Acredito que alguns filmes
sem pretensões aparentes podem estimular discussões importantes sobre a vida
cotidiana. Assisti novamente a Agentes do
Destino (Adjustment Bureau – 2011), filme exibido numa dessas TV’s por
assinatura. Dirigido e adaptado para as telas por George Nolfi (um dos
roteiristas de Ultimato Bourne), o Thriller se inspira no conto Adjustment
Team, publicado em 1954 pelo escritor Philip K. Dick, sendo este um dos grandes
representantes da literatura Science-Fiction
norte-americana. Para termos noção da importância de Dick, outros filmes como O Vingador do Futuro, Minority Report e O Homem Duplo são também inspirados nos seus contos. Somado ao
remake de O Vingador do Futuro (estrelado neste ano por Colin Farrell), Agentes
do Destino é um dos mais recentes filmes baseados na literatura de Dick e
lançado então por Hollywood.
Traçando um paralelo
entre o conto de Dick e o filme Agentes do Destino, eu diria que o primeiro é
bem mais consistente. Embora qualquer comparação entre um filme de 106 minutos
e um conto de 15 páginas tenha lá suas complexidades (caso consideremos a
relatividade do tempo e o formato distinto entre ambas as mídias), ainda sim
apostaria mais na consistência do texto de Dick, tanto pela forma como ele
trata os absurdos da existência humana como pelo modo que resolve (ou não) as
questões do controle das instituições burocráticas sobre a vida. Os escritos de
Dick não apelam para um desfecho redondo e palatável, ao contrário do romance
Hollywoodiano, que ainda insiste na tônica do final feliz.
O conto Adjustment Team e o filme Adjustment Bureau (Agentes do Destino) possibilitam
questões fundamentais, que tanto estão postas em comum ou em diferenciação.
Assim, refletirei sobre algumas delas.
1 – A Burocracia
É preciso que numa
Burocracia haja um quadro institucional de pessoas que se encontrem nas
condições de cobrar, fiscalizar e até punir os descumprimentos e desajustes causados
por outras. Sobre isso, o grande Max Weber debulhou a sua sociologia com
esmero. Assim, quem está de fora deste aparelho repressor e controlador aparece
em desvantagem. A prova é que no conto e no filme, as figuras mais centrais
aparecem coibidas pela Burocracia, pois se encontram alheias ao seu corpo de
funcionários.
No conto de Dick, a
figura central é a de Ed Fletcher (um simples vendedor imerso no capitalismo).
Na adaptação do filme Agentes do Destino, a figura central é a de David Norris
(um sujeito que cai nas graças do público nova-iorquino e que na trama perdeu o
pai, a mãe e o irmão precocemente). De modo incrível, David Norris
(interpretado por Matt Damon) se tornou um jovem promissor e forte candidato na
corrida para o Senado. Mas o que acontece? Assim como todas as pessoas do
mundo, Fletcher (no conto) e Norris (no filme) possuem suas vidas monitoradas
por uma grande empresa secreta, então ocupada em planejar e controlar o destino
de cada ser humano. Os seus funcionários são os agentes do destino, fiscais do
funcionamento e das múltiplas ações do planeta desempenhadas pelas pessoas
comuns. Os agentes do destino atuam em uma empresa fortemente hierarquizada e montada
conforme a distribuição de cargos dos seus funcionários.
Enquanto no conto de
Philip K. Dick a empresa é chefiada pelo Velho
(Oldman) e que ainda estabelece um diálogo com Ed Fletcher, no filme Agentes do
Destino, a figura-chefe se chama O Cabeça,
que nunca aparece para David Norris. Aqui, Norris parece mais próximo da figura
de Joseph K. (do livro O Processo, escrito por Franz Kafka). Assim como Norris,
Joseph K. não tem acesso ao líder da empresa na trama kafkiana. Norris e Joseph
K. apenas são repreendidos, perseguidos, e pressionados pelos funcionários de
um dispositivo burocrático.
