi Kikuchi se lança em direção ao desconhecido no seu recém-lançado álbum “Sunrise”.
Nascido em Quioto em outubro de 1939, Poo, como também é conhecido, iniciou seus estudos musicais na Escola de Arte de Tóquio, passou brevemente pela Berklee College of Music – dois semestres – e entre idas e vindas ao Japão nos anos 1960 e 70, experimentou do hard bop à novidade elétrica chamada jazz fusion com influências que abarcavam de Duke Ellington a Toru Takemitsu, passando por Paul Bley. Atuou como líder e sideman: montou um sexteto no Japão com o qual gravou sete aclamados discos (todos fora de catálogo atualmente); tocou com Sonny Rollins, Joe Henderson, Mal Waldron, Elvin Jones e estabeleceu sólidas parcerias com Gary Peacock e Paul Motian no trio Tethered Moon, Gil Evans, Steve Grossman e até Miles Davis com quem gravou dois álbuns em 1978 até hoje não lançados. Virou lenda em seu país, mas preferiu se estabelecer em Nova Iorque, para se “libertar de tudo”, segundo ele mesmo costuma dizer.
Gravado em 2009, “Sunrise” preenche uma lacuna de quase dez anos sem um trabalho em seu nome e é também seu debute na companhia alemã ECM Records. Para tal projeto, Kikuchi convidou o veterano baterista Paul Motian (sua penúltima sessão em vida) e jovem baixista Thomas Morgan. Unindo as extremidades das premissas “composição enquanto improvisação” e “improvisação enquanto composição”, o pianista e seu trio entram num novo território que perpassa paisagens estranhas e incomuns, porém impregnadas de uma beleza imprecisa. São dez composições coletivas que emergem da livre improvisação/composição tocadas além da necessidade exibicionista da técnica e que buscam explorar as mais recônditas nuances do fazer música. Em certos momentos, o trio beira o abismo do vazio, como um pintor que realça a tela em branco ou um orador que aposta no silêncio, para depois despejar sobre o ouvinte uma torrente de cores e uma profusão de sensibilidade.

Um frágil acorde é ouvido – um F6 – seguido por um leve ataque no prato e por um singelo mi agudo no contrabaixo. A composição vai se desenvolvendo em “molto rubato”, flutuando calmamente pela progressão harmônica que vai sendo desenhada no ato: “Ballad 1”. De chofre, o ouvinte percebe a comunicação telepática entre os instrumentistas. Nada foi previamente escrito, assim a música ganha uma força tremenda, pois não é fácil partir do zero em direção ao éter. É necessária muita cumplicidade entre os envolvidos no processo. Morgan pontua reticente, escutando a sucessão de acordes enquanto Motian pincela o ritmo e Kikuchi determina o rumo a ser seguido pelo combo.

Kikuchi, Morgan e Motian
Em “So What Variations”, o trio leva o conceito de variação às últimas consequências explodindo num arroubo de fúria aquilo que seria o ré dórico característico do tema So What de Miles Davis. Já em “Sunrise”, a maneira com Motian cria as mais diversas ambiências rítmicas é de tirar o fôlego. Provavelmente nenhum baterista conseguiu ser tão independente em relação ao pulso sem, contudo, perdê-lo de vista. Talvez “Uptempo” seja a faixa mais tradicional de todo o set com sua ideia sublimada de swing em 4/4. Para finalizar o disco, Kikuchi novamente expõe sua delicadeza melódica e sua densidade harmônica na instável “Last Ballad”.

No mini-documentário “Out of Bounds” (segue logo após esse parágrafo) de Thomas Haley, Poo declara que sua música não é aleatória. “Eu sempre sigo meus instintos, sabe? Sinto o que está acontecendo enquanto toco e antevejo o próximo passo.” E que ela é mais significativa agora do jamais fora, porque lhe é possível a liberdade da escolha. “Eu posso ir a qualquer lugar, porque eu comecei a confiar em mim mesmo”. Para Kikuchi, o desprendimento em relação a objetivos e metas preconcebidas lhe proporciona o impulso necessário para que se lance na busca por caminhos mais seus. “Eu tenho que me estabelecer. Eu não quero fazer parte da história dos outros. Eu quero fazer uma música que eu possa chamar de minha.”


Numa carta endereçada a Kandinski, Schoenberg escreveu que “a arte pertence ao inconsciente! O artista deve expressar a si mesmo! Expressar a si mesmo diretamente! Não seu gosto, sua educação, inteligência, conhecimento ou habilidade”. Com “Sunrise”, Masabumi Kikuchi se expõe por inteiro. Negando a banalidade do falso virtuosismo, o pianista encontra seu modo de se afirmar no mundo. Sem dúvida, uma pedra preciosa que irradia seu brilho em meio ao entulho da futilidade contemporânea!

2 comentários:

  1. Muito bom seu comentário Bruno, infelizmente são poucas as pessoas que têm o privilégio de conhecer o trabalho desse músico tão extraordinário, inclusive eu, mas depois de ler seu artigo, vou "corrigir" essa falha o mais breve possível.

    Cristina Monteiro

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  2. Ótimo texto Bruno! Vou ouvir mais o camarada Masabumi, ainda não formei opinião sobre o trabalho dele. Gostei da sua abordagem de "composição instantânea", na verdade já pensei muito sobre isso!

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