Bem antes do lançamento de Anthem of the Peacefull Army, os garotos da Greta Van Fleet já
estavam causando o maior furor no mainstream musical por alguns aspectos bastante
peculiares. De cara, posso citar a semelhança ao som que o Led Zeppelin fazia
como banda. Guitarras pesadas, bateria marcante e agressiva, baixo ora flutuando,
ora agredindo como uma cavalaria na hora da batalha, além dos vocais rasgados e
melódicos. Outra coisa bastante similar com a lendária banda britânica é a
idade precoce dos membros. Atualmente, o mais velho tem 22 anos. São garotos de
uma cidade pequena no interior do Estado americano de Michigan, que não ficaram
apenas no “curtir” Rock n´Roll. Eles meteram as mãos na massa e fizeram
acontecer!
O sonho deles teve início com a coleção de vinis do pai dos irmãos Kiszka. Nada mais
bonito! Lá eles encontraram grande parte das bandas clássicas como The Who, The
Rolling Stones, The Beatles e, obviamente, também o Led Zeppelin. Todo este DNA
musical ficou guardado na mente dos caras e, na minha opinião, é extremamente normal que os
mesmos utilizem o mesmo na hora de compor. A paixão pelos clássicos do Rock n´Roll
é latente e perceptível desde o primeiro riff que escutamos. A propósito, vale salientar, que o nível
de execução é bem superior ao da média. Notadamente, se compararmos a grande maioria das bandas que
surgem a todo instante. Josh (Vocalista), tem um tom natural que parece mais
uma mistura de Robert Plant e Geddy Lee, do que apenas com o vocalista do
Zeppelin como propagado aos quatro cantos do mundo.
Uma coisa que me incomoda sobremaneira é a análise cada vez
mais simplista para todos os temas possíveis na atualidade. No meio musical não
é diferente. Não estamos pagando apenas com a ausência quase que completa da
capacidade, que um dia foi normal, de interpretar textos. Pagamos, por exemplo,
com pessoas que não sabem diferenciar os verbos influenciar e copiar. E é justamente
isto que ocorre com a Greta Van Fleet. Assim como todo mundo que entra no ramo
musical (e demais áreas) é normal cultivar influências. Na minha opinião, é
excelente que os garotos mantenham vivo o legado sonoro dos dinossauros do
Classic Rock. Até porque, quando os mesmos surgiram o mercado estadunidense era
dominado pelo R&B (Beyoncé e cia ltda) e pelo Hip-Hop, que nunca deixaram
de ser moda praquelas bandas. Ter influências não é crime!
A propósito, tenho o dever de lembrar aos leitores, que o
próprio Led Zeppelin foi acusado dezenas de vezes por supostos plágios, de
diversos artistas, e, ainda assim, não deixou de ser reconhecida como uma das
maiores bandas do mundo.
Portanto, torço
para que a Greta Van Fleet continue trilhando seu caminho de modo honesto e que
o tempo traga um refino ainda maior para a promissora banda. O mundo do Rock n´Roll
agradecerá!
O encontro da minha nuca com aquele tapete branco foi algo similar a lava
emergente de um vulcão de pensamentos encostando na neve acalentadora dos
alpes. Definitivamente, eu não estava bem. Carrego dentro de mim algumas
certezas, dentre elas: a que tudo que vale a pena nesta vida requer sacrifício,
dedicação e levará algum tempo. O tempo de cada um ou como diria o Pessoa: “o tempo das coisas” (que não é o
nosso). A vida não é algo fácil. Enquanto isso, olhos alheios às
histórias lançam suas setas de fogo: “o tempo passa”, “as chances se vão”,
“gente que vem e vai”, “perguntas que não foram feitas”, “respostas que não
foram dadas”. Pressão e mais pressão.
Há
mais de um século Nietzsche teceu algumas palavras sobre o elemento
contemplativo, como se fosse uma antecipação dos caminhos tomados pela
civilização atual, dizia ele: “Por falta de repouso, nossa civilização
caminha para uma nova barbárie.”
Nada
tão vigente neste mundo que transmite a sensação de que
as pessoas se tornaram “personas” virtualmente satisfeitas por exposição em
demasia. Refletindo sobre isto, pus a me questionar: “O que é real numa vida
exposta?” Após pensar bastante sobre tema, cheguei à conclusão que o consumo é
a coisa mais real dos dias atuais. Não apenas o consumo material. A pedra da
vez é o consumo do igual. Vivemos cada vez mais dentro do inferno do igual.
Pessoas que não conseguem mais se encontrar dentro de uma sociedade
extremamente narcisista e que terminam esgotando-se para o outro dentro de suas
próprias sombras. Algo como: “Se não for igual, não serve!”. Tais pessoas amam
continuamente a si mesmas, as suas próprias imagens. Justamente por tais
atitudes, a cupidez e as experiências eróticas vão sendo minguadas em telas de
aparelhos eletrônicos. Vivem da alimentação do próprio ego, negam as diferenças
e se fecham para as novas possibilidades, que se encontram nos mistérios e
verdades do outro. Isso é, de fato, uma grandiosa barbárie.
“Não
somos mais amigos, não somos mais amantes”.
