Na coluna deste mês, os editores do
blog comentam o mais novo trabalho da cantora Björk, seu recém-lançado “Vulnicura”.
Boa leitura!
- Giba Carvalho:
Em
seu novo álbum, Björk tenta expor e ao mesmo tempo sarar as feridas do fim do
seu casamento. Parece receita de bolo da vovó, mas até mesmo na gélida
Islândia, o idoso mote afetivo serve como inspiração para novas composições.
Pois bem, "Vulnicura" é um disco muito bem produzido e que possui alguns pontos
interessantes.
Primeiramente,
os trabalhos da "Deusa do Gelo" parecem ser feitos para transcender o
espaço único da música. Talvez por conhecimento das apresentações ao vivo de Björk,
insista em dizer que a artista em foco pensa sempre que seus discos são unicamente
para encenações tão peculiares as suas apresentações. É como se fosse uma peça
de teatro constante, intensa, lotada de diversos artefatos e que toda produção
fonográfica fosse a trilha sonora para tal. Ao vivo funciona muitíssimo bem. Já
para audição, “Vulnicura” torna-se enfadonho e confuso.
Os
gemidos incessantes de Bjork transitam de forma eficaz numa tentativa de mesclar
música erudita com tons de eletrônico. Tenho que levar em consideração, que em
comparação com trabalhos anteriores, este é um dos álbuns que ela menos
arriscou em termos instrumentais. Isto fez com que o disco soasse altamente
estranho. A mescla supracitada é insuportável (com exceção dos arranjos
de cordas que são muito bons). Voltando ao ponto de vista vocal, a cantora desfila momentos de
extrema emoção e dramaticidade em vários momentos do álbum. Para que o leitor
tenha idéia, as seis primeiras canções do disco são como se fosse um glossário
dos períodos pré e pós-separação. Não tem como não ser de outra forma. É
completamente perceptível.
“Vulnicura”
é um disco passional por inspiração, chato nos arranjos e contraditório nas
composições. Nada diferente das almas que sofrem por amor.
- André Maranhão:
Para
mim está bem claro que Björk é um ícone da música. Seus lances performáticos,
somados aos seus gestos camaleônicos deixam isso claro há mais de décadas. O
álbum “Vulnicura” também faz jus a todas essas qualidades da artista islandesa.
O uso de instrumentos eruditos embaralhados com sintetizadores, colagens,
ruídos sampleados, além da vocalização bastante afinada de Björk, contendo,
inclusive melodias nórdicas, estão presentes nas canções desse trabalho. Creio
que em algumas faixas isso funciona bem. Aqui, destaco Stonemilker (para mim, a melhor do disco); History of Touches; Atom
Dance e Black Lake – embora, não
considere todas elas necessariamente boas por completo. As demais faixas me
parecem confusas, onde Björk vagueia entre os mares de sua voz desconexa com os
ritmos eletrônicos e os instrumentos acústicos que trouxe para o álbum. Apesar
da importância dessa artista, confesso que em alguns momentos, foi uma tarefa
bastante árdua concluir a audição de “Vulnicura”. Mas é possível que ao se
combinar com as apresentações de Björk no palco, essas canções envolvam mais,
pois lá estarão presentes outros recursos multimidiáticos e cênicos, tais como
telões, figurino, maquiagem, expressão corporal, importantes para compor o
sucesso da artista, cuja competência ela já demonstra possuir faz tempo.
- Fernando Lucchesi:
Ainda
me recordo a primeira vez que ouvi falar em Björk. Uma colega de classe me
falava demais sobre a banda dela, o Sugarcubes. No entanto, como qualquer
pessoa no começo dos anos 1990, a primeira vez que vi e ouvi Björk foi através
da MTV no clipe de uma música chamada Human Behaviour. Clipe muito bem feito, mas quando ouvi o estilo de música que
ela cantava a decepção foi grande. Aquela voz baixa, quase fraca que parece que
vai desaparecer realmente não fez minha cabeça. Eis que agora foi proposto pelo
blog analisar o novo álbum dela, intitulado “Vulnicura”.
Bom,
quase 20 anos depois de ter escutado Björk pela primeira vez continuo achando
uma das coisas mais enfadonhas da música. A voz dela aliada a alguns arranjos
de teclado meio New Age transformam
boa parte do álbum num excelente soporífero, mas seria injusto dizer que tudo é
ruim. Os arranjos de cordas são muito bonitos e bem executados, como, por
exemplo, em Stonemilker e Lionsong, só para citar dois exemplos.
Outro destaque do disco é a longa e intensa Family.
