segunda-feira, 13 de agosto de 2012

Adega ou o Dia em que Conheci Tony Yucatan - por Bruno Vitorino


Era um dia ensolarado. Surpreendentemente ensolarado para o inverno imprevisível do Recife. Talvez por isso não estivesse tão quente e a brisa parecesse quase preguiçosa ao acariciar a copa das árvores. O relógio do celular marcava exatas 11:53 e a revolução gástrica que se desenrolava em minhas entranhas me fizera ter a certeza de que a fome chegara e não estava para brincadeiras. Depois de uma manhã trabalhosa e cansativa – mais uma entre tantas outras passadas e por vir – resolvi gastar meu horário de almoço da melhor maneira possível e me permiti a extravagância de não comer mais uma marmita naquela segunda-feira. Lembrei-me então do que Giba Carvalho havia me dito sobre o restaurante português Adega e seus pratos muito bons a preços bem razoáveis. Resolvi arriscar.
Quando entrei, não havia cliente algum. Num amplo salão com mesas postas, dois garçons conversavam com um senhor franzino de terno num clima amistoso. “Me lasquei. Ou é tudo muito caro ou é tudo muito ruim!”, pensei de imediato. Notei um piano Fritz Dobbert de meia cauda... Jazia encoberto num canto do salão, como se sua presença ali causasse algum constrangimento. Fiquei desconfiado... Optei por uma mesa longe dele, porque se há algo que realmente não aturo é o mórbido “repertório restaurante padrão” que se costuma ouvir nesses ambientes. Vasculhei o cardápio e depois de resolver a equação “preço x vontade = prato do dia”, fiz meu pedido: um arroz de polvo e uma coca-cola.
Conversava as costumeiras amenidades com os amigos Mário Alves e Sérgio Costa, quando, de repente, ouvi um acorde menor. Não sabia ao certo qual era, mas tinha certeza de que era menor. Os harmônicos inerentes ao piano acústico chamaram minha atenção. Olhei para onde ele estava e lá encontrei o “senhor franzino de terno” com o rosto calmo a atacar com delicadeza as teclas. O tema era o exaustivamente batido Besame Mucho, mas havia algo diferente em sua interpretação... “Esse cabra tem uma expressividade danada”, comentei. Parei de falar e me concentrei na música. Percebi então que sua abordagem dessa composição presente em todos os casamentos e bailes de formatura – quando as orquestras começam o bloco latino do repertório – privilegiava encadeamentos harmônicos complexos. Cromatismos, voicings cheios de tensões, substituição de acordes dominantes, acordes de sexta napolitana, resoluções deceptivas; tudo estava acontecendo ali na minha frente na hora do almoço numa segunda-feira aparentemente comum e despretensiosa! Fiquei boquiaberto!
O almoço fora servido, contudo meu cérebro estava dividido entre o deleite de devorar (a fome era implacável nesse instante) o prato e a curiosidade de ouvir aonde o pianista iria chegar. Veio-me então uma ideia: pedir uma música. Nunca fiz isso em toda a minha vida, mas aquela me pareceu a oportunidade para tanto. Chamei o garçom e lhe perguntei discretamente sobre a possibilidade de solicitar ao pianista um tema. “É totalmente possível, senhor.” Então, num pedaço de papel, escrevi: “O senhor toca alguma coisa do Thelonious Monk?” Fiquei esperando a reação do instrumentista ao ler meu pedido. Estate, a bela composição dos italianos Bruno Martino e Bruno Bringhetti, era tocada em rubato no instante que o bilhete fora entregue. Pelo menear de cabeça e o sorriso irrefreado, notei que minha solicitação fora recebida com muita alegria pelo músico. Enfim, alguém o ouvia tocar!
Um fechado acorde Ebm ecoou. Era Round ‘Midnight numa interpretação surpreendente ad libitum! Foram dois giros sobre forma da composição: o primeiro mais focado na exposição do tema e o segundo mais empenhado em subvertê-lo harmonicamente. Não houve improvisação, porém as nuances na dinâmica do andamento e a alternância expressiva que abarcava do p ao fff davam à interpretação do músico uma força que eu não esperaria encontrar num restaurante. Particularmente fiquei entorpecido com a rearmonização feita no “A” do tema no trecho em que a progressão original faz “Bm7 E7 Bbm7 Eb7” e em todo o “B” no último chorus. Acordes carregados – que até agora estou a procurar – levavam a melodia a uma paisagem bela e longínqua. O mesmo Ebm que iniciou o tema pôs o ponto final na releitura. Para o espanto de alguns clientes, aplaudi.
- De onde você conhece Thelonious Monk?, foi o que o pianista primeiro quis saber.
- Monk é uma de minhas principais referências.
- Você é músico?!
- Eu toco num trio de jazz e tenho um grupo de música livre.
- Que ótimo! É bom saber que existem jovens músicos interessados em tocar e compor essa música.
- Qual o nome do senhor?
- Tony Yucatan.
- Fiquei muito feliz em conhecer o senhor e mais feliz ainda por ter sido surpreendido com sua interpretação tão pessoal desse tema. Obrigado!

