quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Epitáfio – por Bruno Vitorino

O compositor brasileiro Gilberto Mendes. Fonte: Google Imagens,


É impressionante como num período de menos de um mês sofremos perdas irreparáveis no mundo da Cultura. Em 19 de dezembro, perdemos uma das maiores referências no período Romântico da música erudita, o maestro Kurt Masur aos 88 anos. Dez dias depois (29/12), no apagar das luzes de 2015, morre um dos últimos representantes da era jurássica do rock, o baixista da banda Motörhead Lemmy Kilmister aos 70 anos. A esperança que marca todo réveillon ainda reverberava em nossos corações, quando, no dia 1º, veio a notícia de que o mestre da música erudita contemporânea do Brasil, o compositor Gilberto Mendes, havia falecido aos 93 anos. E não parou por aí: ontem (05/01) perdemos um dos nomes mais importantes da música do século XX e a maior referência do Serialismo Integrado, o compositor e regente Pierre Boulez aos 90 anos. E quando eu achava que já havíamos tido baixas suficientes para lamentar por um século, eis que, ao acaso, descubro que o pianista Paul Bley faleceu em sua casa na Flórida no domingo passado (03/01) aos 83 anos. Que obituário desolador...

O pianista Paul Bley. Fonte: Google Imagens.
Como fica evidente pela idade desses artistas, assistimos ao ocaso de todo um ciclo cultural que se iniciou no século passado, deixando um legado inestimável para humanidade, mas que chegou ao fim por descontinuidade criativa e desinteresse estético. A mudança de paradigma nos preceitos da arte tornou a comunicação com esse manancial artístico de outrora apenas referencial, contemplativa  e saudosista, promovendo, por conseguinte, um estranho vácuo que nos desvincula artisticamente dessa produção. E quando falo em “mudança de paradigma”, faço referência ao modelo que até então vigorava baseado na música como uma forma de elevação do espírito humano, de expressão de uma visão de mundo ou como o veículo das inquietações de uma geração – o que seria o rock senão isto?! No entanto, tal modelo foi superado pela lógica efêmera da hibridização de arte e mercadoria, experiência estética e consumo, moda e ativismo político-social, estilização da vida e cool, Cultura e fun. Mais ainda: esta alteração de perspectiva, que vem se consolidando nos últimos 30 anos, promoveu – focando na produção musical – essa ruptura cultural com o passado e nos deixou órfãos de referências artísticas em nossos dias e com aquela incômoda sensação de vácuo criativo reinante.

Daí que não há mais espaço para “ícones de aço”, artistas-farol cujas obras são dotadas de profundidade estética e sócio-cultural a ponto de se inserirem no continuum da História de forma perene e se consolidarem enquanto memória, marcando gerações – como fizeram estes que se foram. Com a diluição das estruturas de pensamento unificadoras da coletividade em infinitos nichos de apreensão do mundo e o triunfo apoteótico da sociedade do consumo de massa, testemunhamos a destradicionalização dos bens culturais promovida pela sistemática do fluxo contínuo de novidades, do consumo-tendência estetizado e de um presentismo de superfície que vive no ritmo alucinado de postagens no Twitter. Assim, exemplificando, não há mais lugar em nosso tempo para o surgimento de um novo Paul McCartney – e me refiro não em termos de cópia musical, mas de estatura artística. Há, isto sim, espaço, palco, holofotes e aplausos para uma multidão de ídolos de ocasião que se sucedem infindavelmente, desprovidos de conteúdo artístico relevante, deificados pela mídia propagadora do hype (afinal, julgamentos qualitativos de uma obra é hoje considerado elitista, esnobe e demodê), os quais se diferenciam e se impõem por razões extra-arte que os capitalizam enquanto produtos culturais rentáveis – um discurso, uma extravagância, um padrão de comportamento, um exotismo, etc...

Por tudo isso, é de se lamentar bastante o retorno destes ícones para o Éter e daqueles que, ainda por aqui, em breve os seguirão no caminho irreversível da morte, pois são eles os últimos de sua espécie, seres em extinção, representantes de um tempo não tão distante em que a Arte se propunha fornecedora de sentido, encantamento e transcendência ante a crueza do mundo material e as contingências sensíveis da condição humana.

R.I.P.

2 comentários:

  1. Caro Bruno,

    Pena que o post foi antes da morte do incrível Pierre Boulez.

    ResponderExcluir
  2. Grande Ângelo,

    Bom vê-lo por aqui. Na verdade, neste texto eu considero o falecimento do grande Boulez. Segue o trecho:

    "E não parou por aí: ontem (05/01) perdemos um dos nomes mais importantes da música do século XX e a maior referência do Serialismo Integrado, o compositor e regente Pierre Boulez aos 90 anos."

    Um abraço.

    ResponderExcluir