Musicalmente, 2017 foi o ano em
que dei o braço a torcer. Explico. Até então eu era um daqueles
colecionadores de discos incorrigíveis (e em extinção) que gostava
de garimpar os catálogos das gravadoras e fazia questão de comprar
os CD’s para ter fisicamente os álbuns. Entendia que possuir o CD,
suporte por excelência da música gravada (nunca fui um purista do
vinil), dava um sentido maior à fruição de seu conteúdo, pois
ritualizava a escuta e me proporcionava também uma interação
material/sensorial com os arredores do som: encarte, ficha técnica,
arte gráfica, disco enquanto item colecionável; o que
potencializava a experiência da audição. Além disso, o disco
físico estava sempre lá, disponível para quando eu quisesse
ouvi-lo. Nada mais fácil e prático. Até que eu resolvi
experimentar o Spotify. Foi uma revolução.
Para um “viciado
em música” como eu, ter acesso a um acervo gigantesco que
me disponibilizava tudo (ou quase tudo) o que buscava era um sonho
tornado realidade e foi o suficiente para transformar o meu jeito de
ouvir música. Discos que eu procurei a vida toda estavam lá, como
Skies of America, do Ornette
Coleman; raridades do universo jazzístico também, feito Steve
Lacy Plays Monk; discografias
inteiras de artistas e bandas importantes, idem; selos europeus como
a Deutsche Grammophon, Decca Classics e mais recentemente a ECM
Records, cujos títulos só chegavam aqui a preço de ouro,
igualmente estavam lá. Sem falar na infinidade de outros trabalhos a
serem descobertos, algo que estimulava minha atividade de crítico.
Mas, para não ser engolido pela plataforma de streaming
e me perder na imensidão de playlists,
precisei substituir minha empolgação pela disciplina: focava nos
álbuns, ouvindo-os inteiros, respeitando sua construção narrativa,
a história que contavam. Com isso, desviei
dos perigos da banalização da escuta e ouvi muita música como
nunca o fizera antes. Desse
mundaréu de discos,
selecionei quatro que
realmente fizeram minha cabeça, para compartilhar com os leitores do
blog.
Boa
escuta!
PS:
“Pra não dizer que não falei das flores”, coloquei na lista um
disco que não está disponível no Spotify. Mas, este é um daqueles
poucos que é preciso ter. Abro a coluna com ele.
Pode-se dizer que este disco é
fruto de um maravilhoso acaso. Os produtores Zev Feldman, Francoise
Lê Xuân e Frédéric Thomas buscavam por material inédito do
saxofonista francês Barney Wilen e por conta disso acabaram batendo
nos arquivos de seu produtor nos anos 1950, Marcel Romano.
Embrenhados no acervo, localizaram algumas fitas que traziam escrito
apenas “Thelonious Monk”. Ficaram encucados. Quando ouviram os
rolos, constataram que se tratava da íntegra da sessão de gravação
da trilha sonora “perdida” do filme Les Liaisons Dangereuses,
de Roger Vadim, proporcionada pelo Thelonious Monk Quartet
acompanhado por Wilen, que dobrava o sax tenor com Charlie Rouse. Um
verdadeiro tesouro.
O
resultado desse achado é um primor de edição e som disposto em um
álbum duplo. Cuidado este também dispensado ao livreto, diga-se,
que, além de fotos da gravação, traz vários textos sobre a sessão
e a importância de Monk para a cena jazzística francesa à época.
Já a música é do mais alto nível. Temas do cânone de Thelonious
tocados do modo mais espontâneo possível, no calor da hora, com
direito a explorações de texturas, suspensão da melodia-tema e
incursões às fronteiras do esquema chorus,
no intuito, imagino, de dialogar com o filme. Destaque para a
contundente mensagem straight ahead
de Rhythm-a-Ning, que
abre o primeiro disco; a conexão profunda e inesgotável de Monk com
o blues expressa na improvisada peça solo Six in One;
o arranjo não convencional da balada Light Blue;
o desafio cromático descendente e ascendente de Well, You
Needn’t; os
acordes cortantes tão caros ao pianista; a coesão e swing
da seção rítmica; a abordagem
contrastante dos tenores nas improvisações.
2. Mônica Salmaso – Caipira:
No ano de 2017, a música
brasileira que tem espaço garantido na Grande Mídia foi marcada
pelo projeto de Anitta de conquistar o mundo intitulado “CheckMate”.
Ousado mapeamento estratégico do mercado pop internacional, o
projeto foi iniciado com Will I See You e concluído com chave
de ouro, muitas visualizações, likes e
buzz com Vai Malandra. Celulites à parte, na
música dita “séria”, Os Tribalistas resolveram se juntar mais
uma vez e nos brindar com um álbum novo, como se o Brasil já não
tivesse problemas o suficiente. Neste disco do trio impregnado de uma
adolescência tardia e estagnada, ouvimos versos “poderosos” como
“Atravessamos pro outro lado / No Rio Vermelho do mar sagrado / Os
center shoppings superlotados / De retirantes refugiados”
(Diáspora); “Sou easy, eu não entro em crise / Tenho tempo livre
/ Pra me trabalhar” (Trabalivre); “Estamos dando aula / De
organização / Reformando a sala / Dormindo no chão” (Lutar e
Vencer). Sem esquecer também das “Sarradas no Ar” e outras
bizarrices que viralizaram país à fora; e sem falar dos artistas
locais que, via de regra, só existem para os seus pares, editais de
fomento e o Bar Central.
