segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Burocracia: Destino Hollywood - por André Maranhão Santos



Acredito que alguns filmes sem pretensões aparentes podem estimular discussões importantes sobre a vida cotidiana. Assisti novamente a Agentes do Destino (Adjustment Bureau – 2011), filme exibido numa dessas TV’s por assinatura. Dirigido e adaptado para as telas por George Nolfi (um dos roteiristas de Ultimato Bourne), o Thriller se inspira no conto Adjustment Team, publicado em 1954 pelo escritor Philip K. Dick, sendo este um dos grandes representantes da literatura Science-Fiction norte-americana. Para termos noção da importância de Dick, outros filmes como O Vingador do Futuro, Minority Report e O Homem Duplo são também inspirados nos seus contos. Somado ao remake de O Vingador do Futuro (estrelado neste ano por Colin Farrell), Agentes do Destino é um dos mais recentes filmes baseados na literatura de Dick e lançado então por Hollywood.

Traçando um paralelo entre o conto de Dick e o filme Agentes do Destino, eu diria que o primeiro é bem mais consistente. Embora qualquer comparação entre um filme de 106 minutos e um conto de 15 páginas tenha lá suas complexidades (caso consideremos a relatividade do tempo e o formato distinto entre ambas as mídias), ainda sim apostaria mais na consistência do texto de Dick, tanto pela forma como ele trata os absurdos da existência humana como pelo modo que resolve (ou não) as questões do controle das instituições burocráticas sobre a vida. Os escritos de Dick não apelam para um desfecho redondo e palatável, ao contrário do romance Hollywoodiano, que ainda insiste na tônica do final feliz.

O conto Adjustment Team e o filme Adjustment Bureau (Agentes do Destino) possibilitam questões fundamentais, que tanto estão postas em comum ou em diferenciação. Assim, refletirei sobre algumas delas.

1 – A Burocracia

É preciso que numa Burocracia haja um quadro institucional de pessoas que se encontrem nas condições de cobrar, fiscalizar e até punir os descumprimentos e desajustes causados por outras. Sobre isso, o grande Max Weber debulhou a sua sociologia com esmero. Assim, quem está de fora deste aparelho repressor e controlador aparece em desvantagem. A prova é que no conto e no filme, as figuras mais centrais aparecem coibidas pela Burocracia, pois se encontram alheias ao seu corpo de funcionários. 

No conto de Dick, a figura central é a de Ed Fletcher (um simples vendedor imerso no capitalismo). Na adaptação do filme Agentes do Destino, a figura central é a de David Norris (um sujeito que cai nas graças do público nova-iorquino e que na trama perdeu o pai, a mãe e o irmão precocemente). De modo incrível, David Norris (interpretado por Matt Damon) se tornou um jovem promissor e forte candidato na corrida para o Senado. Mas o que acontece? Assim como todas as pessoas do mundo, Fletcher (no conto) e Norris (no filme) possuem suas vidas monitoradas por uma grande empresa secreta, então ocupada em planejar e controlar o destino de cada ser humano. Os seus funcionários são os agentes do destino, fiscais do funcionamento e das múltiplas ações do planeta desempenhadas pelas pessoas comuns. Os agentes do destino atuam em uma empresa fortemente hierarquizada e montada conforme a distribuição de cargos dos seus funcionários. 

Enquanto no conto de Philip K. Dick a empresa é chefiada pelo Velho (Oldman) e que ainda estabelece um diálogo com Ed Fletcher, no filme Agentes do Destino, a figura-chefe se chama O Cabeça, que nunca aparece para David Norris. Aqui, Norris parece mais próximo da figura de Joseph K. (do livro O Processo, escrito por Franz Kafka). Assim como Norris, Joseph K. não tem acesso ao líder da empresa na trama kafkiana. Norris e Joseph K. apenas são repreendidos, perseguidos, e pressionados pelos funcionários de um dispositivo burocrático. 