Puxando
a bola para um conceito mais puro de Filosofia, o Eros (Desejo) pode ser
considerado uma espécie de Amigo da Verdade. Tanto os amigos, quanto os amantes
jamais deveriam viver no exterior do outro. Muito pelo contrário, devem ser
presenças vivas de pensamento. Ambos são categorias vivas! Portanto, para que
consigamos realizar o ato de pensar corretamente, devemos manter o compromisso
vital com a nossa verdade. Com o quê e com quem de fato é real nas nossas
vidas. Sem o Eros (Amigo da Verdade) nosso pensamento perde sua essencial
vitalidade, caindo em estados de inquietação, repetição e reatividade.
Essa perda essencial de vitalidade do pensamento gera uma crise de espírito e é causada pela falta de silêncio. Tal ausência
termina sendo o principal aniquilador dos processos criativos e, somada a uma
vida inteiramente virtual, torna-se um cemitério gigante de mudas que poderiam
florescer. Pensamentos necessitam de silêncio. Mas como encarar uma expedição ao silêncio num mundo,
cujos inquietos nunca valeram tanto? Como lidar com o mundo virtualmente feliz,
virtualmente real e, consequentemente, virtualmente verdadeiro? Contemple-se para
depois contemplar. Olhe as entregas, atitudes, palavras e enxergue dentro do seu
silêncio contemplativo o que de fato é real e verdadeiro. Tendo a certeza, por
outro lado, que o equilíbrio verdadeiro sempre será fluido.
E,
foi ali no mais completo silêncio, com a cabeça afundada no “tapete de neve” com
olhar fixo para o teto, que enxerguei réstias de luz que diziam que a vida é
cheia de momentos mais claros e momentos mais sombrios. Que vaidades não valem
de nada perante a verdade. E que a vida real é dura de ser vivida, mas, por
outro lado, é linda de ser vivenciada.
Cartaz
soviético sobre igualdade entre os povos e Capa da Edição de
Superman
– Red Son,
lançada nos Estados Unidos.
Na
semana passada,
o Superman completou 80 anos de sua primeira publicação em Action
Comics,
quando iniciava sua jornada até tornar-se figura carimbada nos
mundos da arte. Nas HQs, no cinema, com o memorável Christopher
Reeve (quem nos fez acreditar que “o homem pode voar”), nos ímãs
de geladeira, nas capas dos cadernos escolares, no vestuário
encontrado em lojas de departamento, bem como nas fantasias das
prévias carnavalescas, é certo que o Superman se confunde com a
Indústria Cultural, como diriam os mais intensos dos frankfurtianos.
Em
2003, Tom de Santo afirmou: “Com todo respeito ao Mickey Mouse,
talvez não exista nenhum ícone americano maior do que o Homem de
Aço”. Ainda que o Superman não seja necessariamente o ícone mais
difundido, é de longe um dos símbolos que imprime maior imponência
pela cultura dos Estados Unidos. Mesmo submetido tantas vezes à
vulgarização, capaz de beirar à própria cafonice, convenhamos
que, em sua melhor forma, o Superman é um baita de um produto!
Como
homenagem ao Homem de Aço, chamo atenção para Superman
– Entre a Foice e o Martelo
–, uma das HQs mais importantes já publicadas sobre o super-herói.
Em termos bem diretos, pode-se dizer que é uma história de fácil
aquisição, de fácil leitura e de fácil acesso na internet.
Apresentada
originalmente em 2003 sob o título Superman
– Red Son,
a série causou um verdadeiro frisson
entre
seus fãs. O trabalho escrito pelo roteirista Mark Millar (autor de
outros sucessos como Chrononautas,
e do clássico Guerra
Civil
–, cuja adaptação para o cinema não passa nem pela sombra da
espetacular HQ da Marvel) até hoje figura entre a maioria das listas
envolvendo o Homem de Aço, aliás, aqui, o “Camarada de Aço”,
um oportuno trocadilho utilizado entre a alcunha do Superman e o
apelido de Stálin, que, em russo, também remete ao termo “aço”.
Tem-se
afirmado que, nos dias atuais, muitas polarizações vertem o ódio à
democracia e a supressão do direito ao dissenso e dos meios mais
civilizados de diálogo. Diante dessas questões, eu diria que a
leitura de Superman – Entre a Foice e o Martelo, é um exercício
proveitoso, sobretudo pelas narrativas contidas na HQ servirem de
fértil contribuição ante o perigo das visões mais monolíticas
veiculadas a todo tempo nas redes sociais.
No
seu trabalho em Guerra
Civil,
Mark Millar trouxe com habilidade a discussão entre o público e o
privado, direitos individuais e coletivos, o capital e a intervenção
do governo dos EUA na liberdade dos heróis, a ponto de produzir um
caldo para fóruns e reavivar a pauta clássica da desobediência
civil, no seu sentido mais Henry David Thoreau do termo.
Por
seu turno, em Superman,
Millar traçou mais uma jogada de mestre em uma abordagem no mínimo
“fora da curva”. Comecemos pela questão central que orienta a
série: E se o cometa tivesse caído em uma fazenda coletiva da União
Soviética, em vez de cair na cidade de Smallville, situada no
interior do Kansas? Ora, o Superman seria soviético!
Ao
mesmo tempo, o Superman poderia garantir a estabilidade do Pacto de
Varsóvia em um mundo alinhado com o modelo comunista? A tarefa se
mostra muito complexa ao longo da HQ, haja vista a dissidência dos
Estados Unidos e suas orientações mais liberais, somadas aos
recursos do Governo para garantir a atividade de Lex Luthor, este
aparecendo na história como o grande cientista que procura
mecanismos e artifícios para neutralizar o poderio do Superman.
