Era um dia ensolarado.
Surpreendentemente ensolarado para o inverno imprevisível do Recife. Talvez por
isso não estivesse tão quente e a brisa parecesse quase preguiçosa ao acariciar
a copa das árvores. O relógio do celular marcava exatas 11:53 e a revolução
gástrica que se desenrolava em minhas entranhas me fizera ter a certeza de que
a fome chegara e não estava para brincadeiras. Depois de uma manhã trabalhosa e
cansativa – mais uma entre tantas outras passadas e por vir – resolvi gastar
meu horário de almoço da melhor maneira possível e me permiti a extravagância
de não comer mais uma marmita naquela segunda-feira. Lembrei-me então do que
Giba Carvalho havia me dito sobre o restaurante português Adega e seus pratos
muito bons a preços bem razoáveis. Resolvi arriscar.
Quando entrei, não havia
cliente algum. Num amplo salão com mesas postas, dois garçons conversavam com
um senhor franzino de terno num clima amistoso. “Me lasquei. Ou é tudo muito
caro ou é tudo muito ruim!”, pensei de imediato. Notei um piano Fritz Dobbert
de meia cauda... Jazia encoberto num canto do salão, como se sua presença ali
causasse algum constrangimento. Fiquei desconfiado... Optei por uma mesa longe
dele, porque se há algo que realmente não aturo é o mórbido “repertório
restaurante padrão” que se costuma ouvir nesses ambientes. Vasculhei o cardápio
e depois de resolver a equação “preço x vontade = prato do dia”, fiz meu
pedido: um arroz de polvo e uma
coca-cola.
Conversava as costumeiras
amenidades com os amigos Mário Alves e Sérgio Costa, quando, de repente, ouvi
um acorde menor. Não sabia ao certo qual era, mas tinha certeza de que era
menor. Os harmônicos inerentes ao piano acústico chamaram minha atenção. Olhei
para onde ele estava e lá encontrei o “senhor franzino de terno” com o rosto
calmo a atacar com delicadeza as teclas. O tema era o exaustivamente batido Besame Mucho, mas havia algo diferente
em sua interpretação... “Esse cabra tem uma expressividade danada”, comentei. Parei
de falar e me concentrei na música. Percebi então que sua abordagem dessa
composição presente em todos os casamentos e bailes de formatura – quando as
orquestras começam o bloco latino do repertório – privilegiava encadeamentos
harmônicos complexos. Cromatismos, voicings
cheios de tensões, substituição de acordes dominantes, acordes de sexta
napolitana, resoluções deceptivas; tudo estava acontecendo ali na minha frente
na hora do almoço numa segunda-feira aparentemente comum e despretensiosa! Fiquei
boquiaberto!
O almoço fora servido,
contudo meu cérebro estava dividido entre o deleite de devorar (a fome era
implacável nesse instante) o prato e a curiosidade de ouvir aonde o pianista
iria chegar. Veio-me então uma ideia: pedir uma música. Nunca fiz isso em toda
a minha vida, mas aquela me pareceu a oportunidade para tanto. Chamei o garçom
e lhe perguntei discretamente sobre a possibilidade de solicitar ao pianista um
tema. “É totalmente possível, senhor.” Então, num pedaço de papel, escrevi: “O
senhor toca alguma coisa do Thelonious Monk?” Fiquei esperando a reação do
instrumentista ao ler meu pedido. Estate,
a bela composição dos italianos Bruno Martino e Bruno Bringhetti, era tocada em
rubato no instante que o bilhete fora
entregue. Pelo menear de cabeça e o sorriso irrefreado, notei que minha
solicitação fora recebida com muita alegria pelo músico. Enfim, alguém o ouvia
tocar!
Um fechado acorde Ebm ecoou.
Era Round ‘Midnight numa
interpretação surpreendente ad libitum!
