Charles Mingus |
É muito fácil ser um gênio
musical hoje em dia. Num mundo onde os artistas são celebridades, esse termo
foi tão devassado a ponto de perder seu significado ligado à criação artística
propriamente dita e se reduzir a uma espécie de selo de qualidade da indústria
cultural. Sob essa ótica, ao músico não é mais imprescindível o domínio dos
recursos técnicos, nem a ruptura das normas estéticas estabelecidas e muito
menos uma profusão criativa inesgotável para se adentrar na galeria dos ungidos
pela providência. Na verdade, o fundamental é que esse indivíduo concilie uma
domesticada postura iconoclasta a uma boa rede de contatos (produção executiva,
assessoria de imprensa e networking baseado
na “rasgação de seda” gratuita) e que sua “arte” remeta o grande público a
certa sofisticação intelectual de grife. Pronto! Em pouco tempo, esse
empreendedor – não consigo visualizar de outra forma – se consagrará o mais
novo gênio a promover a última grande revolução no mundo da arte. Lucro
garantido!
No entanto, a concepção de gênio
vem do século XVIII com o ideal romântico alemão do movimento “Tempestade e
Ímpeto” (Sturm und Drang). Em
contraponto ao apuro formal do Classicismo e ao desenfreado racionalismo
iluminista, o Romantismo apontava para a criação espiritual que, nascida da
imaginação humana, emprestava significação nova à Natureza, enaltecendo, com
isso, o caráter insondável e mítico da arte. Assim, tendo como ponto de partida
o material bruto da realidade, o autêntico gênio era aquele artista que, num
vórtice criativo irrefreável, superava o esmero do talento e se consumia por
inteiro na intensa tarefa de criar um mundo subjetivo repleto de expressão
passional que falasse às múltiplas forças que constituem o todo do Homem. E é
justamente nesse sentido do termo que repousa a genialidade de Charles Mingus.
Uma das figuras mais controversas
do jazz, Mingus teve uma carreira de mais de 40 anos marcada por uma imaginação
criativa inesgotável, oscilações drásticas de temperamento e dificuldades
financeiras desesperadoras. Nascido numa base militar em Nogales, Arizona, em
22 de abril de 1922, mudou-se para Watts, um bairro proletário negro ao sul de
Los Angeles (LA), onde fincou suas bases. Iniciou seus estudos no trombone aos
6 anos, mas logo o trocou pelo violoncelo por conta de suas pretensões na
música erudita. Esmagado pelo preconceito racial que pairava sobre o ambiente
das orquestras, ouviu certa vez de seu amigo, o saxofonista Buddy Collete:
“Você é negro. Nunca vai vencer na música clássica, por melhor que seja. Se
quer tocar, tem de tocar um instrumento negro. Não pode dar socos num
violoncelo, então tem de aprender a dar socos no baixo, Charlie” [i]. No
outro dia, foi ao centro de LA e trocou seu cello
por um contrabaixo alemão. Nascia o prodígio.
Como um autêntico gênio
romântico, Mingus costumava dizer que seu virtuosismo instrumental era fruto de
muito esforço, mas que sua facilidade para composição lhe havia sido concedida
por Deus. Fundindo com um brilhantismo ímpar as mais profundas raízes
folclóricas (gospel, blues e ragtime) ao radicalismo vanguardista (bebop, jazz avant-garde e música européia contemporânea), o compositor expunha
em seus temas sua visão de mundo. Neles podem ser encontrados seu ativismo
político em prol dos movimentos civis negros, reminiscências de sua juventude
dura, sua necessidade de amar, e, principalmente, a fragilidade emotiva, velada
sob o manto da rudeza, de um indivíduo que não conseguia se integrar a seu
meio. Sob esse aspecto, a sua música, “ao mesmo tempo que denuncia a
insatisfação com o real, passa a oferecer, contra ele, o abrigo do ideal
decepcionado, que se constitui refúgio, e que transforma o refúgio em sucedâneo
de aspirações insatisfeitas”[ii]. O
repouso, seja harmônico, melódico, rítmico ou psicológico; quando aparece, vem
às custas de muita tensão.
No seu auge criativo (1956-65), Charles
Mingus legou à humanidade uma discografia repleta de pérolas: Mingus At The
Bohemia, Pithecanthropus Erectus, Blues and Roots, Mingus Ah Um (um excelente
ponto de partida aos que desejam se iniciar em seu universo), Charles Mingus
Presents Charles Mingus, “Mingus, Mingus, Mingus, Mingus, Mingus”, dentre
outros. Em seus ensembles e combos, o
compositor agregava a nata dos instrumentistas comprometidos com a ideia de
expansão das barreiras estéticas no jazz: Max Roach, Bill Evans, Mal Waldron,
Booker Ervin, Yusef Lateef, Eric Dolphy, Dannie Richmond (seu alter ego musical),
foram alguns nomes que passaram por seus grupos. Contudo, foi com o The Black
Saint and The Sinner Lady, de 1963, que o baixista revolucionou o jazz
orquestral, levando-o a patamares que nem mesmo Duke Ellington havia conseguido
e concebeu sua mais profunda e individual obra.