Além
do surpreendente antagonismo do governo norte-americano, o Superman
precisa lidar com as incoerências que paulatinamente observa dentro
do próprio governo da URSS, ao perceber que o regime não é tão
perfeito quanto pensara. Some-se tudo isso à rebeldia do Batman, na
história surgindo como um contraponto e um insurgente que combate um
conjunto de desmando na Cortina de Ferro e que, se torna algo mais do
que um personagem, entenda-se uma “ideia” que passa a ganhar
asseclas à medida que a história se desenvolve.
O
Superman também precisa lidar com as delicadas relações envolvendo
a Mulher Maravilha, ora marcadas pela afetividade, ora pela inanição
potencial da própria amazona.
Como
diria Lênin: “O Que Fazer?”.
É
aqui onde a história imprime uma de suas maiores lições: é
preciso não apenas interagir, como proteger
a quem nos permite o contraditório. Com essa motivação, o Superman
encontra um novo frescor para suas missões, para agir em prol de
todos e para se livrar da autossuficiência e compreender que as suas
convicções não são superiores às convicções das pessoas que
encarnam o heroísmo cotidiano sob outros pontos de vista.
Certa
vez, John Dewey respondeu a Trótski que o ideal revolucionário peca
por se lançar como um fim último, na medida em que os fins humanos
são imanentes e, portanto, não são absolutos. Diferentemente,
Dewey acreditava que o socialismo e o liberalismo não eram
completamente antípodas, mas que poderiam estabelecer “certo
namoro”, onde um mundo mais solidário e igualitário pudesse ser
reconhecido, tal qual um traço e um próprio desdobramento da
sociedade, acima de tudo, liberal.
Concordemos
ou não com a premissa de Dewey, algo parece minimamente correto: em
um mundo de ódio, como o que se tem visto cada vez mais, colocar
ideias diferentes para um flerte até que cairia bem, em vez de
apenas apartá-las como se estivéssemos em uma Guerra Fria...
Na
coluna deste mês, a escuta coletiva e os comentários dos editores
do blog sobre o disco de retorno do grupo Tribalistas.
Boa
leitura!
- Fernando Lucchesi: Eis
que 16 anos após o primeiro álbum, os Tribalistas (Marisa Monte,
Carlinhos Brown e Arnaldo Antunes) resolveram lançar novas
composições. Obviamente, durante esse período a música passou por
transformações diversas, principalmente no que concerne ao modo de
consumi-la e principalmente com relação à execução radiofônica.
Digo isso, pois o disco homônimo de 2001 foi um sucesso estrondoso,
dentre outros fatores, pela execução maciça no rádio. Hoje, num
rádio dominado por sertanejos, bregas e funks é improvável que
esse disco tenha sequer metade da repercussão que o primeiro teve,
apesar de ter uma levada pop bem acessível.
O disco tem início com duas faixas
que se complementam tematicamente. A belíssima Diáspora que
traz em sua letra questões como imigração e identidade (ou falta
dela). Um Só propõe o discurso de que somos
humanos, independente de fronteiras, ideologia ou religião. Essas
duas músicas iniciais são um ótimo cartão de visitas. No entanto,
o resto do disco oscila bastante.
Trabalivre utiliza a temática
do retirante que chega à cidade grande. Há uma referência bem
interessante daquele violão “percussivo”, muito bem utilizado
por Lenine e com uma breve citação a Vida de Viajante
de Luiz Gonzaga. Baião do Mundo também busca
sair dessa fórmula “MPB” que termina por cansar o ouvinte. Feliz
e Saudável (apesar de o título parecer propaganda
de complexo vitamínico) é outra boa faixa que em alguns momentos
lembra o Ben Jor do “sambalanço”. Fora da Memória
tem aquela pegada bem “mpbística” (cadenciada, com violão e
percussão lenta), típica de composição que foi feita pra tocar em
lounges ou na Nova Brasil. Fazem parte desse mesmo estilo Aliança,
Ânima e Os Peixinhos. Esse novo trabalho aponta que os três
tribalistas ainda possuem uma vertente pop bem afiada e
diversificada, mas, em determinados momentos, se conformam com uma
fórmula já batida e cansativa. - Rógeres Bessoni: Foi
com interesse que me dirigi ao novo trabalho dos Tribalistas, mas
após
os primeiros 15 minutos, o ânimo já tinha desaparecido para
terminar a audição do disco. Embora nunca tenha sido entusiasta do
trio, o primeiro disco, lançado em 2002, foi uma contribuição
bacana para o cenário da época, com uma junção de caminhos que
parecia instigante e com possibilidades de bons frutos: Carlinhos
Brown com uma trajetória percussiva, ligada a elementos
afro-brasileiros e carregando também a herança musical nordestina,
Arnaldo Antunes com o elemento rock and roll e sua poética rica e
tão peculiar, e Marisa Monte com sua voz melodiosa e uma carreira
consolidada como umas das intérpretes de MPB mais bem-sucedidas de
sua geração. Bem, se uma produtiva reação química foi capaz de
gerar um bom álbum de estúdio no início dos anos 2000, parece que
qualquer “encanto” inicial se dissipou com o tempo. O
novo trabalho é desestimulante do começo ao fim. Embora com
momentos melodicamente agradáveis (com destaque para Diáspora),
o disco inteiro segue sem nenhum grande impacto e sem fascínio. Não
apresentando grandes achados, seja nas composições, seja nos
arranjos, emplaca uma sequência de músicas “fofinhas” que, em
seu conjunto, repetindo sempre o mesmo padrão de interpretação
“açucarada” de Marisa Monte e a voz grave e monocromática de
Arnaldo Antunes, termina por ser monótona. O melhor fica por conta
das letras, com uma variedade expressiva de temas, que vão do drama
dos refugiados (sejam os do Oriente Médio, sejam os inúmeros
refugiados da vida cotidiana) em Diáspora,
passando pela rotina dura e desumanizante dos trabalhadores
(Trabalivre),
até a sacralidade da água (Baião
do Mundo).