Foram dois giros sobre forma da composição: o primeiro mais focado na exposição do tema e o segundo mais empenhado
em subvertê-lo harmonicamente. Não houve improvisação, porém as nuances na
dinâmica do andamento e a alternância expressiva que abarcava do p ao fff
davam à interpretação do músico uma força que eu não esperaria encontrar num
restaurante. Particularmente fiquei entorpecido com a rearmonização feita no “A”
do tema no trecho em que a progressão original faz “Bm7 E7 Bbm7 Eb7” e em todo
o “B” no último chorus. Acordes
carregados – que até agora estou a procurar – levavam a melodia a uma paisagem
bela e longínqua. O mesmo Ebm que iniciou o tema pôs o ponto final na
releitura. Para o espanto de alguns clientes, aplaudi.
- De onde você conhece Thelonious Monk?, foi o que o
pianista primeiro quis saber.
- Monk é uma de minhas principais referências.
- Você é músico?!
- Eu toco num trio de jazz e tenho um grupo de música
livre.
- Que ótimo! É bom saber que existem jovens músicos
interessados em tocar e compor essa música.
- Qual o nome do senhor?
- Tony Yucatan.
- Fiquei muito feliz em conhecer o senhor e mais feliz
ainda por ter sido surpreendido com sua interpretação tão pessoal desse tema.
Obrigado!
As segundas costumam ser vinculadas ao esforço do
recomeço da rotina e à indolência que nasce da necessidade de se entrar no
ritmo. Já a música de restaurante é habitualmente marcada pela insipidez da
banalidade e pela esterilidade emotiva dos instrumentistas que tocam para uma plateia
que não ouve. Geralmente é assim. Porém, quando o inusitado nos toma de súbito
nas ocasiões mais corriqueiras e desvela o manto burocrático da rotina, percebemos
uma beleza oculta que reside no indeterminado. É só prestar atenção!
"As segundas costumam ser vinculadas ao esforço do recomeço da rotina e à indolência que nasce da necessidade de se entrar no ritmo. Já a música de restaurante é habitualmente marcada pela insipidez da banalidade e pela esterilidade emotiva dos instrumentistas que tocam para uma plateia que não ouve. Geralmente é assim. Porém, quando o inusitado nos toma de súbito nas ocasiões mais corriqueiras e desvela o manto burocrático da rotina, percebemos uma beleza oculta que reside no indeterminado. É só prestar atenção!"
ResponderExcluirGrande Brunão! Excelente e fico feliz que uma indicação minha tenha tido esta importância. Vamos qualquer hora "traçar" aquele velho "bacalha" por lá...de preferência o Bacalhau Yucatan!
Abraço.
Giba.
Bicho, quando acontece algo assim, parece que a semana do cara vai ser a melhor do ano! Gostei muito e vou tentar seguir a sugestão. Grande abraço, meu velho!
ResponderExcluirUm texto pequeno, mas significativo da apreensão da poesia, onde menos se espera! E por que você não faz desse encontro improvável algo mais que uma grata surpresa? Por que não convida esse pianista, que vaga pelo jazz moderno clássico e música instrumental de vários ritmos e sonoridades e faz uma jam com um trio consistente dedicado a tocar Monk com o fervor pernambucano que ele (Monk) infelizmente, não conheceu? Por que não?
ResponderExcluirBruno, você discorreu de forma poética, um encontro inesperado com o senhor Tony Yucatan, nos remetendo a um momento maravilhoso, e, ao mesmo tempo, melancólico, ao reviver o grande Thelonius Monk, aguçando em nós, um desejo avassalador em compartilhar tamanha oportunidade. Só faltou nos dizer se a comida é boa, porque, a música, com certeza!
ResponderExcluirCristina Monteiro
Antonio Francisco 13 de agosto de 2012
ResponderExcluirUm texto maravilhoso e poeticamente bem escrito, era como se estivessemos vivenciando aquele momento, com certeza esse texto nos "obriga" a conhecer o lugar e o músico.
Parabéns Bruninho você não nega as origens.
Grande Bruno, seu texto é só encanto, bicho. Tem cheiro de conto e dos bons, meu caro. Arretado. Ficarei de olho no Adega a partir de agora. Abraço!
ResponderExcluir