Erudito na forma e jazzístico na
linguagem, The Black Saint and The Sinner Lady é um balé em seis partes que
examina de maneira detalhada a psique
sofrida de Mingus pondo em paralelo, basicamente, dois grandes elementos – o
amor e o conflito – que podem ser claramente percebidos na alternância brusca
entre os momentos de lirismo melancólico e de caos devastador. Sobre o alicerce
de dissonâncias abrasivas nos graves (o diálogo entre o sax barítono e a tuba é
simplesmente fantástico), o compositor constrói um verdadeiro coral com os
sopros e metais os quais, juntos, dão suporte à voz tortuosa dos solistas –
destaque para o sax alto de Charlie Mariano. Porém, aqui Mingus leva adiante a
tradição orquestral das big bands ao libertar
a seção rítmica da função de âncora rítmico-harmônica e ao promover uma maior
interação entre as vozes dos naipes por meio da improvisação coletiva. Musicalmente,
o resultado é um contraste de timbres e uma riqueza de tessitura que denunciam
seu total controle das estruturas, sua plena capacidade expressiva e seu
cuidado perfeccionista com cada compasso da obra. Psicologicamente, o disco é
uma “caça às bruxas” interna; um livro escrito em primeira pessoa.
Por
todas as razões apresentadas, considero Charles Mingus um compositor
indispensável àqueles que veem na música uma experiência transcendental. Um
gênio por não apenas comunicar, mas impor seu mundo interior. Ele é um daqueles
artistas que, como diria Manuel Bandeira, ”em vez da estrada real da fama
fácil, preferiu nobremente a picada solitária dos batedores de terras virgens”[iii].
Assolados que estamos por falsos virtuoses, gênios forjados e músicas
descartáveis, parece-me que conhecer a sua obra é, mais do que nunca, imprescindível.
[i]
MINGUS, Charles; “Saindo da Sarjeta: A Autobiografia de Charles Mingus”, Jorge
Zahar Editor, Rio de Janeiro, pág. 52.
[ii]
NUNES, Benedito; “A Visão Romântica” in; GUINSBURG, J. (organizador); “O
Romantismo”, Editora Perspectiva, 4ª edição, 2ª reimpressão, São Paulo, pág.
55.
[iii]
BANDEIRA, Manuel; “Crônicas Inéditas I”, Editora Cosac Naify, São Paulo, 2008,
pág. 47.
É gratificante constatar que ainda restam -na atualidade musical recifense- mentes jovens preocupadas com a boa Música e seus grandes ícones- os verdadeiros ícones, os construtores de todo esse universo artístico surpreendentemente belo e ao mesmo tempo impossível de conhecer por inteiro. Bruno Vitorino demonstra, neste singular artigo, toda a dedicação de um estudioso do tema, em especial de uma das suas vertentes mais apaixonantes (o raro atributo da genialidade). Vivemos num meio em que é muito fácil autoproclamar-se "gênio" ou "ídolo". Em países pobres de cultura musical, embora férteis em matéria prima para o engrandecimento dessa Arte milenar, só nos resta admitir que muito, muito mesmo nos falta de senso crítico para repensar nossos valores, e assim procurar afastar do julgamento destes a paixão tola pelos ídolos de momento, sejam eles os modelados pela paixão ou os coroados pelo dinheiro farto e fácil de produtores, empresários, verbas públicas, que -do dia para a noite- criam o "gênio musical e/ou artístico" que mais se adapta aos desejos da massa ignara e fútil.
ResponderExcluirNa verdade, eu creio que a pegunta é: "O que se procura na música hoje em dia?"
ResponderExcluirO que é rentável é algo totalmente longe da música de fato. São todas as aparições, ações e jogo de conveniências entre um "seleto" grupo de "tocadores" (que afirmam ser músicos) e vivem as custas de uma juventude carente de gosto apurado e que só procura entretenimento e não arte. Esta, sempre está em segundo plano. Obviamente, que todos nós gostamos de alguma coisa, música, banda, que seja entretenimento...diversão. Mas achar que a diversão é a coisa mais genial do mundo é algo que está muito longe do significado não só da música, mas de qualquer outro tema relacionado a arte. Da culinária a pintura, se você não se esforçar, dedicar e desenvolver ficará fadado ao que pra mim é medíocre e que hoje é tão ovacionado.
E repito: "O que se procura na música hoje em dia?"
Vai saber.
Excelente texto.
Giba Carvalho.
Um texto bem construído, por que bem fundamentado, que esclarece alguns aspectos im portantes da música de Mingus, e de resto, da música afro-americana.
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