Boas construções, algumas rimas criativas, mas, ainda assim, não
chegam a salvar o disco, que se mantém no máximo “morno”, em
toda a sua extensão. Enquanto
o primeiro Tribalistas foi muito bom (bom, mas também nada genial)
no que apresentou em sua época, esse é um daqueles retornos que
comprovam que a fórmula se esgotou no primeiro projeto (o que, no
passado, aconteceu tanto no rock progressivo, por exemplo). O
problema reside na sabedoria de perceber que não se tem uma “banda”,
mas que foi um projeto com começo, meio e fim em sua primeira
edição, e não mergulhar numa possível saudade de si mesmo, para
materializar apenas uma versão pálida do que um dia foi um impulso
criativo. De qualquer forma, é mais um momento em que constatamos
nosso longo hiato na inventividade musical brasileira. Perdemos a
inspiração para as grandes melodias, a engenharia das letras
verdadeiramente de peso e a fúria (e/ou a paixão) para as
performances incendiárias. Há muito que o fogo de El Duende não
incendeia a arte por estas plagas… - Bruno Vitorino: Minha
vida seria tão mais fácil se eu simplesmente aplaudisse e me
deixasse encantar pelo frenesi que rege vastas manadas em busca não
de pasto, mas de tendências para consumir, modos de vida para
experimentar turisticamente e reconhecimento virtual quantificado em
likes nas redes sociais.
Mas, como tenho ao menos dez centavos de senso crítico e um “volume
morto” (muito vivo) que posso chamar de alma, não consigo me
adequar à massa disforme e conformista de indivíduos
“transparentes”, para usar um termo de Byoung-Chul Han,
facilmente encontrados hoje. Digo isso, porque, se assim fosse, eu
deveria ter à época do anunciado retorno dos Tribalistas (foi em
agosto do ano passado, mas parece um século, não?) berrado meu
entusiasmo em timelines,
“curtido, compartilhado e comentado” o disco do grupo da família
no WhatsApp ao perfil
do Twitter quando do lançamento e estar em contagem regressiva para
a “tão esperada turnê” do trio por 10 cidades brasileiras –
incluindo este vilarejo – para postar e afirmar meu “bom gosto
musical” numa foto com filtro retrô no Instagram. Aí
é que está: como não me interesso por música pelo estilo de vida
que ela endossa enquanto mercadoria simbólica, e sim pela substância
artística que ela condensa, não encontro motivos para apreciar o
último disco dos Tribalistas como obra de arte. Sim, sei que isso
renderia discussões epopeicas e intermináveis sobre o conceito de
“obra de arte” e a aplicabilidade no trabalho do trio, mas me
sinto senil o bastante para não ter paciência em dourar a pílula,
certo? Deixo isso para os digital influencers e
jornalistas dos cadernos de cultura. Eles vivem disso, eu não. Avante. Comentei
rapidamente na minha coluna passada que o novo álbum era um trabalho
“impregnado por uma adolescência tardia e estagnada”,
que se recusa a sair de sua redoma de cristal, fantasias e iPhone X
para encarar o mundo. Ouça Feliz e Saudável e
Um Só, por exemplo, e
veja se me engano. Até mesmo quando abordam temas importantes e
densos como o drama dos refugiados, a ocupação de escolas ou a vida
dura de retirantes nos grandes centros, a perspectiva é juvenil e
abobalhada, como escancaram letras de rara pobreza gramatical e
poética. Dê uma conferida em Diáspora,Lutar e Vencer e
Trabalivre e novamente
diga se me engano. Além do mais, em termos estritamente
musicológicos, o disco anda em círculos no que há de mais clichê,
previsível e palatável com o objetivo, penso eu, de tornar o
produto “Tribalistas” mais facilmente consumível pela maior
quantidade de seguidores (fã é coisa do passado) que se possa
imaginar. Bem, e como se sabe, seres da internet não
gostam muito de realizar esforço. Tudo tem de estar pronto e diluído
em papinha. Por
mais que eu não goste, devo admitir que até fazia sentido aquela
alegria adolescente e certa inocência púbere do álbum de estreia.
Estávamos em 2002, e os tempos eram um misto de otimismo,
ingenuidade e euforia. Quinze anos depois, esta mesma atmosfera
juvenil e “do bem” presente no novo disco me traz a impressão de
que os integrantes do Tribalistas – todos hoje na casa dos 50 anos
– não viveram o tempo histórico nem experienciaram a vida em sua
multidimensionalidade entre 2002 e 2017. Na condição de
tribalistas, foi como se por todo esse tempo tivessem encontrado
refúgio na Terra do Nunca e voltado para casa depois de cansarem de
brincar com Peter Pan e seus amiguinhos. O resultado é este: um
disco para adolescentes de meia idade.
