Antes de se materializar em um blog, o Variações
para 4 era o encontro semanal que Ângelo, Giba, André, Fernando e eu
promovíamos lá em casa. Na verdade, tratava-se de um pretexto solene que
encontramos para tomar Heinekens geladas, escutar bons sons e compartilhar
nossa sincera (e idealista, diria) preocupação com os rumos da Arte num mundo
onde Cinquenta Tons de Cinza é o símbolo da transgressão da mulher
contemporânea, Kelvis Duran é ícone cult
para jovens intelectualizados de classe média e certos poetinhas cianóticos tecem
loas egolombráticas ao poder do amplexo. Como de praxe em qualquer reunião de
amigos, à medida que as garrafas do néctar dos deuses se acumulavam, nossas
idiossincrasias pessoais se projetavam. Nos momentos de consonância, uníssonos
de conformidade e aprovação. Mas, diante das discordâncias mais acirradas – que
não eram poucas, ouvia-se a defesa mais acalorada de posicionamentos
controversos. No que diz respeito a mim, isso sempre recaia em minha repulsa à
obra de Chico Buarque e minha ojeriza à produção dos Beatles.
Não gostar desses artistas já me colocou em sérios
apuros. Imagine você um estudante de História em pleno CFCH abrir a boca para
dizer que “Chico Buarque é um compositor superestimado e um romancista de
merda”. Ou também, em qualquer mesa de bar num papo descontraído com
entendedores de rock, que “Os Beatles foram uma praga. A Grande Peste da música
do século XX”. O mundo vinha abaixo, meu amigo! Na faculdade, não só minha
integridade intelectual, como também a psíquica, logo eram questionadas. “Isso
é coisa de alienado, de pelego. Tu tá é doido!”. Já lá na mesa de bar, as reações
variavam da fúria extremista à perplexidade retumbante. Faça um teste.
Experimente o senhor, como exercício sociológico, dizer quando estiver tomando
uma com seus amigos: “Os Beatles foram os maiores vagabundos da história da
música”. Em um segundo, meu caro, você será um herege jogado na fogueira do
fanatismo dessa inquisição cultural. Reflexo condicionado, não refletido ou
problematizado.
Obviamente que por trás dessas afirmações tão
categóricas reside uma morbidez galhofeira que zomba da submissão plena aos
cânones. E não há como ser de outro jeito, meu querido. Goste ou não, uma coisa
é certa: se for para mexer em casa de marimbondo, não adianta ir alisando. Tem
que descer o braço, senão você se lasca! Só dinamitando o totem (e o tabu),
pode-se vislumbrar que as verdades na esfera artística são, mais do que
certezas estéticas, construções sociais sedimentadas pelo tempo e pelo
discurso. A memória costuma ser generosa com a pieguice, daí a tendência de
visões romantizadas de um passado idealizado povoado por artistas divinos. O
erro crasso das legiões de devotos mundo afora que separam o homem de sua
produção simbólica, e, mais ainda, que dissociam o artista das conjunturas de
seu tempo. Entenda o seguinte: o artista não existe no vácuo.
Pondo de lado toda essa cabecisse, o fato é que eu
já tentei gostar dos Beatles. Sério mesmo! De todo o coração e inúmeras vezes.
Como a descoberta da música se deu para mim através do rock clássico, não havia
como me esquivar da obrigatória visita ao quarteto de Liverpool. Portanto, não
pense o senhor que falo aqui sem conhecimento de causa. Deixo para os
jornalistas dos cadernos de cultura falar daquilo que não sabem ou sequer compreendem.
Ouvi minuciosamente toda a discografia dos ingleses esperando o inevitável
deslumbramento que me haviam prometido. Do “Please Please Me” ao “Let It Be”. Disco
a disco e nada! Absolutamente nada, para meu desespero. Seria eu um portador de
alguma patologia lombrosiana? Não! Era apenas a combinação de uma pitada de
senso crítico com um pouco de perspectiva histórica.
Por mais que tentasse, não conseguia entender o
porquê de tanto estardalhaço. Incomodava-me a gritante tabacudice boy band – chame de Iê Iê Iê se preferir
– da primeira fase da banda em músicas fofinhas sobre paixões adolescentes e
corações partidos. Corri para o período de transição do grupo da euforia teen para o experimentalismo mais adulto.
Legal. Encontrei músicas interessantes e extremamente bem construídas como Norwegian
Wood, mas morguei totalmente com canções bestas como Drive My Car. “Baby, you can drive my car / Yes,
I’m gonna be a star / Baby, you can drive my car / And maybe I’ll love you” era
leseira demais para meu frágil testículo esquerdo. Por fim, procurei na última
fase da banda achar a tão sonhada redenção, contudo me iludi novamente. Ao que
parece, depois de ter ouvido o poder incendiário do Led Zeppelin, ficava
difícil gostar do bom mocismo inofensivo dos Beatles. A verdade é de quem chega
primeiro. E, no meu caso, quem chegou primeiro foi o Led Zepellin. “Melhor
assim”, dizia a mim mesmo. Até que veio a verdadeira revolução em minha vida:
Theo!
