Na primeira coluna do ano, os editores
do blog comentam o último trabalho de David Bowie, “Blackstar”.
Boa leitura!
- Fernando Lucchesi:
Se há algo que caracterizou David Bowie
durante toda sua carreira foi a quase patológica necessidade de constante
mudança, tanto visual como musical. Isso fez com que musicalmente Bowie
explorasse uma quantidade enorme de sons e ao invés de seguir, era ele quem
ditava a tendência do que viria ser feito. Muito dessa amálgama de estilos está
presente em “Blackstar”, praticamente um disco-testamento do músico inglês.
Embora haja um grande predomínio de
saxofone nos arranjos das músicas, não se trata propriamente de um disco de
jazz (vi algumas críticas dizendo isso). O que caracteriza o disco, e isso
possivelmente foi causado pelo estado de ânimo de Bowie, é um tom lúgubre,
triste, por vezes até sufocante das canções do álbum. A única música que se
aproxima de um rock é Sue (Or In a Season
of Crime), com uma linha de baixo-guitarra mais acelerada e cheia de
distorções. As outras canções do disco possuem estrutura semelhante, mas com
pequenas diferenças nos arranjos.
A longa faixa-título, Blackstar, entremeia sax, flauta,
batidas eletrônicas tudo dentro dessa atmosfera densa, pesada, com a voz de
Bowie surgindo com uma voz quase suplicante. O mesmo se aplica (com algumas
mínimas diferenças) à ‘Tis a Pity She Was
a Whore e Girl Loves Me, que
seguem a mesma estrutura de Blackstar.
Dollar Day já foge um pouco mais do padrão das
outras. A música abre com piano e sax se misturando e segue com um violão com
uma levada folk. Uma música que poderia estar perfeitamente em algum disco do
REM. É o momento do disco em que Bowie diminui os efeitos eletrônicos presentes
nas outras faixas. Já I Can´t Give Everything
Away lembra algo de “Low” (disco de Bowie de 1977). Nessa faixa há uma
retomada do uso de efeitos eletrônicos, teclados e há espaço até para um solo
de guitarra.
Mas é na letra de Lazarus (transformado em um belíssimo vídeo) que Bowie realmente
parece fazer o seu canto de cisne: “Olhe aqui para cima/Estou no paraíso/Tenho
cicatrizes que não podem ser vistas. /Eu tenho drama/não pode ser roubado/Todo
mundo me conhece agora.”. Um brilhante epitáfio para um dos artistas mais
representativos do século XX.
- Rógeres Bessoni:
Há
inegáveis dificuldades em escrever sobre o último trabalho musical de David
Bowie. Se, por um lado, todos já falaram que “Blackstar” é um disco de
verdadeira despedida (e repetir isso tenderia a ser um mero cliché), por outra
via, uma análise detalhada sobre a obra exigiria uma pesquisa rigorosa sobre
muitos elementos e poderia desembocar num artigo denso sobre estética,
extrapolando os limites desta coluna. Isso porque é impossível falar de
qualquer trabalho de David Bowie separado do autor – trata-se de um dos poucos
artistas que praticamente impossibilitam tal “corte epistemológico”, ainda que
momentâneo. Isso porque Bowie pertenceu à rara categoria daqueles que parecem
viver toda a sua “vida pública” (porque era discretíssimo no âmbito pessoal)
como se se tratasse de uma consciente composição estética, uma arquitetura
experimental recorrendo a diversos campos de linguagem, o intento de uma
realização artística de uma certa forma aproximada à maneira como Todorov
interpreta ter sido a vida de Oscar Wilde, por exemplo. No caso de Bowie, isso
incluía, TAMBÉM, compor e gravar discos.
Pois
bem, é nesse contexto que Blackstar parece, de fato, cumprir sua função de
arremate. O disco tem um tom “nublado”, até mesmo um tanto sombrio, mesmo nos
momentos mais dançantes, como em ‘Tis a Pity
She Was a Whore. A minha preferida, Blackstar,
ganhou um clip poderoso e impactante, uma belíssima obra de fotografia, em que
o ritual com o crânio, encenado em meio a espantalhos, pode facilmente ser
entendido como uma contemplação sobre a morte. Além de tudo, vale ressaltar a
tão comentada letra de Lazarus, em
que o “eu lírico” (se posso usar aqui este termo) canta como se já estivesse
morto. Esses conteúdos parecem demonstrar que Bowie sabia muito bem o que
estava fazendo e queria, de fato, "gravar em vida um disco póstumo".
Fico
assim impossibilitado de comentar Blackstar como se fala simplesmente de
qualquer “lançamento”. Não é o trabalho de uma banda ou artista solo que lançou
um disco e quer sucesso suficiente para excursionar, ganhar uma grana e os
elogios pela obra. Aqui, Bowie compôs uma despedida e... partiu. Não ficou para
ouvir qualquer opinião, e talvez não fizesse mais a menor questão disso.