- Giba Carvalho: Quinze
anos é uma eternidade, visto que o mundo é célere e as informações
são propagadas e absorvidas como o vento. Pois bem, esse período de
tempo foi suficiente para que os Tribalistas jogassem sua fama
adquirida pelo primeiro disco (2003) no lixo. Após reuniões
secretas, negadas com veemência pelos assessores de Arnaldo, Marisa
e Brown, foi lançado “Tribalistas” (2017). O
formato é o mesmo do primeiro trabalho. Porém, neste álbum
encontramos um Arnaldo Antunes contido, cantando no limite de sua voz
grave e recitando poemas. Nem perto do inquieto vocalista e
compositor dos Titãs e dos bons discos em carreira solo. Carlinhos
Brown parece oprimido no processo criativo, um mero coadjuvante. Ao
que me parece, portanto, Marisa é quem puxa o bonde na formatação
do disco, pois não resta dúvida que é uma cantora de altíssimo
nível. Creio
também que o trio percebeu parcialmente que o mercado mudou. Vivemos
a fase do pós-capitalismo e temos que compreender que o futuro será
feito à mão.
E é justamente nas quatro canções assinadas pelos Tribalistas (as
outras seis são parcerias) que encontramos o ponto forte do álbum.
Diáspora,
que fala da questão dos refugiados é, com sobras, a melhor do
disco. Em sua composição encontramos trechos bíblicos e citações
de poemas de Castro Alves e Sousândrade. Melodicamente é muito
interessante e é sem a menor dúvida o momento de maior destaque de
Carlinhos Brown no trabalho. Lutar
e Vencer tem tudo para tornar-se
um hino da nova geração pois fala das ocupações das escolas
(ainda que de um modo bastante adolescente), movimento este, bastante
apoiado por Marisa Monte. Feliz e
Saudável é uma canção
bastante animada e dançante. Uma espécie de Passe
em Casa paraguaia. Baião
do Mundo é um tributo a água,
tanto a sua presença, quanto a sua ausência no mundo. O
álbum não traz aos ouvintes nada do que não tenha sido visto
anteriormente. No entanto, o brilho das boas canções pop do
antecessor foi jogado à míngua. Conforme dito por algum pensador
contemporâneo: “desta vez, a união não fez a força”, muito
pelo contrário. Parece um disco feito exclusivamente para “luaus”,
nos quais, as estrelas se divertem mais que o público.
Cidade Selvagem - Publicação atual da Mythos Editora.
Há
exatos 10 anos, a série Cidade
Selvagem
(Fell)
foi iniciada pela dupla Warren Ellis e Ben Templesmith. No momento,
esse trabalho está suspenso em virtude de outros compromissos por
parte de Templesmith. Mesmo assim, na edição mais recente, publicada
no Brasil pela Mythos Editora, é possível entender e acompanhar as
histórias que estão basicamente fechadas. Apenas uma resposta ou
outra escapa, algo que deve ser esclarecido caso a série seja
retomada. As publicações de Cidade
Selvagem,
mesmo interrompidas, receberam indicações para o Prêmio Eisner (um
dos mais badalados no mundo das HQs) - a publicação da Mythos pode
ser encontrada em alguns sites, inclusive, sob um preço promocional no formato
de capa dura.
A
trama:
Baseia-se no cotidiano do detetive Richard Fell, transferido por
motivos não claros, para a cidade de Snowtown. Tal acontecido impede
até mesmo Fell de visitar a sua localidade anterior, a qual Fell se
refere como “o outro lado da ponte”. Agora residindo na cidade de
Snowtown, é preciso lidar com grave falta de detetives disponíveis
diante dos casos, o que acentua ainda mais o endurecimento de Fell, e
torna a sua rotina deveras assoberbada à medida que a história se
desenvolve.
A
Cidade:
Em Snowtown, o detetive Fell encontra um ambiente lúgubre, repleto
de crimes pesados e pela atitude blasé de seus habitantes. Diante de
tantas situações criminosas, destaca-se o fisiologismo da cidade,
dos seus habitantes que simplesmente ignoram fatos graves, reforçados
pelas atitudes de indiferença e das autoridades que remancham
processos, investigações, inquéritos, ao se alinharem com práticas
corruptas.
Como
trabalhar em uma cidade assim? Uma das válvulas de escape
encontradas por Fell aparece nos seus desabafos diante de Mayko – possivelmente a sua única amiga em Snowtown. Uma descendente de
vietnamitas, dona de um bar praticamente vazio, onde Fell, além de
abrir-se sobre as situações cascudas que tem de enfrentar, vai
beber um pouco e pedir ajuda da própria Mayko ao longo das
investigações.
Roteiro:
Assinado pelo grande Warren Ellis (autor de sucessos como Transmetropolitan,
Planetary,
The
Authority)
é o ápice da edição, traçada por caminhos impressionantes em
torno dos crimes, além dos diálogos ácidos e repletos de ironias
finas:
Desenhos:
Ben Templesmith aposta em traços que imprimem um tom expressionista
aos personagens, ao mesmo tempo em que lança formas mais
caricaturais (o que não me agradou muito). Neste tópico, destaco os
desenhos dos ambientes, que são muito bons e contribuem para a
construção de uma atmosfera sombria nas ruas de Snowtown. Isso pode
ser visto, por exemplo, nos momentos mais andarilhos do detetive Fell
e nas situações de franca violência urbana, além dos espaços
internos, tais como necrotérios, muquifos e orlas desertas.