Por sorte, na periferia da
produção musical tupiniquim, encontrei abrigo e refúgio no
delicado trabalho da cantora paulista Mônica Salmaso, Caipira.
Neste disco, a artista nos convida a adentrar em seu imaginário
“caipira”, por assim dizer, com sua interpretação do
interiorano e seu entendimento desse universo simbólico. Apoiada por
um timaço de instrumentistas (Teco Cardoso, Neymar Dias, Proveta,
Toninho Ferragutti), Salmaso interpreta 14 canções que sondam as
raízes da música popular brasileira e constrói, com isso, um mundo
de beleza tão frágil que parece prestes a se quebrar no compasso
seguinte. É bem verdade que o excesso de zelo com os arranjos e a
empostação podem tornar sua música mais próxima do acadêmico do
que do artístico. Isso é um fato. Mas, há tanto respeito e devoção
envolvidos em sua busca pelo evanescente da música, algo tão
negligenciado hoje em dia, que é impossível não se encantar com a
arquitetura do som. Destaque para Água da Minha Sede,
famosa na voz de Zeca Pagodinho, que transfigurada em moda de viola
revela nuances harmônicas e imagens poéticas que subjazem ante a
presença rítmica do samba.
3. Stefano
Bollani – Joy in Spite of Everything:
O jazz não nasce do virtuosismo.
Na verdade, ele é forjado na espontaneidade da performance pela
comunhão de personalidades musicais distintas, pelo diálogo
constante de identidades artísticas singulares que convergem e se
expressam criativamente num território chamado “tema”. A partir
daí, uma dimensão de imprevisibilidade é conferida à música,
tornando qualquer resultado concreto insondável, qualquer repetição,
impossível.
Não à toa, Keith Jarrett afirma que “não
se trata do tema, e sim do que você traz ao tema”,
e considerando que esse “você” não é o mesmo a cada
performance, tudo muda. Compor material temático especialmente para
determinados instrumentistas reunidos numa formação específica
pode facilitar conexões, incitar outros riscos (sempre tão
necessários) e fomentar a desejada eletricidade do novo, mas não
pode subverter esse princípio indispensável ao jazz, sob o risco de
esvaziá-lo. Compreendendo tudo isso, Stefano Bollani concebeu um
álbum brilhante: Joy
in Spite of Everything.
O
disco nasce do desejo do pianista italiano de incorporar a seu trio
dois instrumentistas de rara e particularíssima artisticidade: o
guitarrista Bill Frisell e o saxofonista Mark Turner. Assim,
percorrendo nove temas escritos por Bollani para o projeto, o
quinteto – que eventualmente se transmuta trio, quarteto e duo –
embrenha-se nas desconhecidas veredas inerentes a novas composições
para, a partir delas, construir um sólido elo emocional e ensejar a
manifestação da individualidade de cada músico através de
improvisações sobre a forma. É perceptível na atmosfera do disco
uma “estética da descoberta” oriunda da espontaneidade da
ocasião: músicos que nunca tocaram juntos antes se encontrando pela
primeira vez num estúdio para gravar temas novos (logo, inéditos).
O resultado é sublime.
Destaque
para o balanço contido e idílico de Easy
Healing;
a reverência às tradições do hard
bop em
No Pope No
Party;
os timbres, os voicings,
a utilização dos espaços e o fraseado não-prolífico de Bill
Frisell (especialmente em Easy
Healing e
Tales From The
Time Loop); o
som robusto de Mark Turner, sua mestria na construção argumentativa
e na condução extática dos improvisos (especialmente em No
Pope No Party e
Vale)
e suas modulações repentinas do grave para o agudo do instrumento,
visando conferir força expressiva a seu discurso (ver Las
Hortencias);
o comping
atento,
a capacidade de Bollani em transformar breves motivos em verdadeiras
narrativas improvisadas (especialmente na faixa-título) e o seu
virtuosismo desprovido de vulgaridade.
4. Meshuggah
– The Violent Sleep of Reason:
Intrincados
padrões polimétricos, atmosfera carregada pelo peso de guitarras
com 8 oito cordas e pelo brutal conflito métrico presente nas
canções, vocal gutural furioso e rítmico, letras que erigem
utopias negativas sobre declínio da Razão; tudo isso está contido
no último trabalho da banda sueca Meshuggah, chamado The Violent
Sleep of Reason. Em seu oitavo
álbum de estúdio, o grupo se inspira na água-forte de Goya
intitulada O Sono da Razão Produz Monstros para
denunciar os demônios de nosso tempo nascidos do vácuo deixado pela
letargia da Razão iluminista: o terrorismo, a intolerância étnica
e religiosa, a banalização da violência, a sedução do
tecnológico e também a “passividade participativa”, isto é,
sem senso crítico ou reação, do indivíduo envolvido nas
circunstâncias dos eventos atuais. Novos monstros de irracionalismo,
conformismo e barbárie que envolvem, dominam e aprisionam aqueles
que aderem voluntariamente à inércia do pensamento, deixam-se
seduzir pela confortável agenda da repetição irrefletida de
discursos e ideologias. O que é semioticamente, diga-se, escancarado
pelo grupo na arte do disco. Destaque para as letras e o trabalho da
bateria de Tomas Haake (especialmente em Clockworks,
Born in Dissonance e
na faixa-título), as melodias sinuosas e riffs graves
das guitarras, a utilização do ritmo enquanto esteio de todo o
desenvolvimento temático e do gestual simbólico das composições.
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