Ornette Coleman. Fonte: Google Imagens. |
O mundo do jazz
perdeu hoje um de seus filhos mais pródigos: morreu, aos 85 anos, o compositor
e saxofonista Ornette Coleman.
Nascido no Texas,
autodidata, Ornette começou no blues,
tateando as formas, descobrindo no ato da performance o insondável poder da
improvisação e construindo desde o início uma sonoridade única, fruto de uma
necessidade premente de expressar a si mesmo, ir além da óbvia e inescapável
influência de Charlie Parker, romper com as cercanias estéticas da tradição.
Por conta disso, sempre foi uma figura controversa, impressionando muitos com
seus fraseados aparentemente soltos e sua música livre (como o pianista Paul
Bley que, reconhecendo o gênio, foi o primeiro a gravar o conjunto do
saxofonista num disco em que aparece como líder); mas também colecionando
inúmeros detratores que viam nele nada mais que uma fraude, um músico menor que
não sabia tocar seu instrumento (como um enciumado Miles Davis que de repente
não era mais o centro das atenções).
Reza a lenda que
Coleman, numa das muitas jam sessions de seus anos de formação, foi interpelado
pelos outros instrumentista por estar “tocando errado”. De fato! Ao ler as
partituras, os músicos repararam que ele não estava transpondo as notas como se
esperaria que um saxofonista o fizesse – o sax alto é afinado em mi bemol e não
em dó. Era como se ele tocasse uma melodia paralela, que se chocava com o campo
harmônico estabelecido pelo encadeamento de acordes. O que era ouvido pelos
demais como desafinação soava aos ouvidos de Ornette como natural. Esse
paralelismo melódico foi depois estruturado num método de composição e
improvisação que o saxofonista chamou de “Harmolodics” – e, por sinal, esse
princípio era o que dava a força do duo Ornette Coleman/Don Cherry. Em resumo,
Coleman privilegiou a improvisação coletiva, a superação do centro tonal e da
progressão harmônica e subverteu a concepção rítmica de swing, ou seja, “apenas”
demoliu os pilares estéticos do jazz e o revolucionou ao abrir caminhos inteiramente
novos. Isso em 1959, quando o Ornette Coleman Quartet chegou a Nova Iorque para
uma lendária temporada no Five Spot Café, monopolizando a atenção de toda a
cena jazzística de então. Um estrondo tão imenso que encobriu inclusive um
certo “Kind of Blue” que fora lançado à época...
Manteve-se na
ativa, produzindo, procurando, arriscando-se e refletindo sobre música e seu
papel na sociedade até os últimos momentos de sua vida, conforme registra sua
vasta discografia, que traz em si alguns discos obrigatórios para qualquer ser
humano que manifeste o mínimo interesse por música: The Shape of Jazz to Come, Free
Jazz, Change of the Century, This is Our Music. Um gênio dentre uns
poucos na música contemporânea que deixa um legado inestimável para a humanidade.
Particularmente,
tive a sorte de ainda conseguir tê-lo visto em ação. Foi em novembro de 2010
que assisti a um Ornette já velhinho, lânguido, é verdade, mas nem por isso
menos comprometido com a comunhão espiritual que nasce da música, com seu
projeto Sound Grammar a por tudo abaixo. Quanta profundidade expressiva,
diálogo, riscos, beleza e complexidade. Quatro músicos respirando como um só,
comandados por uma racionalidade inquieta e amparados por uma emotividade
absolutamente humana.
Foi-se um mestre
que se alimentava daquilo que o historiador Peter Gay chama de “fascínio da
heresia”: aquele impulso atávico de se por em xeque, de manipular o proibido,
de negar o cânone e de criar o novo. O mundo perde bastante com seu retorno ao
éter.
R.I.P.
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