Cidade
Selvagem é
um trabalho que vale a pena ser conferido. Trata-se de uma HQ
madura, que potencialmente nos leva a pensar sobre as próprias
condições de vida nas cidades violentas, endurecidas e cada vez
mais indiferentes aos crimes que lhe são perpetrados.
A
primeira coisa que você deve saber para se situar em o Cavaleiro Da
Lua 4 e 5 é: desconsidere a numeração das edições! Isso,
porque, ao serem publicadas pela Panini em meados de 2017, as duas
revistas saíram com as numerações 4 e 5 no Brasil, quando, na
realidade, integram uma nova saga iniciada em 2016 e que segue, até
o momento, nos Estados Unidos.
Esclarecida
a confusão, é bom registrar outra coisa fundamental: não é
preciso ter conhecimento prévio sobre o Cavaleiro da Lua para ler
ambas as edições publicadas aqui no Brasil. Isso porque, os dois
volumes de O Cavaleiro da Lua fazem parte de um reboot
feito
pela Marvel em 2015,
o All-New,
All-Different Marvel
–, uma resposta a outro reboot feito pela concorrente DC poucos anos antes. O que isso significou?
Bem, que uma parte dos personagens icônicos dessas editoras foram
“zerados” e deram início a novas sagas, inclusive com enredos
diferentes das narrativas mais clássicas e já consolidadas pela
mídia.
Sobre
as edições:
Ambas foram lançadas por um preço acessível (menos de R$ 20), mas
que, infelizmente, até o momento estão esgotadas. Oxalá, as
edições sejam relançadas e que venham em um formato de capa dura.
O volume 4, do Brasil, compreende Moon
Knight 1-5,
enquanto o volume 5 traz Moon
Knight
6 a 9 e Moon
Knight
2, de 1980. Atenção aqui! A reedição de Moon Knight 2, de 1980,
também pode ser encontrada na série Paladinos Marvel (também
publicada pela própria Panini). É verdade que, por um lado, houve
redundância ao se trazer parte de uma revista já publicada pela
própria editora Panini para as bancas, livrarias e sites.
Por outro lado, a inserção do volume 2, de 1980, tem um propósito
compreensível, uma vez que busca contribuir para o melhor
entendimento sobre o que está a ocorrer com o Cavaleiro da Lua nas
histórias, além de tornar a edição mais rica e variada,
sobretudo nos quesitos de narrativa e de ilustração.
Sobre
o Roteiro:
O Cavaleiro da Lua caiu nas mãos de Jeff Lemire, já conhecido por
outras realizações, dentre elas o Arqueiro
Verde
(2013-2014) e Essex
County.
Na Marvel, Lemire aproveitou que o Cavaleiro da Lua é um personagem
completamente maluco para inserir o leitor em um mundo conflitivo e
labiríntico, seja nas viagens surreais dos personagens, seja no
ponto de partida da trama. Vide a situação kafkiana, vivida por
Marc Spector, que de repente se vê dentro de um hospício sem saber
como foi parar nele e por qual motivo (além de ser considerado
louco) foi bater lá.
Sob
o roteiro de Lemire, não espere uma trama mais clichê sobre o que
pode ser uma HQ de super-herói, haja vista o tom da narrativa se
apresentar muito mais pautado pela subjetividade e transtornos de
personalidade, do que pelo viés da ação, da pancadaria, das
explosões e companhia limitada. Com um arco repleto de complexidades
e incertezas, o leitor passará a duvidar se o aquilo que o
personagem vivencia é algo plausível ou apenas parte de sua loucura
– um ponto onde se tem grande chance de mergulhos em fluxos
intrigantes, à medida que surgem diferentes situações e cenários.
Sobre
as ilustrações:
Acredito ser o ponto mais alto das edições. Um grande trunfo foi
trazer Greg Smallwood em um trabalho sensacional, ao explorar o
negative
space,
ou seja, as partes mais básicas da folha de papel, redimensionando
as bandas dos quadrinhos e abrindo mão de limites mais convencionais
das cores e dos traços. Vejamos um curto exemplo disso em O
Cavaleiro da Lua:
O Negative Space, por Greg Smallwood.
Capa de Moon Knight 1, por Greg Smallwood.
Para
coroar ainda mais a qualidade das edições, ao longo dos volumes, um
time de mais desenhistas não menos competentes começa a entrar:
Wilfredo Torres, Francesco Francavilla e James Stokoe imprimem uma
base mais ainda mais plástica, tanto para alternar a parte gráfica
das páginas, quanto para sinalizar melhor para o leitor as viradas
entre as diferentes cenas e personalidades apresentadas.
Ora
diante do ex-mercenário Marc Spector, ora ante o milionário
hollywoodiano Steven Grant, o taxista Jake Lockley, o piloto
intergaláctico, além do deus egípcio Khonshu, nos deparamos com a
pergunta derradeira: Qual entre eles seria o verdadeiro Cavaleiro da
Lua? Qual seria o real, ou mais: dentre tantas fendas e facetas,
haveria algum real para nós?