Qualquer análise em termos de “gostei/não gostei” ou “ficou bom/não ficou bom”
seria pueril e até mesmo leviana. Trata-se de uma obra definitivamente madura,
e sendo Bowie o alquimista/experimentalista estético que sempre foi, a sensação
é que se está ouvindo (e assistindo nos clips
que foram feitos para este disco) uma precisa composição em que cada coisa está
exatamente onde ele queria que estivesse, em que cada timbre, palavra e
andamento (assim como as cores, cenários e figurinos nos clips) foram
intencionados. Bowie não estava mais tateando para ver o que “poderia dar certo
ou não”, nem buscando louvores, nem pretendendo ganhar absolutamente nada mais
deste mundo. Trata-se de um mestre do desconcerto, manuseando hábil e
melancolicamente as tintas que aprendeu a dominar em décadas de manipulação
ininterrupta, para compor sua partida desta terra. Agora, sim, com a obra
completa, ele se retira e sai de cena. Fica desenhado um ideograma – ou,
melhor, talvez um criptograma. Não me surpreenderia nada se, no futuro,
observadores atentos percebessem que Bowie, junto com mais uns outros poucos
mestres, deixaram criptografadas as fórmulas mágicas que nos ajudarão a
dissolver uma era de mediocridade e pobreza espiritual que, parece, apenas se
inicia.
- Giba Carvalho:
David Bowie sabia que estava perto do
fim e “Blackstar” não é sombrio à toa! É um passeio real da mente mais criativa
do mainstream musical mundial, pelos
caminhos inóspitos da morte. Talvez por isso, seja o trabalho que menos flerta
com Rock ‘n Roll em toda carreira do Camaleão. Por tratar-se de Bowie, não posso
citar de onde vêm tantas influências. Encontramos elementos de Jazz Fusion, passando
pelo Dub e chegando ao Rap em alguns momentos. Não tenho dúvida ao afirmar: trata-se
de mais uma guinada violenta no histórico de trabalhos do cara.
Buscando talvez uma inovação maior
ainda do que as de costume, o Camaleão foi buscar na cena Pós-Jazz de Nova
Iorque nomes consagrados e que, notadamente, fossem capazes de trabalhar com a
mais variada sorte de improvisos. No saxofone – Donny McCaslin, na guitarra –
Ben Monder (ambos frutos do encontro anterior com a pianista Maria Schneider),
na bateria o espetacular Mark Giuliana (Mehliana), o contrabaixista Tim
Lefebvre (Tedeschi Trucks Band) e o tecladista Jason Lindner. Com um time deste
quilate, somado a capacidade criativa de Bowie, não tenho dúvida em afirmar que
Blackstar é um dos trabalhos mais interessantes lançados em 2015.
Trata-se de álbum de vanguarda (anticomercial),
indiscutivelmente! E, mesmo trazendo uma estranheza caricata, quem escuta o
álbum sabe que a personalidade de Bowie está entranhada no mesmo.
Indicadíssimo!
- Bruno Vitorino:
Inegavelmente a partida de David Bowie
deste mundo de desorientação, destradicionalização e hedonismo desenfreado
torna as coisas ainda mais difíceis para a Cultura. Nos últimos dois meses,
tantos mestres voltaram ao Éter que é para mim quase impossível não ser
fatalista ou, para usar uma expressão de um grande pensador que nos deixou
ontem – Umberto Eco -, “apocalíptico”. Pois, a cada grande nome que parte, um
vazio criativo se agiganta e se apossa de nosso ideário, substituindo transcendência,
substância e profundidade por distração, aparência e efemeridade, como se uma marcha contundente levasse a humanidade
à beira do precipício da idiocracia e do irracionalismo.
Só isso bastaria para ouvirmos “Blackstar”
com uma solene reverência e profundo comprometimento estético. Mas, o disco é, ainda
por cima, de uma riqueza artística surpreendente e cada vez mais rara no mundo
de espumas em que vivemos.
A esta altura, todo mundo minimamente ligado
sabe que o disco é um testamento musical concebido por Bowie na iminência da
morte. A própria capa do trabalho deixa isto bastante evidente: uma grande
estrela negra imponente e altiva que oculta, além de sua projeção inteiriça,
seus frangalhos, como um astro que se despedaça e sucumbe. Ok. Só que o artista
inglês não transformou sua doença – o câncer – num libelo clichê contra a morte
que ceifa a sua vida de ídolo pop. Ao contrário! Bowie fez desse funesto
território o espaço para uma última metamorfose estética, como era de seu gosto
arredio a zonas de conforto, e o local perfeito para expurgar suas angústias,
medos e dores enquanto ser humano, indivíduo que enxerga o próprio ocaso, em
letras fortíssimas em primeira pessoa na intenção, imagino, de preparar seu espírito
para o fim. O resultado é um trabalho marcado por uma atmosfera lúgubre - como num
conto de Edgar Allan Poe – que mescla com muita precisão recursos eletrônicos,
cordas, sopros e guitarras distorcidas, amalgamados em belos (e ousados) arranjos.
Destaque para o si menor tortuoso de Blackstar, uma suíte em duas partes
sobre a “vela solitária” que trazemos em nosso universo interior; o grito desesperado
de Lazarus; a base groove de Sue (Or in a Season of Crime) em contraponto à melodia flutuante na
voz; o vocal quase recitativo de Girl
Loves Me; o inesperado caminho harmônico de Dollar Days; todas as intervenções do saxofone de Donny McCaslin (e
não, não é um disco de jazz, e sim um disco com elementos jazzísticos); a
presença musical do produtor Tony Visconti.
Em resumo: maestria, comprometimento e
risco. O que mais poderíamos querer?
Indispensável!
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