domingo, 21 de fevereiro de 2016

Variações em 4/4 - Blackstar



Na primeira coluna do ano, os editores do blog comentam o último trabalho de David Bowie, “Blackstar”.

Boa leitura!


- Fernando Lucchesi:         

Se há algo que caracterizou David Bowie durante toda sua carreira foi a quase patológica necessidade de constante mudança, tanto visual como musical. Isso fez com que musicalmente Bowie explorasse uma quantidade enorme de sons e ao invés de seguir, era ele quem ditava a tendência do que viria ser feito. Muito dessa amálgama de estilos está presente em “Blackstar”, praticamente um disco-testamento do músico inglês.
Embora haja um grande predomínio de saxofone nos arranjos das músicas, não se trata propriamente de um disco de jazz (vi algumas críticas dizendo isso). O que caracteriza o disco, e isso possivelmente foi causado pelo estado de ânimo de Bowie, é um tom lúgubre, triste, por vezes até sufocante das canções do álbum. A única música que se aproxima de um rock é Sue (Or In a Season of Crime), com uma linha de baixo-guitarra mais acelerada e cheia de distorções. As outras canções do disco possuem estrutura semelhante, mas com pequenas diferenças nos arranjos.

A longa faixa-título, Blackstar, entremeia sax, flauta, batidas eletrônicas tudo dentro dessa atmosfera densa, pesada, com a voz de Bowie surgindo com uma voz quase suplicante. O mesmo se aplica (com algumas mínimas diferenças) à ‘Tis a Pity She Was a Whore e Girl Loves Me, que seguem a mesma estrutura de Blackstar.

Dollar Day já foge um pouco mais do padrão das outras. A música abre com piano e sax se misturando e segue com um violão com uma levada folk. Uma música que poderia estar perfeitamente em algum disco do REM. É o momento do disco em que Bowie diminui os efeitos eletrônicos presentes nas outras faixas. Já I Can´t Give Everything Away lembra algo de “Low” (disco de Bowie de 1977). Nessa faixa há uma retomada do uso de efeitos eletrônicos, teclados e há espaço até para um solo de guitarra.

Mas é na letra de Lazarus (transformado em um belíssimo vídeo) que Bowie realmente parece fazer o seu canto de cisne: “Olhe aqui para cima/Estou no paraíso/Tenho cicatrizes que não podem ser vistas. /Eu tenho drama/não pode ser roubado/Todo mundo me conhece agora.”. Um brilhante epitáfio para um dos artistas mais representativos do século XX.


- Rógeres Bessoni:

Há inegáveis dificuldades em escrever sobre o último trabalho musical de David Bowie. Se, por um lado, todos já falaram que “Blackstar” é um disco de verdadeira despedida (e repetir isso tenderia a ser um mero cliché), por outra via, uma análise detalhada sobre a obra exigiria uma pesquisa rigorosa sobre muitos elementos e poderia desembocar num artigo denso sobre estética, extrapolando os limites desta coluna. Isso porque é impossível falar de qualquer trabalho de David Bowie separado do autor – trata-se de um dos poucos artistas que praticamente impossibilitam tal “corte epistemológico”, ainda que momentâneo. Isso porque Bowie pertenceu à rara categoria daqueles que parecem viver toda a sua “vida pública” (porque era discretíssimo no âmbito pessoal) como se se tratasse de uma consciente composição estética, uma arquitetura experimental recorrendo a diversos campos de linguagem, o intento de uma realização artística de uma certa forma aproximada à maneira como Todorov interpreta ter sido a vida de Oscar Wilde, por exemplo. No caso de Bowie, isso incluía, TAMBÉM, compor e gravar discos.

Pois bem, é nesse contexto que Blackstar parece, de fato, cumprir sua função de arremate. O disco tem um tom “nublado”, até mesmo um tanto sombrio, mesmo nos momentos mais dançantes, como em ‘Tis a Pity She Was a Whore. A minha preferida, Blackstar, ganhou um clip poderoso e impactante, uma belíssima obra de fotografia, em que o ritual com o crânio, encenado em meio a espantalhos, pode facilmente ser entendido como uma contemplação sobre a morte. Além de tudo, vale ressaltar a tão comentada letra de Lazarus, em que o “eu lírico” (se posso usar aqui este termo) canta como se já estivesse morto. Esses conteúdos parecem demonstrar que Bowie sabia muito bem o que estava fazendo e queria, de fato, "gravar em vida um disco póstumo".