Musicalmente, 2017 foi o ano em
que dei o braço a torcer. Explico. Até então eu era um daqueles
colecionadores de discos incorrigíveis (e em extinção) que gostava
de garimpar os catálogos das gravadoras e fazia questão de comprar
os CD’s para ter fisicamente os álbuns. Entendia que possuir o CD,
suporte por excelência da música gravada (nunca fui um purista do
vinil), dava um sentido maior à fruição de seu conteúdo, pois
ritualizava a escuta e me proporcionava também uma interação
material/sensorial com os arredores do som: encarte, ficha técnica,
arte gráfica, disco enquanto item colecionável; o que
potencializava a experiência da audição. Além disso, o disco
físico estava sempre lá, disponível para quando eu quisesse
ouvi-lo. Nada mais fácil e prático. Até que eu resolvi
experimentar o Spotify. Foi uma revolução.
Para um “viciado
em música” como eu, ter acesso a um acervo gigantesco que
me disponibilizava tudo (ou quase tudo) o que buscava era um sonho
tornado realidade e foi o suficiente para transformar o meu jeito de
ouvir música. Discos que eu procurei a vida toda estavam lá, como
Skies of America, do Ornette
Coleman; raridades do universo jazzístico também, feito Steve
Lacy Plays Monk; discografias
inteiras de artistas e bandas importantes, idem; selos europeus como
a Deutsche Grammophon, Decca Classics e mais recentemente a ECM
Records, cujos títulos só chegavam aqui a preço de ouro,
igualmente estavam lá. Sem falar na infinidade de outros trabalhos a
serem descobertos, algo que estimulava minha atividade de crítico.
Mas, para não ser engolido pela plataforma de streaming
e me perder na imensidão de playlists,
precisei substituir minha empolgação pela disciplina: focava nos
álbuns, ouvindo-os inteiros, respeitando sua construção narrativa,
a história que contavam. Com isso, desviei
dos perigos da banalização da escuta e ouvi muita música como
nunca o fizera antes. Desse
mundaréu de discos,
selecionei quatro que
realmente fizeram minha cabeça, para compartilhar com os leitores do
blog.
Boa
escuta!
PS:
“Pra não dizer que não falei das flores”, coloquei na lista um
disco que não está disponível no Spotify. Mas, este é um daqueles
poucos que é preciso ter. Abro a coluna com ele.
1. Thelonious Monk – Les
Liaisons Dangereuses (1960):
Pode-se dizer que este disco é
fruto de um maravilhoso acaso. Os produtores Zev Feldman, Francoise
Lê Xuân e Frédéric Thomas buscavam por material inédito do
saxofonista francês Barney Wilen e por conta disso acabaram batendo
nos arquivos de seu produtor nos anos 1950, Marcel Romano.
Embrenhados no acervo, localizaram algumas fitas que traziam escrito
apenas “Thelonious Monk”. Ficaram encucados. Quando ouviram os
rolos, constataram que se tratava da íntegra da sessão de gravação
da trilha sonora “perdida” do filme Les Liaisons Dangereuses,
de Roger Vadim, proporcionada pelo Thelonious Monk Quartet
acompanhado por Wilen, que dobrava o sax tenor com Charlie Rouse. Um
verdadeiro tesouro.
O
resultado desse achado é um primor de edição e som disposto em um
álbum duplo. Cuidado este também dispensado ao livreto, diga-se,
que, além de fotos da gravação, traz vários textos sobre a sessão
e a importância de Monk para a cena jazzística francesa à época.
Já a música é do mais alto nível. Temas do cânone de Thelonious
tocados do modo mais espontâneo possível, no calor da hora, com
direito a explorações de texturas, suspensão da melodia-tema e
incursões às fronteiras do esquema chorus,
no intuito, imagino, de dialogar com o filme. Destaque para a
contundente mensagem straight ahead
de Rhythm-a-Ning, que
abre o primeiro disco; a conexão profunda e inesgotável de Monk com
o blues expressa na improvisada peça solo Six in One;
o arranjo não convencional da balada Light Blue;
o desafio cromático descendente e ascendente de Well, You
Needn’t;os
acordes cortantes tão caros ao pianista; a coesão e swing
da seção rítmica; a abordagem
contrastante dos tenores nas improvisações.
2. Mônica Salmaso – Caipira:
No ano de 2017, a música
brasileira que tem espaço garantido na Grande Mídia foi marcada
pelo projeto de Anitta de conquistar o mundo intitulado “CheckMate”.
Ousado mapeamento estratégico do mercado pop internacional, o
projeto foi iniciado com Will I See You e concluído com chave
de ouro, muitas visualizações, likes e
buzz com Vai Malandra. Celulites à parte, na
música dita “séria”, Os Tribalistas resolveram se juntar mais
uma vez e nos brindar com um álbum novo, como se o Brasil já não
tivesse problemas o suficiente. Neste disco do trio impregnado de uma
adolescência tardia e estagnada, ouvimos versos “poderosos” como
“Atravessamos pro outro lado / No Rio Vermelho do mar sagrado / Os
center shoppings superlotados / De retirantes refugiados”
(Diáspora); “Sou easy, eu não entro em crise / Tenho tempo livre
/ Pra me trabalhar” (Trabalivre); “Estamos dando aula / De
organização / Reformando a sala / Dormindo no chão” (Lutar e
Vencer). Sem esquecer também das “Sarradas no Ar” e outras
bizarrices que viralizaram país à fora; e sem falar dos artistas
locais que, via de regra, só existem para os seus pares, editais de
fomento e o Bar Central.