O fator ainda mais complicador
no filme Agentes do Destino é a relação entre a Burocracia e a Religião. Nele, Deus
é a Burocracia e os anjos são os agentes do destino. Deus é o Cabeça, o senhor
da instituição que controla o Destino. E o filme leva esta metáfora adiante.
Porém, neste ponto nos deparamos com uma tensão entre o Destino e o Acaso.
O Destino é controlado
pela Burocracia. Mas para resolver os limites do Destino e de sua eficácia, o
filme considera a possibilidade do Acaso, sendo este tudo aquilo que foge ao
cálculo e ao monitoramento do Destino. O suicídio, por exemplo, seria um Acaso.
Aparentemente, Deus só daria a conta e a condição do Destino e não incidiria
sobre o acaso. Se Deus-Burocracia não influencia sobre o suicídio, o suicídio é
O Acaso e o Acaso é um ponto cego no funcionamento da Burocracia. Uma espécie
de Bug.
No filme, David Norris
encontra a sua amada Elise Sellas (Emily Blunt) devido a um erro no
monitoramento do seu Destino, portanto, pelo mero Acaso. Porém, esse mesmo
Acaso funciona e nutre uma paixão entre David Norris e Elise Sellas. Cabe agora
à Burocracia impedir essa paixão porque ela significa um problema para o funcionamento
eficaz do Destino.
2 – O Dispositivo
Por que Ed Fletcher é
perseguido no conto e David Norris é no filme por funcionários da Burocracia? Porque
tanto Fletcher como Norris vão contra suas regras de funcionamento e
eficiência. Essas regras são a garantia de um destino programado e monitorado. E
esses destinos são controlados por dispositivos. Cabe aqui uma reflexão sobre o
conceito de dispositivo.
A filosofia de Giorgio
Agamben é esclarecedora para isso. Se a palavra “dispositivo” pode significar
um elemento jurídico (um juízo que contém a decisão separada da motivação)
tecnológico (as partes e o próprio mecanismo de uso de uma máquina) e militar
(conjunto de meios dispostos em conformidade com um plano) todos esses
significados podem se combinar com a noção de poder. O que diz Agamben sobre
esta relação? Que um dispositivo pode ser qualquer
coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar,
interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões
e os discursos dos seres viventes.
Portanto, Agamben
considera como dispositivos não apenas as instituições (escolas, prisões e a
própria Burocracia), mais além: a caneta,
a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação,
os computadores, os telefones celulares e – por que não – a própria linguagem.
Neste raciocínio, o
funcionário encarregado por controlar o destino de Ed Fletcher se vale de um
dispositivo no conto de Philip K. Dick, pois ele utiliza um “livro de
instrução” repleto de códigos e colunas. O conteúdo desse livro traz um jogo
constante diante do tempo; uma infinita rede de seções, quadros e linhas,
transcritos por uma luz azul que altera constantemente as formas e os conteúdos
a cada momento vivido por Fletcher.
Na adaptação para o
cinema, o livro de instrução se torna um tablet,
cujo uso cabe aos funcionários da Burocracia como recurso de controle sobre o
destino de David Norris. É neste ponto onde reside um paradoxo crucial
levantado por Giorgio Agamben: nas sociedades que declaram a liberdade e a
pluralidade na subjetivação dos seus indivíduos, simbolizada pelo uso da
tecnologia (tablets, smartphones, redes sociais, câmeras, dentre outros) esses
indivíduos não se tornam mais livres – pelo contrário, a nossa submissão a uma
lógica de dominação e de poder continua materializada, só que agora mais
acentuada sob os moldes tecnológicos desses dispositivos. A tecnologia,
travestida na bandeira de uma liberdade acaba por funcionar como dispositivos
de nosso próprio monitoramento!
No filme, o caráter
aprisionador e repressor da Burocracia atinge não apenas os que são perseguidos,
como também aqueles que perseguem. A Burocracia submete todos em sua hierarquia
fragmentária, de tal modo que os seus funcionários intermediários desconhecem
de onde ou quando vem a ordem, ou por que vem e quem envia a ordem. São
funcionários semelhantes à figura do espancador de O Processo em Kafka, onde a função do espancador é a de espancar
porque cumpre ordens vindas de algum lugar, mas sem saber onde fica este lugar
ou quem o administra.