O fator ainda mais complicador no filme Agentes do Destino é a relação entre a Burocracia e a Religião. Nele, Deus é a Burocracia e os anjos são os agentes do destino. Deus é o Cabeça, o senhor da instituição que controla o Destino. E o filme leva esta metáfora adiante. Porém, neste ponto nos deparamos com uma tensão entre o Destino e o Acaso. 

O Destino é controlado pela Burocracia. Mas para resolver os limites do Destino e de sua eficácia, o filme considera a possibilidade do Acaso, sendo este tudo aquilo que foge ao cálculo e ao monitoramento do Destino. O suicídio, por exemplo, seria um Acaso. Aparentemente, Deus só daria a conta e a condição do Destino e não incidiria sobre o acaso. Se Deus-Burocracia não influencia sobre o suicídio, o suicídio é O Acaso e o Acaso é um ponto cego no funcionamento da Burocracia. Uma espécie de Bug.  

No filme, David Norris encontra a sua amada Elise Sellas (Emily Blunt) devido a um erro no monitoramento do seu Destino, portanto, pelo mero Acaso. Porém, esse mesmo Acaso funciona e nutre uma paixão entre David Norris e Elise Sellas. Cabe agora à Burocracia impedir essa paixão porque ela significa um problema para o funcionamento eficaz do Destino. 

2 – O Dispositivo

Por que Ed Fletcher é perseguido no conto e David Norris é no filme por funcionários da Burocracia? Porque tanto Fletcher como Norris vão contra suas regras de funcionamento e eficiência. Essas regras são a garantia de um destino programado e monitorado. E esses destinos são controlados por dispositivos. Cabe aqui uma reflexão sobre o conceito de dispositivo.

A filosofia de Giorgio Agamben é esclarecedora para isso. Se a palavra “dispositivo” pode significar um elemento jurídico (um juízo que contém a decisão separada da motivação) tecnológico (as partes e o próprio mecanismo de uso de uma máquina) e militar (conjunto de meios dispostos em conformidade com um plano) todos esses significados podem se combinar com a noção de poder. O que diz Agamben sobre esta relação? Que um dispositivo pode ser qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes.    
     
Portanto, Agamben considera como dispositivos não apenas as instituições (escolas, prisões e a própria Burocracia), mais além: a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e – por que não – a própria linguagem

Neste raciocínio, o funcionário encarregado por controlar o destino de Ed Fletcher se vale de um dispositivo no conto de Philip K. Dick, pois ele utiliza um “livro de instrução” repleto de códigos e colunas. O conteúdo desse livro traz um jogo constante diante do tempo; uma infinita rede de seções, quadros e linhas, transcritos por uma luz azul que altera constantemente as formas e os conteúdos a cada momento vivido por Fletcher. 

Na adaptação para o cinema, o livro de instrução se torna um tablet, cujo uso cabe aos funcionários da Burocracia como recurso de controle sobre o destino de David Norris. É neste ponto onde reside um paradoxo crucial levantado por Giorgio Agamben: nas sociedades que declaram a liberdade e a pluralidade na subjetivação dos seus indivíduos, simbolizada pelo uso da tecnologia (tablets, smartphones, redes sociais, câmeras, dentre outros) esses indivíduos não se tornam mais livres – pelo contrário, a nossa submissão a uma lógica de dominação e de poder continua materializada, só que agora mais acentuada sob os moldes tecnológicos desses dispositivos. A tecnologia, travestida na bandeira de uma liberdade acaba por funcionar como dispositivos de nosso próprio monitoramento!
No filme, o caráter aprisionador e repressor da Burocracia atinge não apenas os que são perseguidos, como também aqueles que perseguem. A Burocracia submete todos em sua hierarquia fragmentária, de tal modo que os seus funcionários intermediários desconhecem de onde ou quando vem a ordem, ou por que vem e quem envia a ordem. São funcionários semelhantes à figura do espancador de O Processo em Kafka, onde a função do espancador é a de espancar porque cumpre ordens vindas de algum lugar, mas sem saber onde fica este lugar ou quem o administra. 