Por sorte, na periferia da
produção musical tupiniquim, encontrei abrigo e refúgio no
delicado trabalho da cantora paulista Mônica Salmaso, Caipira.
Neste disco, a artista nos convida a adentrar em seu imaginário
“caipira”, por assim dizer, com sua interpretação do
interiorano e seu entendimento desse universo simbólico. Apoiada por
um timaço de instrumentistas (Teco Cardoso, Neymar Dias, Proveta,
Toninho Ferragutti), Salmaso interpreta 14 canções que sondam as
raízes da música popular brasileira e constrói, com isso, um mundo
de beleza tão frágil que parece prestes a se quebrar no compasso
seguinte. É bem verdade que o excesso de zelo com os arranjos e a
empostação podem tornar sua música mais próxima do acadêmico do
que do artístico. Isso é um fato. Mas, há tanto respeito e devoção
envolvidos em sua busca pelo evanescente da música, algo tão
negligenciado hoje em dia, que é impossível não se encantar com a
arquitetura do som. Destaque para Água da Minha Sede,
famosa na voz de Zeca Pagodinho, que transfigurada em moda de viola
revela nuances harmônicas e imagens poéticas que subjazem ante a
presença rítmica do samba.
3. Stefano
Bollani – Joy in Spite of Everything:
O jazz não nasce do virtuosismo.
Na verdade, ele é forjado na espontaneidade da performance pela
comunhão de personalidades musicais distintas, pelo diálogo
constante de identidades artísticas singulares que convergem e se
expressam criativamente num território chamado “tema”. A partir
daí, uma dimensão de imprevisibilidade é conferida à música,
tornando qualquer resultado concreto insondável, qualquer repetição,
impossível.
Não à toa, Keith Jarrett afirma que “não
se trata do tema, e sim do que você traz ao tema”,
e considerando que esse “você” não é o mesmo a cada
performance, tudo muda. Compor material temático especialmente para
determinados instrumentistas reunidos numa formação específica
pode facilitar conexões, incitar outros riscos (sempre tão
necessários) e fomentar a desejada eletricidade do novo, mas não
pode subverter esse princípio indispensável ao jazz, sob o risco de
esvaziá-lo. Compreendendo tudo isso, Stefano Bollani concebeu um
álbum brilhante: Joy
in Spite of Everything.
O
disco nasce do desejo do pianista italiano de incorporar a seu trio
dois instrumentistas de rara e particularíssima artisticidade: o
guitarrista Bill Frisell e o saxofonista Mark Turner. Assim,
percorrendo nove temas escritos por Bollani para o projeto, o
quinteto – que eventualmente se transmuta trio, quarteto e duo –
embrenha-se nas desconhecidas veredas inerentes a novas composições
para, a partir delas, construir um sólido elo emocional e ensejar a
manifestação da individualidade de cada músico através de
improvisações sobre a forma. É perceptível na atmosfera do disco
uma “estética da descoberta” oriunda da espontaneidade da
ocasião: músicos que nunca tocaram juntos antes se encontrando pela
primeira vez num estúdio para gravar temas novos (logo, inéditos).
O resultado é sublime.
Destaque
para o balanço contido e idílico de Easy
Healing;
a reverência às tradições do hard
bop em
No Pope No
Party;
os timbres, os voicings,
a utilização dos espaços e o fraseado não-prolífico de Bill
Frisell (especialmente em Easy
Healing e
Tales From The
Time Loop); o
som robusto de Mark Turner, sua mestria na construção argumentativa
e na condução extática dos improvisos (especialmente em No
Pope No Party e
Vale)
e suas modulações repentinas do grave para o agudo do instrumento,
visando conferir força expressiva a seu discurso (ver Las
Hortencias);
o compingatento,
a capacidade de Bollani em transformar breves motivos em verdadeiras
narrativas improvisadas (especialmente na faixa-título) e o seu
virtuosismo desprovido de vulgaridade.
4. Meshuggah
– The Violent Sleep of Reason:
Intrincados
padrões polimétricos, atmosfera carregada pelo peso de guitarras
com 8 oito cordas e pelo brutal conflito métrico presente nas
canções, vocal gutural furioso e rítmico, letras que erigem
utopias negativas sobre declínio da Razão; tudo isso está contido
no último trabalho da banda sueca Meshuggah, chamado The Violent
Sleep of Reason. Em seu oitavo
álbum de estúdio, o grupo se inspira na água-forte de Goya
intitulada O Sono da Razão Produz Monstros para
denunciar os demônios de nosso tempo nascidos do vácuo deixado pela
letargia da Razão iluminista: o terrorismo, a intolerância étnica
e religiosa, a banalização da violência, a sedução do
tecnológico e também a “passividade participativa”, isto é,
sem senso crítico ou reação, do indivíduo envolvido nas
circunstâncias dos eventos atuais. Novos monstros de irracionalismo,
conformismo e barbárie que envolvem, dominam e aprisionam aqueles
que aderem voluntariamente à inércia do pensamento, deixam-se
seduzir pela confortável agenda da repetição irrefletida de
discursos e ideologias. O que é semioticamente, diga-se, escancarado
pelo grupo na arte do disco. Destaque para as letras e o trabalho da
bateria de Tomas Haake (especialmente em Clockworks,
Born in Dissonance e
na faixa-título), as melodias sinuosas e riffs graves
das guitarras, a utilização do ritmo enquanto esteio de todo o
desenvolvimento temático e do gestual simbólico das composições.