3 – O Livre-Arbítrio
Este ponto é explorado
ao longo do filme Agentes do Destino e não no conto de Philip K. Dick. Mas ele
não deixa de ter a sua relevância.
A aparente
impossibilidade do amor entre David Norris e Elise Sellas se põe como um
interdito diante do dispositivo da Burocracia. E se a Burocracia é o Deus,
sagrado por excelência, o que resta para Norris senão profanar?
Voltando para Agamben,
o conceito de profanação advém de algumas escrituras jurídicas e religiosas,
onde sagrado é tudo aquilo que pertence ao Divino, enquanto profano é tudo aquilo
que pertence ao prosaico, ao livre uso
dos homens. Ora, ser livre pode sugerir o livre-arbítrio numa seara mais
religiosa! Ao saber do impedimento do seu romance com Elise Sellas, David
Norris questiona a um agente do destino onde estaria o seu livre-arbítrio. E o
agente, por sua vez, responde que Deus resolveu tirar o livre-arbítrio devido
às constantes guerras empreendidas na primeira metade do século XX, sendo a
crise dos mísseis entre os Estados Unidos e a União Soviética testemunhadas em
Cuba, o cume do risco sobre a existência da raça humana. Deus, portanto, vetou o
livre-arbítrio como fruto de um sacrifício, de um dispositivo que realiza e regula a separação entre o sagrado e o
profano.
Se o sacrifício
imputado sobre os seres humanos é a perda do livre-arbítrio, como então
profanar senão confrontando a Burocracia contra ela mesma e usando o Deus
contra o próprio Deus?
Em suas Confissões, Santo Agostinho sinalizara
para os limites e paradoxos do livre-arbítrio. Disse o bispo de Tagaste:
Não
podeis ser obrigado por força, seja ao que for, porque em Vós a vontade não é
maior do que o poder. Porém, seria maior, se Vós mesmo fôsseis maior que Vós
mesmo. Mas a vontade e o poder de Deus são o próprio Deus. Para Vós que tudo
conheceis existe acaso alguma coisa imprevista?
Num plano agostiniano,
talvez não haja o imprevisto para os olhos de Deus, pois mesmo nas condições em
que o Destino se sobrepõe ao Acaso, a nossa vontade de viver, de transformar e
de resistir ao que está imposto, controlado e até legislado num mundo
conservador pode atuar como fruto de uma vontade do próprio Deus, então oculta
nas suas próprias leis. Eis aqui outro paradoxo! E creio que Agamben o
explicite de modo mais profundo:
Não
só há religião sem separação, mas toda separação contém ou conserva em si um
núcleo genuinamente religioso (...). aquilo que foi ritualmente separado pode
ser restituído pelo rito à esfera profana. A profanação é o contradispositivo
que restitui ao uso comum aquilo que o sacrifício tinha separado e dividido.
No filme, o
contradispositivo é o direito ao livre-arbítrio buscado por David Norris e
materializado na sua vontade em
partilhar o seu amor com Elise Sellas – não importa se o possa ou não diante dos
olhos da Burocracia e do próprio Deus. E, afinal, é Deus quem parece ouvir e
reconsiderar tal vontade de Norris, ao consentir o amor entre ambos e ao
refazer o lugar do seu sagrado.
À luz de uma discussão
como esta, só me resta afirmar que é preciso profanar, pois diante de tantos
tempos vividos, aquilo que nos parece sagrado pode ser, pelo contrário, por
demais conservador. E isso também se aplica à ideia de Deus e de Mundo!
Matador, André! Não há outra forma de descrever. Já é a terceira vez que leio essa postagem de tão rica. Também assisti ao filme "Os Agentes do Destino" com a mesma descontração numa tarde de sábado "numa dessas TV's". Achei o enredo bem interessante, mas depois de sua análise, senti-me estimulado a revê-lo com mais atenção! Um abraço!
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