3 – O Livre-Arbítrio

Este ponto é explorado ao longo do filme Agentes do Destino e não no conto de Philip K. Dick. Mas ele não deixa de ter a sua relevância. 

A aparente impossibilidade do amor entre David Norris e Elise Sellas se põe como um interdito diante do dispositivo da Burocracia. E se a Burocracia é o Deus, sagrado por excelência, o que resta para Norris senão profanar? 

Voltando para Agamben, o conceito de profanação advém de algumas escrituras jurídicas e religiosas, onde sagrado é tudo aquilo que pertence ao Divino, enquanto profano é tudo aquilo que pertence ao prosaico, ao livre uso dos homens. Ora, ser livre pode sugerir o livre-arbítrio numa seara mais religiosa! Ao saber do impedimento do seu romance com Elise Sellas, David Norris questiona a um agente do destino onde estaria o seu livre-arbítrio. E o agente, por sua vez, responde que Deus resolveu tirar o livre-arbítrio devido às constantes guerras empreendidas na primeira metade do século XX, sendo a crise dos mísseis entre os Estados Unidos e a União Soviética testemunhadas em Cuba, o cume do risco sobre a existência da raça humana. Deus, portanto, vetou o livre-arbítrio como fruto de um sacrifício, de um dispositivo que realiza e regula a separação entre o sagrado e o profano.

Se o sacrifício imputado sobre os seres humanos é a perda do livre-arbítrio, como então profanar senão confrontando a Burocracia contra ela mesma e usando o Deus contra o próprio Deus?
Em suas Confissões, Santo Agostinho sinalizara para os limites e paradoxos do livre-arbítrio. Disse o bispo de Tagaste:

Não podeis ser obrigado por força, seja ao que for, porque em Vós a vontade não é maior do que o poder. Porém, seria maior, se Vós mesmo fôsseis maior que Vós mesmo. Mas a vontade e o poder de Deus são o próprio Deus. Para Vós que tudo conheceis existe acaso alguma coisa imprevista?

Num plano agostiniano, talvez não haja o imprevisto para os olhos de Deus, pois mesmo nas condições em que o Destino se sobrepõe ao Acaso, a nossa vontade de viver, de transformar e de resistir ao que está imposto, controlado e até legislado num mundo conservador pode atuar como fruto de uma vontade do próprio Deus, então oculta nas suas próprias leis. Eis aqui outro paradoxo! E creio que Agamben o explicite de modo mais profundo:

Não só há religião sem separação, mas toda separação contém ou conserva em si um núcleo genuinamente religioso (...). aquilo que foi ritualmente separado pode ser restituído pelo rito à esfera profana. A profanação é o contradispositivo que restitui ao uso comum aquilo que o sacrifício tinha separado e dividido.

No filme, o contradispositivo é o direito ao livre-arbítrio buscado por David Norris e materializado na sua vontade em partilhar o seu amor com Elise Sellas – não importa se o possa ou não diante dos olhos da Burocracia e do próprio Deus. E, afinal, é Deus quem parece ouvir e reconsiderar tal vontade de Norris, ao consentir o amor entre ambos e ao refazer o  lugar do seu sagrado.

À luz de uma discussão como esta, só me resta afirmar que é preciso profanar, pois diante de tantos tempos vividos, aquilo que nos parece sagrado pode ser, pelo contrário, por demais conservador. E isso também se aplica à ideia de Deus e de Mundo!

Um comentário:

  1. Matador, André! Não há outra forma de descrever. Já é a terceira vez que leio essa postagem de tão rica. Também assisti ao filme "Os Agentes do Destino" com a mesma descontração numa tarde de sábado "numa dessas TV's". Achei o enredo bem interessante, mas depois de sua análise, senti-me estimulado a revê-lo com mais atenção! Um abraço!

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