O advento do filho ocasionou em mim rupturas silenciosas,
cuja dimensão não podia medir ao certo, em toda a constituição do meu ser. De
repente, o mundo ficou de ponta cabeça, a realidade virou pelo avesso. As
ilusões que guardava, os horizontes que mirava e as convicções que até então me
caracterizavam o Bruno que sempre lembrei ser, já não faziam mais sentido. Eu
havia mudado. Comecei então a ressignificar tudo: o valor da família, o caráter
formador do trabalho, a relação com a cidade e inclusive a importância da
música. E aqui eu chego aonde queria. “Se tudo mudou, não seria agora que eu
finalmente iria gostar dos Beatles?”, pensei. Mais uma vez (a 4ª pelas minhas
contas), revisitei a discografia do Fab Four. Não senti qualquer emoção
diferente a cada disco que ouvia no Youtube, até que finalmente eu vi a luz! Algo
inexplicável e totalmente inesperado aconteceu em mim quando pus no buscador “revolver
full album”. Foi uma revelação!
Revolver: a obra-prima dos Beatles. |
“Revolver” marca o momento mais sublime e único que
os Beatles puderam alcançar. “E o Sgt. Pepper’s?”, o senhor pode estar se
perguntando. Bem, o “Sgt Pepper’s” é um disco ousado, sem sombra de dúvidas,
mas em contrapartida é um amontoado de referências e ideias mal resolvidas, embrulhadas
num discurso musical excessivo. Em resumo: um disco gorduroso. “E o White
Album?”, o senhor insiste. Esse daí é tediosamente longo e altamente irregular.
Como um disco pode ter uma composição tão brilhante como “Martha, My Dear” e
outra tão retardada como “Ob-La-Di, Ob-La-Da”? Nem mesmo Bhaskara pode resolver
essa equação, permita-me dizer. Por isso, defendo que “Revolver” registra o
equilíbrio perfeito da verve intuitiva de John Lennon com a perspectiva
cerebral de Paul McCartney e, de quebra, traz o desabrochar criacional do até
então sufocado George Harrison. Com esse álbum, os Beatles desbravaram um
território completamente novo, tanto no que diz respeito aos métodos de
composição e técnicas de arranjo quanto aos temas e enfoques poéticos. Um salto
artístico estratosférico num período curtíssimo de tempo, já que apenas três anos
separam o pueril “Please Plese Me” desta obra-prima.
A contagem inicial que abre o disco parece avisar
ao ouvinte que uma viagem caleidoscópica em direção ao desconhecido está para
começar. “Taxman”, de George, escancara uma pegada roqueira mais agressiva, cheia
de balanço e uma letra de humor corrosivo sobre a voracidade inflexível da política
tributária do Estado Pós-Industrial. Na sequência, em “Eleanor Rigby”, Paul derrama todo seu
lirismo sobre uma trama contrapontística das cordas (destaque para o cello) e harmonizações vocais precisas. Um
dos pontos mais altos de toda sua carreira, diga-se de passagem. Depois vem
Lennon com a onírica “I Only Sleeping”. Seu jeito preguiçoso de delinear as
melodias, a simples, e por isso mesmo, deslumbrante harmonia em Mi menor e o
solo de guitarra em “loop” e “reverse” de Harrison (algo nunca antes ouvido no
rock) constroem uma ambiência surrealista que remete às fronteiras do
inconsciente. Até Ringo tem seu momento. Esteja certo de que “Yellow Submarine”
povoa o imaginário de muitas crianças por todo o planeta com sua fanfarra marcial
psicoldélica. Mais à frente, encontramos “For No One” uma das mais belas
descrições narrativas sobre a indiferença (e seus danos) que já ouvi. Preste
atenção na linha de fundo cromática que vai costurando o encadeamento dos
acordes, representando o afastamento paulatino da pessoa amada e no lamento resignado
do solo de trompa ao se deparar com o inevitável ocaso. Já em “I Want to Tell You”,
minha favorita, deparamo-nos com a habilidade de George em transformar melodias
flutuantes e progressões harmônicas ambíguas em algo extraordinário. Repare no piano que
insistentemente toca a nota Fá “errada” (não diatônica em Lá maior) justamente
nos momentos da letra em que o autor se vê aturdido pela presença invasiva da
musa a quem tenta se declarar. Nada menos que genial! Para concluir essa
materialização da excelência, os Beatles atacam com a enigmática “Tomorrow
Never Knows” onde John recita trechos do livro tibetano da morte sobre a bateria agitada de Ringo e os efeitos eletrônicos dos ecos de rolos de fita. Reminiscências dos cursos de verão de Darmstadt e da música oriental. Uma advertência clara de que nada seria como antes e que o
porvir era uma névoa de incertezas!
Lembro-me como se fosse ontem de, no calor do
debate, Fernando me amaldiçoar: “Bruno, teu menino vai adorar Chico Buarque e amar
os Beatles”. Bato na madeira e sinto um calafrio só de imaginar Theo ouvindo
“Construção”, acreditando estar diante mais alta representação da cultura
brasileira. Mas, depois de sentir o efeito “Revolver” e de ver meu filho dançando
ao som de “Love You To” enquanto escrevo a conclusão dessas breves (?) linhas, devo
confessar que me parece muito auspiciosa a possibilidade dele curtir os
Beatles. Melhor assim.