Nesta segunda edição do ano na coluna
“Variações em 5/4”, os nossos editores comentam um dos trabalhos mais premiados
de 2013: “Random Access Memories” da dupla Daft Punk.
- Fernando Lucchesi:
Não
conheço praticamente nada do Daft Punk.
Acho que excluindo “One More Time” não conheço mais nada deles. Dito
isso, como o tema deste “Variações em 5/4” era o Daft Punk e o enorme sucesso
que eles obtiveram na última edição do Grammy Awards decidi falar
especificamente sobre o disco “Random Acess Memories”, álbum que está na lista
de melhores do ano passado em praticamente todos os meios de comunicação.
Reconheço
de início que é um disco excelente, muito acima da média do que é produzido
hoje. No entanto, é um disco que pode enganar quem procura 13 músicas do
calibre pop de “Get Lucky” (indiscutivelmente um dos maiores sucessos
radiofônicos de 2013). O disco oscila muito entre um revisionismo da chamada disco music e um som eletrônico mais
contemporâneo. E é nesse som eletrônico contemporâneo onde reside o maior
problema do disco.
O
ponto alto do disco são justamente as músicas que buscam resgatar a disco music dos anos 70. Muito espertamente, os dois músicos franceses
chamaram um dos precursores daquela guitarra suingada característica da disco, Nile Rodgers (ex-integrante do
Chic). Não à toa, as faixas mais dançantes do disco contém a guitarra de
Rodgers: “Give Life Back to Music”,”Lose Yourself to Dance” e a contagiante “Get Lucky”. O resto do disco
é bastante irregular. Traz uma justíssima homenagem a um dos artífices da
música eletrônica, Giorgio Moroder (Giorgio by Moroder), a alucinante
“Contact”, mas também tem coisas enfadonhas como “The Game of Love”, “Touch” e
“Within”. Mas mesmo essas músicas mais lentas (feitas sobre encomenda pra o
momento “chill out” da balada) não comprometem o resultado final desse disco,
que merecidamente ganhou uma penca de Grammys. Já quanto à representatividade
do prêmio Grammy para a música é outra história...
- Giba Carvalho:
Random
Access Memories trouxe de volta o romantismo à música eletrônica e me devolveu o prazer
de ouvir um disco do gênero novamente. Thomas Bangalter e Guy Manoel de
Homem-Cristo, inegavelmente, tiveram muito cuidado na produção deste álbum
tornando-o um disco de fácil audição. Mesmo para aqueles, que assim como eu,
repudiam tudo que foi produzido na música eletrônica de 15 anos para cá. O
disco nada mais é do que um exercício de repetição do que já foi feito na época
em que a música eletrônica era diferenciada dos “bate-estaca” e “ruídos” insuportáveis
do que se toca nas raves. “Não é
o puritanismo autêntico, é a forma autêntica de como se trabalhar a repetição”.
Tenho
que destacar a guitarra funky de Nile
Rodgers, que soma sobremaneira à concepção geral do trabalho e várias outras
participações especiais – Julian Casablancas, na excelente “Instant Crush” e,
principalmente, de Pharrel Williams nas pegajosas “Lose Yourself to Dance” (o
preparo do estilingue) e “Get Lucky” (a pedrada do disco). “Giorgio by Moroder”
é uma faixa muito interessante, porque inicia com um depoimento de um dos papas
da música eletrônica e termina “grooviada” com o melhor das discotecas dos anos
80. Estas são o destaque do disco para mim. E, não pense você, que um trabalho
bom não tem coisas desprezíveis. Em alguns pontos, a dupla parece perder a
inspiração e o álbum cai muito de qualidade. “Touch”, “The Game of Love” e
“Within” são dispensáveis. Outra coisa que percebo claramente é a duração do
álbum (74 minutos). A meu ver muito longo e em alguns pontos, até cansativo.
Embora
com estas ressalvas supracitadas, reconheço que o trabalho da dupla francesa é
um belo trabalho POP e merece destaque!
- André Maranhão:
Quando
lidamos com uma música marcada pela grande quantidade de efeitos eletrônicos,
entramos num contexto onde o engenheiro de som e o DJ passam a ter a mesma ou
até mais celebração do que os músicos. Isso é algo relativamente esperado, se
levarmos em conta que no campo da arte, os indivíduos redefinem suas práticas
por meio das convenções e dos recursos que cada estilo, gênero e expressão
artística demandam. Neste sentido, o Acid Jazz, a Drumin’n’Bossa, o Brazilectro
e o Tecno, presentes nos trabalhos de Jamiroquai, Kyoto Jazz Massive, Fernanda
Porto & DJ Patife, Bossacucanova e Zuco 103 se fazem de grande valia.
