sábado, 20 de janeiro de 2018

O Que Ouvi de Interessante em 2017 – por Bruno Vitorino

Musicalmente, 2017 foi o ano em que dei o braço a torcer. Explico. Até então eu era um daqueles colecionadores de discos incorrigíveis (e em extinção) que gostava de garimpar os catálogos das gravadoras e fazia questão de comprar os CD’s para ter fisicamente os álbuns. Entendia que possuir o CD, suporte por excelência da música gravada (nunca fui um purista do vinil), dava um sentido maior à fruição de seu conteúdo, pois ritualizava a escuta e me proporcionava também uma interação material/sensorial com os arredores do som: encarte, ficha técnica, arte gráfica, disco enquanto item colecionável; o que potencializava a experiência da audição. Além disso, o disco físico estava sempre lá, disponível para quando eu quisesse ouvi-lo. Nada mais fácil e prático. Até que eu resolvi experimentar o Spotify. Foi uma revolução.

Para um “viciado em música” como eu, ter acesso a um acervo gigantesco que me disponibilizava tudo (ou quase tudo) o que buscava era um sonho tornado realidade e foi o suficiente para transformar o meu jeito de ouvir música. Discos que eu procurei a vida toda estavam lá, como Skies of America, do Ornette Coleman; raridades do universo jazzístico também, feito Steve Lacy Plays Monk; discografias inteiras de artistas e bandas importantes, idem; selos europeus como a Deutsche Grammophon, Decca Classics e mais recentemente a ECM Records, cujos títulos só chegavam aqui a preço de ouro, igualmente estavam lá. Sem falar na infinidade de outros trabalhos a serem descobertos, algo que estimulava minha atividade de crítico. Mas, para não ser engolido pela plataforma de streaming e me perder na imensidão de playlists, precisei substituir minha empolgação pela disciplina: focava nos álbuns, ouvindo-os inteiros, respeitando sua construção narrativa, a história que contavam. Com isso, desviei dos perigos da banalização da escuta e ouvi muita música como nunca o fizera antes. Desse mundaréu de discos, selecionei quatro que realmente fizeram minha cabeça, para compartilhar com os leitores do blog.

Boa escuta!

PS: “Pra não dizer que não falei das flores”, coloquei na lista um disco que não está disponível no Spotify. Mas, este é um daqueles poucos que é preciso ter. Abro a coluna com ele.

1. Thelonious Monk – Les Liaisons Dangereuses (1960):



Pode-se dizer que este disco é fruto de um maravilhoso acaso. Os produtores Zev Feldman, Francoise Lê Xuân e Frédéric Thomas buscavam por material inédito do saxofonista francês Barney Wilen e por conta disso acabaram batendo nos arquivos de seu produtor nos anos 1950, Marcel Romano. Embrenhados no acervo, localizaram algumas fitas que traziam escrito apenas “Thelonious Monk”. Ficaram encucados. Quando ouviram os rolos, constataram que se tratava da íntegra da sessão de gravação da trilha sonora “perdida” do filme Les Liaisons Dangereuses, de Roger Vadim, proporcionada pelo Thelonious Monk Quartet acompanhado por Wilen, que dobrava o sax tenor com Charlie Rouse. Um verdadeiro tesouro.

O resultado desse achado é um primor de edição e som disposto em um álbum duplo. Cuidado este também dispensado ao livreto, diga-se, que, além de fotos da gravação, traz vários textos sobre a sessão e a importância de Monk para a cena jazzística francesa à época. Já a música é do mais alto nível. Temas do cânone de Thelonious tocados do modo mais espontâneo possível, no calor da hora, com direito a explorações de texturas, suspensão da melodia-tema e incursões às fronteiras do esquema chorus, no intuito, imagino, de dialogar com o filme. Destaque para a contundente mensagem straight ahead de Rhythm-a-Ning, que abre o primeiro disco; a conexão profunda e inesgotável de Monk com o blues expressa na improvisada peça solo Six in One; o arranjo não convencional da balada Light Blue; o desafio cromático descendente e ascendente de Well, You Needn’t; os acordes cortantes tão caros ao pianista; a coesão e swing da seção rítmica; a abordagem contrastante dos tenores nas improvisações.



2. Mônica Salmaso – Caipira:


No ano de 2017, a música brasileira que tem espaço garantido na Grande Mídia foi marcada pelo projeto de Anitta de conquistar o mundo intitulado “CheckMate”. Ousado mapeamento estratégico do mercado pop internacional, o projeto foi iniciado com Will I See You e concluído com chave de ouro, muitas visualizações, likes e buzz com Vai Malandra. Celulites à parte, na música dita “séria”, Os Tribalistas resolveram se juntar mais uma vez e nos brindar com um álbum novo, como se o Brasil já não tivesse problemas o suficiente. Neste disco do trio impregnado de uma adolescência tardia e estagnada, ouvimos versos “poderosos” como “Atravessamos pro outro lado / No Rio Vermelho do mar sagrado / Os center shoppings superlotados / De retirantes refugiados” (Diáspora); “Sou easy, eu não entro em crise / Tenho tempo livre / Pra me trabalhar” (Trabalivre); “Estamos dando aula / De organização / Reformando a sala / Dormindo no chão” (Lutar e Vencer). Sem esquecer também das “Sarradas no Ar” e outras bizarrices que viralizaram país à fora; e sem falar dos artistas locais que, via de regra, só existem para os seus pares, editais de fomento e o Bar Central.