Fico assim impossibilitado de comentar Blackstar como se fala simplesmente de qualquer “lançamento”. Não é o trabalho de uma banda ou artista solo que lançou um disco e quer sucesso suficiente para excursionar, ganhar uma grana e os elogios pela obra. Aqui, Bowie compôs uma despedida e... partiu. Não ficou para ouvir qualquer opinião, e talvez não fizesse mais a menor questão disso. Qualquer análise em termos de “gostei/não gostei” ou “ficou bom/não ficou bom” seria pueril e até mesmo leviana. Trata-se de uma obra definitivamente madura, e sendo Bowie o alquimista/experimentalista estético que sempre foi, a sensação é que se está ouvindo (e assistindo nos clips que foram feitos para este disco) uma precisa composição em que cada coisa está exatamente onde ele queria que estivesse, em que cada timbre, palavra e andamento (assim como as cores, cenários e figurinos nos clips) foram intencionados. Bowie não estava mais tateando para ver o que “poderia dar certo ou não”, nem buscando louvores, nem pretendendo ganhar absolutamente nada mais deste mundo. Trata-se de um mestre do desconcerto, manuseando hábil e melancolicamente as tintas que aprendeu a dominar em décadas de manipulação ininterrupta, para compor sua partida desta terra. Agora, sim, com a obra completa, ele se retira e sai de cena. Fica desenhado um ideograma – ou, melhor, talvez um criptograma. Não me surpreenderia nada se, no futuro, observadores atentos percebessem que Bowie, junto com mais uns outros poucos mestres, deixaram criptografadas as fórmulas mágicas que nos ajudarão a dissolver uma era de mediocridade e pobreza espiritual que, parece, apenas se inicia.


- Giba Carvalho:

David Bowie sabia que estava perto do fim e “Blackstar” não é sombrio à toa! É um passeio real da mente mais criativa do mainstream musical mundial, pelos caminhos inóspitos da morte. Talvez por isso, seja o trabalho que menos flerta com Rock ‘n Roll em toda carreira do Camaleão. Por tratar-se de Bowie, não posso citar de onde vêm tantas influências. Encontramos elementos de Jazz Fusion, passando pelo Dub e chegando ao Rap em alguns momentos. Não tenho dúvida ao afirmar: trata-se de mais uma guinada violenta no histórico de trabalhos do cara.

Buscando talvez uma inovação maior ainda do que as de costume, o Camaleão foi buscar na cena Pós-Jazz de Nova Iorque nomes consagrados e que, notadamente, fossem capazes de trabalhar com a mais variada sorte de improvisos. No saxofone – Donny McCaslin, na guitarra – Ben Monder (ambos frutos do encontro anterior com a pianista Maria Schneider), na bateria o espetacular Mark Giuliana (Mehliana), o contrabaixista Tim Lefebvre (Tedeschi Trucks Band) e o tecladista Jason Lindner. Com um time deste quilate, somado a capacidade criativa de Bowie, não tenho dúvida em afirmar que Blackstar é um dos trabalhos mais interessantes lançados em 2015.

Trata-se de álbum de vanguarda (anticomercial), indiscutivelmente! E, mesmo trazendo uma estranheza caricata, quem escuta o álbum sabe que a personalidade de Bowie está entranhada no mesmo.

Indicadíssimo!


- Bruno Vitorino:

Inegavelmente a partida de David Bowie deste mundo de desorientação, destradicionalização e hedonismo desenfreado torna as coisas ainda mais difíceis para a Cultura. Nos últimos dois meses, tantos mestres voltaram ao Éter que é para mim quase impossível não ser fatalista ou, para usar uma expressão de um grande pensador que nos deixou ontem – Umberto Eco -, “apocalíptico”. Pois, a cada grande nome que parte, um vazio criativo se agiganta e se apossa de nosso ideário, substituindo transcendência, substância e profundidade por distração, aparência e efemeridade, como se uma marcha contundente levasse a humanidade à beira do precipício da idiocracia e do irracionalismo.

Só isso bastaria para ouvirmos “Blackstar” com uma solene reverência e profundo comprometimento estético. Mas, o disco é, ainda por cima, de uma riqueza artística surpreendente e cada vez mais rara no mundo de espumas em que vivemos.

A esta altura, todo mundo minimamente ligado sabe que o disco é um testamento musical concebido por Bowie na iminência da morte. A própria capa do trabalho deixa isto bastante evidente: uma grande estrela negra imponente e altiva que oculta, além de sua projeção inteiriça, seus frangalhos, como um astro que se despedaça e sucumbe. Ok. Só que o artista inglês não transformou sua doença – o câncer – num libelo clichê contra a morte que ceifa a sua vida de ídolo pop. Ao contrário! Bowie fez desse funesto território o espaço para uma última metamorfose estética, como era de seu gosto arredio a zonas de conforto, e o local perfeito para expurgar suas angústias, medos e dores enquanto ser humano, indivíduo que enxerga o próprio ocaso, em letras fortíssimas em primeira pessoa na intenção, imagino, de preparar seu espírito para o fim. O resultado é um trabalho marcado por uma atmosfera lúgubre - como num conto de Edgar Allan Poe – que mescla com muita precisão recursos eletrônicos, cordas, sopros e guitarras distorcidas, amalgamados em belos (e ousados) arranjos.

Destaque para o si menor tortuoso de Blackstar, uma suíte em duas partes sobre a “vela solitária” que trazemos em nosso universo interior; o grito desesperado de Lazarus; a base groove de Sue (Or in a Season of Crime) em contraponto à melodia flutuante na voz; o vocal quase recitativo de Girl Loves Me; o inesperado caminho harmônico de Dollar Days; todas as intervenções do saxofone de Donny McCaslin (e não, não é um disco de jazz, e sim um disco com elementos jazzísticos); a presença musical do produtor Tony Visconti.

Em resumo: maestria, comprometimento e risco. O que mais poderíamos querer?

Indispensável!

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