O
Daft Punk também parece reivindicar a importância de uma musica fortemente
influenciada pelos recursos eletrônicos. A dupla francesa já foi capaz de nos
brindar com Robot Rock, Harder, Better, Faster, Stronger e One More Time
(grande hit do inicio da década de 2000) e agora parece ampliar sua lista de
êxitos com RANDOM ACCESS MEMORIES, seu mais novo álbum. É interessante como
este trabalho reúne tantas influencias que resultam em faixas soft, suavizadas pela mescla de sweeps de guitarras, breves presenças de
overdrives, curtas citações de
orquestras, camas harmônicas de teclados, solos de piano rhodes, falas ordinárias transformadas em vozes cantadas pelo
sintetizador, linhas de baixo próximas do Funk e batidas mais próximas do
Lounge – num som que pode nos remeter a ambientes como desfiles de moda, lojas
de departamento e vernissages. De fato, Get Lucky – a faixa mais celebrada pelo
mercado da música e pelo Grammy – foi a que mais me agradou no álbum do Daft
Punk, mas Give Life Back to Music; The Game of Love; Beyond; Motherboard;
Fragments of Time e Doin' It Right também têm qualidade. Apenas Touch me soou
exaustiva e eu consideraria as demais faixas medianas.
Possivelmente,
alguns críticos mais reativos a esse tipo de música, podem acusá-la de
anti-arte, ou afirmarem que o Daft Punk é apenas entusiasta de todo o Show
Bussiness e do capitalismo na arte. No entanto, essas condenações não invalidam
seus méritos estéticos, pois qual o grande trunfo desse disco? Na minha
opinião, o de mostrar que nem sempre o repetitivo é sinônimo de má qualidade!
- Bruno Vitorino:
Concordo
com Keith Jarrett. “A arte está morrendo neste mundo, assim como o ouvir
música, à medida que o mundo fica cada vez mais cheio de brinquedos e efeitos
especiais. Com esta morte, virá a ruína das muitas possibilidades emotivas:
beleza, ternura, profundidade, confiança, honestidade, tristeza; cheias de
significado interno e cor”. Como os dois ou três loucos que acompanham meus
textos devem ter percebido, sou um anacrônico. E com muito orgulho, diga-se! De
modo obsoleto, ainda espero encontrar na música (e nas artes em geral) aquele
instante transcendental em que tudo parece fazer sentido e que, de alguma forma
desconhecida à racionalidade, conecta-me à completude e ao éter. Eu vivo dessa
e para essa busca infindável que se torna cada vez mais difícil de alcançar,
pois, como é sabido, tanto o conceito de Arte quanto seu propósito mudaram na nossa
Civilização do Espetáculo. Essa discussão, inclusive, rendeu um debate interno
extremamente saudável (quase um suco de laranja com clorofila) entre mim e
André Maranhão que espero ver um dia publicado neste blog.
Dito isto,
o desavisado leitor que passa os olhos por estas linhas deve imaginar o frio na
espinha que senti quando Giba Carvalho propôs que comentássemos um dos trabalhos
mais “hypados” pela Grande Mídia especializada em 2013: Random Access Memories
do duo Daft Punk. De cara, digo que não sou conhecedor da banda. O pouco que
tinha escutado, num passado longínquo, soou-me desagradável e o punk estampado
no nome da dupla, que na minha adolescência atraiu minha atenção para eles,
apenas me deixou ainda mais emputecido com a música que faziam. A única coisa
que esses cabras fizeram que realmente atiçou minha curiosidade foi uma série
de clipes transpassados por uma história que começava com “One More Time”. Aquele
lance futurista, mangá, sci-fi,
realmente fez minha cabeça. Da música, só gostava do que parecia ser um solo de
guitarra bem pirotécnico - em “Aerodynamic” - que se valia de uma técnica muito
utilizada por metaleiros: a digitação. O fato é até hoje não sei o que
aconteceu com a galeguinha que é sequestrada por um bando de soldados
mascarados no começo da saga. Era o ano de 2001. Eu tinha 18 anos, só andava de
preto, bebia vinho, ouvia Sepultura, Krisiun, Slipknot, e ainda tinha minha
banda punk: Nômades. Uns poucos meses à frente, como um desígnio da Fortuna, eu
compraria o álbum “’Round About Midnight” de Miles Davis e teria a grande
revelação da minha vida. Mas, isso é assunto para outro texto.
Hoje, do
alto de minha senilidade precoce (tenho quase 31 anos), ouvir esse trabalho é tarefa
hercúlea. Primeiro, por ser um disco longo. São exatos 74 minutos de pura
música inorgânica e vozes sintetizadas, numa odisseia artificial por um cenário
de isopor colorido, raios lasers,
gelo seco e alucinações bioquímicas que parecem não ter fim. Isso
inevitavelmente me levou ao tédio, à beira do desespero, onde cada segundo
durava um século e cada compasso era uma masmorra asfixiante. Um exemplo disso são
as músicas “Touch”, “Within”, “Beyond” e “Motherboard”. Um convite ao suicídio.