As segundas costumam ser vinculadas ao esforço do recomeço da rotina e à indolência que nasce da necessidade de se entrar no ritmo. Já a música de restaurante é habitualmente marcada pela insipidez da banalidade e pela esterilidade emotiva dos instrumentistas que tocam para uma plateia que não ouve. Geralmente é assim. Porém, quando o inusitado nos toma de súbito nas ocasiões mais corriqueiras e desvela o manto burocrático da rotina, percebemos uma beleza oculta que reside no indeterminado. É só prestar atenção!

6 comentários:

  1. "As segundas costumam ser vinculadas ao esforço do recomeço da rotina e à indolência que nasce da necessidade de se entrar no ritmo. Já a música de restaurante é habitualmente marcada pela insipidez da banalidade e pela esterilidade emotiva dos instrumentistas que tocam para uma plateia que não ouve. Geralmente é assim. Porém, quando o inusitado nos toma de súbito nas ocasiões mais corriqueiras e desvela o manto burocrático da rotina, percebemos uma beleza oculta que reside no indeterminado. É só prestar atenção!"

    Grande Brunão! Excelente e fico feliz que uma indicação minha tenha tido esta importância. Vamos qualquer hora "traçar" aquele velho "bacalha" por lá...de preferência o Bacalhau Yucatan!

    Abraço.

    Giba.

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  2. Bicho, quando acontece algo assim, parece que a semana do cara vai ser a melhor do ano! Gostei muito e vou tentar seguir a sugestão. Grande abraço, meu velho!

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  3. Um texto pequeno, mas significativo da apreensão da poesia, onde menos se espera! E por que você não faz desse encontro improvável algo mais que uma grata surpresa? Por que não convida esse pianista, que vaga pelo jazz moderno clássico e música instrumental de vários ritmos e sonoridades e faz uma jam com um trio consistente dedicado a tocar Monk com o fervor pernambucano que ele (Monk) infelizmente, não conheceu? Por que não?

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  4. Bruno, você discorreu de forma poética, um encontro inesperado com o senhor Tony Yucatan, nos remetendo a um momento maravilhoso, e, ao mesmo tempo, melancólico, ao reviver o grande Thelonius Monk, aguçando em nós, um desejo avassalador em compartilhar tamanha oportunidade. Só faltou nos dizer se a comida é boa, porque, a música, com certeza!
    Cristina Monteiro

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  5. Antonio Francisco 13 de agosto de 2012

    Um texto maravilhoso e poeticamente bem escrito, era como se estivessemos vivenciando aquele momento, com certeza esse texto nos "obriga" a conhecer o lugar e o músico.
    Parabéns Bruninho você não nega as origens.

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  6. Grande Bruno, seu texto é só encanto, bicho. Tem cheiro de conto e dos bons, meu caro. Arretado. Ficarei de olho no Adega a partir de agora. Abraço!

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