Por sorte, na periferia da produção musical tupiniquim, encontrei abrigo e refúgio no delicado trabalho da cantora paulista Mônica Salmaso, Caipira. Neste disco, a artista nos convida a adentrar em seu imaginário “caipira”, por assim dizer, com sua interpretação do interiorano e seu entendimento desse universo simbólico. Apoiada por um timaço de instrumentistas (Teco Cardoso, Neymar Dias, Proveta, Toninho Ferragutti), Salmaso interpreta 14 canções que sondam as raízes da música popular brasileira e constrói, com isso, um mundo de beleza tão frágil que parece prestes a se quebrar no compasso seguinte. É bem verdade que o excesso de zelo com os arranjos e a empostação podem tornar sua música mais próxima do acadêmico do que do artístico. Isso é um fato. Mas, há tanto respeito e devoção envolvidos em sua busca pelo evanescente da música, algo tão negligenciado hoje em dia, que é impossível não se encantar com a arquitetura do som. Destaque para Água da Minha Sede, famosa na voz de Zeca Pagodinho, que transfigurada em moda de viola revela nuances harmônicas e imagens poéticas que subjazem ante a presença rítmica do samba.


3. Stefano Bollani – Joy in Spite of Everything:


O jazz não nasce do virtuosismo. Na verdade, ele é forjado na espontaneidade da performance pela comunhão de personalidades musicais distintas, pelo diálogo constante de identidades artísticas singulares que convergem e se expressam criativamente num território chamado “tema”. A partir daí, uma dimensão de imprevisibilidade é conferida à música, tornando qualquer resultado concreto insondável, qualquer repetição, impossível. Não à toa, Keith Jarrett afirma que “não se trata do tema, e sim do que você traz ao tema”, e considerando que esse “você” não é o mesmo a cada performance, tudo muda. Compor material temático especialmente para determinados instrumentistas reunidos numa formação específica pode facilitar conexões, incitar outros riscos (sempre tão necessários) e fomentar a desejada eletricidade do novo, mas não pode subverter esse princípio indispensável ao jazz, sob o risco de esvaziá-lo. Compreendendo tudo isso, Stefano Bollani concebeu um álbum brilhante: Joy in Spite of Everything.

O disco nasce do desejo do pianista italiano de incorporar a seu trio dois instrumentistas de rara e particularíssima artisticidade: o guitarrista Bill Frisell e o saxofonista Mark Turner. Assim, percorrendo nove temas escritos por Bollani para o projeto, o quinteto – que eventualmente se transmuta trio, quarteto e duo – embrenha-se nas desconhecidas veredas inerentes a novas composições para, a partir delas, construir um sólido elo emocional e ensejar a manifestação da individualidade de cada músico através de improvisações sobre a forma. É perceptível na atmosfera do disco uma “estética da descoberta” oriunda da espontaneidade da ocasião: músicos que nunca tocaram juntos antes se encontrando pela primeira vez num estúdio para gravar temas novos (logo, inéditos). O resultado é sublime.

Destaque para o balanço contido e idílico de Easy Healing; a reverência às tradições do hard bop em No Pope No Party; os timbres, os voicings, a utilização dos espaços e o fraseado não-prolífico de Bill Frisell (especialmente em Easy Healing e Tales From The Time Loop); o som robusto de Mark Turner, sua mestria na construção argumentativa e na condução extática dos improvisos (especialmente em No Pope No Party e Vale) e suas modulações repentinas do grave para o agudo do instrumento, visando conferir força expressiva a seu discurso (ver Las Hortencias); o comping atento, a capacidade de Bollani em transformar breves motivos em verdadeiras narrativas improvisadas (especialmente na faixa-título) e o seu virtuosismo desprovido de vulgaridade.


4. Meshuggah – The Violent Sleep of Reason:


Intrincados padrões polimétricos, atmosfera carregada pelo peso de guitarras com 8 oito cordas e pelo brutal conflito métrico presente nas canções, vocal gutural furioso e rítmico, letras que erigem utopias negativas sobre declínio da Razão; tudo isso está contido no último trabalho da banda sueca Meshuggah, chamado The Violent Sleep of Reason. Em seu oitavo álbum de estúdio, o grupo se inspira na água-forte de Goya intitulada O Sono da Razão Produz Monstros para denunciar os demônios de nosso tempo nascidos do vácuo deixado pela letargia da Razão iluminista: o terrorismo, a intolerância étnica e religiosa, a banalização da violência, a sedução do tecnológico e também a “passividade participativa”, isto é, sem senso crítico ou reação, do indivíduo envolvido nas circunstâncias dos eventos atuais. Novos monstros de irracionalismo, conformismo e barbárie que envolvem, dominam e aprisionam aqueles que aderem voluntariamente à inércia do pensamento, deixam-se seduzir pela confortável agenda da repetição irrefletida de discursos e ideologias. O que é semioticamente, diga-se, escancarado pelo grupo na arte do disco. Destaque para as letras e o trabalho da bateria de Tomas Haake (especialmente em Clockworks, Born in Dissonance e na faixa-título), as melodias sinuosas e riffs graves das guitarras, a utilização do ritmo enquanto esteio de todo o desenvolvimento temático e do gestual simbólico das composições.

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