Segundo, porque ele esteticamente apresenta os conhecidos lugares comuns de
outrora: uma requentada atmosfera da disco
music que embalou a juventude de meus pais (que, por sinal, é quando a
música soa mais audível); um maroto lounge
music que remete ao relaxante momento pós-coito em banheira de motel; um
certo aspecto frívolo que só é encontrado nas danceterias. Terceiro, por seu
conceito artístico em si. O título do álbum, em português “Memória de Acesso
Aleatório”, faz clara menção à memória RAM que nada mais do que a memória
volátil dos computadores, ou seja, depois que a máquina é desligada, as
informações que ela processava são perdidas, dada sua natureza efêmera, transitória,
precária, instantânea, superficial, passageira, inapreensível... Bem, você
entendeu. E eu não posso levar a sério uma música que não repercute no âmago de
quem ouve, apenas, em seus pés. Mas, há uma exceção: “Get Lucky”. Quando dei
por mim, lá estava eu balançando os ombros como um autêntico metrossexual na
pista de dança da Pink Elephant que, entre um gole e outro de Smirnoff Ice,
lança olhares de esguelha para a gatinha com salto agulha e vestido de
lantejoulas que não tira o olho do WhatsApp,
torcendo para que a figura notasse que eu trajava roupas de marca. Um conjunto
da Tommy Hilfiger que uma prima sacoleira me trouxe de Miami. Que música contagiante!
Tão contagiante que meu alter ego, DJ
Bilola, já a incorporou em seu saco escrotal (é assim que ele chama seu setlist) para despejá-la no clímax de
sua próxima festinha luxuriante. Sucesso garantido!
É inegável
que com “Random Access Memories” o Daft Punk vende um bom produto. Não à toa,
ganhou uma caralhada de Grammys, o grande termômetro da indústria do
entretenimento, com o disco em pauta. Mas, se o duo francês representa
significativas conquistas estéticas para a Arte com sua música “de mentira”,
então a McDonald’s também pode se orgulhar de sua contribuição para a
gastronomia com os hambúrgueres “orgânicos” que comercializa. Só que não.
Gosto muito
de música eletrônica. Sou fascinado pelas composições de Cage, Stockhausen,
Ligeti, Berio, Nono, Boulez, mas também curto bastante outros sons eletrônicos,
como o cyber punk do Atari Teenage
Riot. Já ouviste?! Não?! Então escuta o insano “Delete Yourself!”. Pelo menos
aqui, meu caro, encontrarás um pouco da honestidade e da urgência que o Daft
Punk jamais terá.
- Dom
Angelo:
A
grosso modo, classifico a prática musical em três objetivos distintos: música sentimentalista, onde o
propósito é despertar sensações como tristeza, alegria, fúria, revolta, paixão,
etc. Música de apreciação estética,
onde a arte de combinar notas, ruídos e silêncio geram um desafio analítico
para nosso cérebro, impulsionando consequentemente a busca pelo conhecimento e
a sensação do desenvolvimento cognitivo e, finalmente, música para dançar, no qual a linearidade rítmica induz nossos
corpos a acompanhar certas marcações de tempo.
Enquadrados
neste terceiro ponto, encontramos os “Punk Pateta” ou Daft Punk. Para mim fica
nítido que seus integrantes (o luso-francês Guy-Manuel
de Homem-Cristo e o
francês Thomas Bangalter) são oriundos do universo
rock, principalmente pela simplicidade harmônica e melódica de suas
composições. Sem falar do ritmo, um synthpop 4/4 marcando a acentuação no
segundo e quarto tempo do compasso.
Se
os compositores do período Clássico (mais ou menos 1730 até 1820) declaravam
haver um formato musical para algumas de suas obras (Forma Sonata), penso que deveria
existir uma declaração dos praticantes da música Pop afirmando que existe uma
fórmula para o “Hit”. Poderia ser algo como Forma Canção
(Verso-Refrão-Verso-Refrão2X) ou, como no caso dos Daft Punk, Forma Beat Modal
Dórico (sequência ii-IV-vi-V ou i-III-v-IV no modo dórico). Pode-se dizer que
artistas como Michael Jackson, Prince e Black Eyed Peas fizeram uso demasiado
deste padrão musical. Utilizando as mesmas vias, os Daft Punk ganham o Grammy
de melhor disco do ano fazendo uso abusivo desta prática.
Ok. Também não vou deixar aqui só críticas. Até
porque curti e dancei o verão europeu de 2013 ao som de “Get Lucky” nos cinco
países que visitei em Agosto. Um fenômeno cultural. A música foi feita para tal
finalidade e cumpriu seu objetivo. Tem mérito. Antes este tipo de mainstream na música internacional do
que coisas tenebrosas que já assombraram o planeta terra outrora. Mas quer
saber de uma coisa, meu amigo? Vá ouvir os Air, os New Order, os Kraftwerk,
Morcheeba, Radiohead, Massive Attack, Jamiroquai, Beck e Bjork, se é música
eletrônica pop o que você procura.