Enfim,
se você é fã de Björk você vai se deleitar com Black Lake, uma mistureba de sons eletrônicos de dez minutos de
duração e vai achar o disco uma das coisas mais revolucionárias do planeta. Mas
se você, assim como eu, não tem nenhum apreço pelo som dela, passe longe desse
disco.
- Bruno Vitorino:
Não
sou um expert em Björk. Muito pelo
contrário. Quase nada conheço da cantora, além de sua brilhante atuação no
filme “Dançando no Escuro” (2000), dirigido por Lars von Trier, e da trilha sonora que a artista compôs para esta película densa e emocionalmente profunda.
Lembro – e isso faz muito tempo – de ter ficado bastante impressionado com a
música em si, o uso que Björk fazia de batidas eletrônicas, da sonoridade emanada
do maquinário que sua personagem manipulava, das harmonizações vocais, dos
timbres orquestrais, enfim com a música grandiloquente feita por alguém que
sabia exatamente o que estava fazendo. Um trabalho musical primoroso que
dialogava de modo muito interessante com o filme, conferindo-lhe ainda mais
peso emotivo. Por sinal, nunca me esqueci do quão desnorteado fiquei ao final da
sessão de cinema. O impacto do filme, potencializado pela trilha sonora, atingiu-me
em cheio e saí da sala embevecido pelo prazer estético.
Para
além deste trabalho, no entanto, nada conheci além do hype-diva que envolve a
cantora islandesa. E, apesar de ter gostado de “Dançando no Escuro”, todo este
frenesi cult me manteve afastado e
absolutamente desinteressado por sua música desde então. Acabei trilhando outros
caminhos sonoros que me levaram para longe de suas fronteiras estéticas.
Contudo, “Vulnicura” e a necessidade de comentá-lo para a coluna fizeram com
que me reencontrasse com Björk depois de todo esse tempo. Foi, confesso, uma agradável
surpresa.
“Vulnicura”
é um disco extremamente íntimo no qual a cantora disseca o fim de seu
relacionamento com Matthew Barney e a devastação humana que isso lhe causou
numa espécie de drama eletro-orquestral. É um disco fragmentado, como um
coração em frangalhos, onde cada canção esmiuça resquícios de sentimentos por
vezes conflitantes, pinta aquilo que poderia ter sido entre eles e medita sobre
as repercussões emocionais do ocaso do amor onde, no entanto, um ainda ama.
Porém, a segmentação do álbum, mais do que comprometer sua coesão narrativa,
aprofunda-a, pois cada música parece estabelecer entre si um laço emocional,
como se cada uma delas jogasse luz sobre um aspecto diferente do sofrimento uno.
O andamento largo que perpassa todo
ele, mantém, do ponto de vista musical, sua unidade e é o fio condutor que leva
o ouvinte a percorrer as paisagens emocionais que Björk constroi com o uso de belas tessituras nas
cordas, de uma sólida base rítmica promovida pelas programações eletrônicas e de
ricas melodias que cortam os céus desses mundos confidenciais. Destaque para Stonemilker, History of Touches e Family.
Sim,
concordo, o disco é "paradão" (embora prefira o termo “contemplativo”). Sim, as
inflexões vocais de Björk são, de fato, um pouco irritantes (embora haja muita
beleza expressiva e técnica em sua voz). Sim, reconheço também certa
contaminação new age nos temas (embora
prefira ouvir os ecos de Jean Sibelius que as cordas me trazem). Concordo com
tudo isso! Mas, se levarmos em consideração que vivemos num tempo no qual os
artistas se reduziram a celebridades midiáticas que fomentam estilos de vida e
padrões de consumo, que a sensibilidade coletiva se vulgarizou ante o inútil e
o superficial, que pouco ou quase nenhum espaço é dado à criatividade no que
sobrou daquilo que a humanidade conheceu um dia por arte; somos obrigados a reconhecer
a coragem de Björk em compartilhar, de modo franco e inteiramente aberto, com
milhares de pessoas ao redor do mundo, o abissal e doloroso mergulho dentro de
si traduzido de maneira bastante exitosa numa música tão delicada, e de certa
forma resgatar, com isso, a perspectiva esquecida da arte que busca unir os
indivíduos no abstrato de seu arcabouço simbólico. Particularmente, acho um
feito notável neste “mundo prostituto”, para usar uma expressão de Rubem
Fonseca.
Por
todas essas questões, meus caros, “Vulnicura” é um disco que merece, ao menos,
uma audição bastante atenta.
- Rógeres Bessoni:
Björk,
usualmente, me tira da minha zona de conforto. E isso está longe de ser um
demérito. Mas, por si só, também está longe de ser um mérito. “Vulnicura” me
trouxe, em seu começo, elementos poderosíssimos para mim, que são os excelentes
arranjos de cordas, em alguns momentos com matizes dos violinos do leste
europeu, de que tanto gosto. E terminou por aí. Para todo o resto, aplica-se o
que vou morrer de velho falando, sem nenhum constrangimento – ao contrário,
afirmo cada vez com mais firmeza: o mundo musical da pura técnica, sem melodia
e sem apresentar uma construção sólida, me interessa muito pouco ou nada. E não
acho que “Vulnicura” é um exemplar de “pura técnica” musical. No máximo, pode
ser uma boa experiência sonora de técnicas de estúdio. No caso específico de Björk,
a simples opção pela estética do bizarro não traz para mim nenhuma experiência
de acréscimo ou revelação. Digo isso porque, para que “sirva” de alguma forma,
a vivência de sair da zona de conforto tem que ter caráter iniciático. Um
Mestre sempre lhe conduz a perceber como era mais estreito o lugar que você
ocupava antes, e como é melhor a nova visão que se abre. E estamos falando de
música, 45 minutos de andamentos quebrados, praticamente sem nenhuma
linearidade, ruídos tecnológicos, sussurros, ruídos humanos que parecem de
agonia, a loucura, o soturno, a fronteira do horror...
Ah,
eu captei exatamente o que o álbum queria? A visita aos porões de uma mente
atormentada? O transe esquizofrênico? Relatos do terror noturno? Uma tarde de
um domingo de chuva, em depressão profunda, num sanatório? A literatura já
produziu obras-primas por esses caminhos. O cinema também. A pintura e a música
também. Era isso que Björk queria passar, e eu, acertadamente, captei? Não sei,
e não é o que me interessa que falo em MÚSICA. A construção musical baseada
exclusivamente em desconstrução não me diz absolutamente nada. O choque pelo
choque não me conduz a nenhuma experiência estética libertadora, em nenhuma
vertente da arte. Por exemplo, até hoje considero que assistir ao filme
“Irreversível”, com o estupro de Monica Bellucci filmado em tempo real, sem
cortes, foi um dos empregos de tempo mais inúteis da minha vida. Não pensei
nada mais iluminado depois de ter me submetido àquilo. Foi assim que os últimos
45 minutos de Bjork não me libertaram mais do que 5 minutos de Mutantes, nem me
revelaram a alma humana mais do que meia letra do Pink Floyd. Eloquência,
maestria poética e virtuosismo, domínio da plasticidade dos sons - esses
elementos são manejados acertadamente e grandiosamente por poucos. Nem todo
ajuntamento de elementos configura para mim uma construção, ainda que espelhe
uma intenção.
Hoje
em dia, por exemplo, meu querido Recife é um amontado de edificações, e
discute-se se isso resultou numa cidade. A ininterrupta fratura rítmica pode
até ter revelado a descontinuidade da cabeça de Björk, pode até ter sido uma
realização deliberada, planejada, mas não me conduziu pelas minhas próprias
quebras existenciais – se é que o álbum algum dia se propôs a isso. Aquele
encadeamento de sons não produziu em mim a perplexidade, a surpresa do
aprendizado. E, ademais, quando uma obra pretensamente artística nos conduz ao
desconforto, é significativo que também suscite em nós o deleite do insight, sem o qual esse desconforto não
pode ser contemplado e digerido. Uma
situação de tormento perene, sem alívio, não se converte em luz – no
caso, não se converteu em uma “luz estética”, digamos assim.
O portentoso rock progressivo, em seus diversos
matizes, já me mostrou abismos. Mas, assim como Dante atravessou o horror
guiado pela poesia, personificada em Virgílio, o progressivo nos conduz também
por uma riquíssima malha poética e por um território de grande virtuosismo
musical, além de verdadeiras odisseias melódicas. É, pois, ante todo o assombro
que grandes obras já operaram em mim, que “Vulnicura” se me apresentou
verdadeiramente sofrível. Eu sinceramente acho que o universo do ruído
agressivo, do torto, do bizarro, do “desconstruído”, é um abismo em que a
ocidentalidade caiu, e do qual não sabe sair. Pensaria diferente se visse que
transitamos de dentro para fora da melodia a nosso bel-prazer, mas não vejo
isso. A criatividade da construção melódica e das sólidas construções rítmicas,
que rendeu à humanidade escolas como o blues, o samba, o flamenco, a música
indiana e, mais recentemente, o grande hard rock (apenas como exemplo), parece
uma ciência perdida. Parece algo que não é feito porque não se sabe mais como
fazer. Respeito a artista, respeito toda e qualquer intenção artística,
respeito os fãs, mas parafraseando a própria Björk, “I have musical needs, oh,
needs...” E vamos em frente. O garimpo continua.