domingo, 5 de janeiro de 2014

O Rei, o Kitsch e o Conformismo - Por Bruno Vitorino



Não olhe para baixo
Não olhe para baixo
Ou a fera abissal da não conformidade
Pode incutir alguma verdade desagradável
Em sua mente insensível

Thomas Haake


Quando Reginaldo Rossi morreu, a repercussão foi imensa. Nas redes sociais, lágrimas em html, hashtags pesarosos e lamentos de internautas que se sentiam acossados por um mundo injusto que os priva dos verdadeiros artistas, deixando-os desamparados, sem referência, sem imagens sacras para cultuar. Na grande mídia pernambucana, bairrista que só ela, não se falou em outra coisa: como a Música Popular Brasileira (assim mesmo com iniciais maiúsculas) perdeu com a morte desse grande ícone. O mundo - quiçá a galáxia! - não seria mais o mesmo sem esse recifense tão ilustre e inovador. Só que ou eu enlouqueci ou sou o único são nesse “sanatório geral”. Em que momento de sua carreira Reginaldo Rossi fez arte? O que é sua obra senão a degeneração do que um dia fora a música romântica da Era de Ouro do rádio? Onde foram parar as fronteiras estéticas as quais separavam o brega, uma música popularesca que versa de maneira rudimentar sobre o amor e suas intercorrências no cotidiano da grande massa, daquilo que se convencionou chamar de MPB, gênero estritamente ligado à classe média que sempre defendeu um suposto refinamento intelectual da cultura popular? Algo não batia.

Não pense o senhor que sou um filho da puta arrogante e frio incapaz de sentir qualquer compaixão pelo próximo. Longe de mim tal postura. Honestamente, lamentei pelo ser humano Reginaldo Rossi que sucumbiu a uma doença cruel como o câncer e que certamente deixou uma lacuna em seus familiares e amigos que só o tempo tornará mais suportável. Externo aqui minhas mais sinceras condolências. Com sua morte, perdeu-se um ídolo das multidões, partiu um entertainer dos maiores. Isso é inegável! Mas, daí a querer transformá-lo numa sumidade da cultura é forçar por demais os limites do bom senso e do juízo histórico do que se definiu por Arte (com “A” maiúsculo mesmo). Recuso-me a admitir que exista experiência artística numa música simplória que faz da cafagestagem, da mesa de bar e do “chifre” seu mote. É bom não esquecer que o brega é um estilo que nasce do contexto sócio-econômico-cultural extremamente precário que marca nosso país de contrastes. É uma manifestação cultural, no sentido antropológico, de uma vasta camada da população que fora deliberadamente excluída do processo civilizador – educação, saúde, moradia, cultura – pelos Donos do Poder e está destinada a cumprir um papel social de submissão no continnum da História. Ou você acha mesmo que um jovem entregador de água mineral tem as mesmas chances de um garoto que estuda no Damas? Portanto, aceitar Reginaldo Rossi como triunfo da Arte é, de certa forma, referendar toda essa condição humana de pobreza e anuir que essas pessoas continuem onde sempre estiveram. É se conformar com a realidade tal como ela se apresenta. Além do mais, do ponto de vista estritamente estético, se o “Rei” é considerado Arte, então sou obrigado a aceitar o funk como música de protesto e de contestação do status quo, concorda? Assim, Anitta é a nova Elis Regina e a majestade pernambucana do brega é um letrista do mesmo quilate que um Aldir Blanc. Ora, sejamos francos! Reginaldo Rossi é, na melhor das hipóteses, divertido. E é fundamental separar o prazer banal do entretenimento fácil da densidade transcendental do ofício artístico.

O fato é que Arte, no sentido tradicional do termo, é algo supérfluo nos tempos da cultura de massa que homogeneíza gostos, dilui os conceitos, elimina os debates e ratifica o transitório. Não há mais espaço para a experiência única, particular e íntima da arte contemplativa, que requer do público um olhar reflexivo, feita por um artista-artesão que procura comunicar uma realidade interna. O que temos hoje é o fluxo contínuo dos estímulos sensoriais (a jukebox no café, o WhatsApp na reunião de amigos, etc.), o culto à personalidade que substitui a antes imprescindível criatividade, o vazio dos conteúdos e a pobreza das formas, a crítica acéfala que endossa o tacanho, o cultivo de esteriótipos, a intensificada estilização da vida e, o mais sintomático, o delírio fantasioso de negação da realidade cada vez mais presente nas subculturas jovens. E é exatamente esse aspecto que eu enxergo no fenômeno Cafuçu: meninos nascidos em berço esplêndido que se travestem de cobradores de ônibus tanto no linguajar quanto na indumentária para desfrutar a ilusão do bom gentil. Obviamente que o Cafuçu não quer encarar a realidade dura, de chão batido, daquele que o inspirou: trabalhar oito horas por dia num subemprego, ganhar o mínimo para sobreviver, usar um péssimo transporte público, fazer das tripas coração para criar seus filhos, morar num casebre em um bairro violento da periferia e encontrar uma breve paz de espírito num copo de conhaque de alcatrão. Não! Ele quer andar em sua bicicleta dobrável importada, chegar a seu apartamento na área nobre da cidade, ter comida na mesa servida pela empregada doméstica, usar seu iMac para acessar o facebook e que Papai lhe dê aquela tão sonhada viagem a Nova Iorque para que ele tenha o que falar na próxima ida ao Bar Central. Uma juventude chapa branca, conformista, especializada em arranhar superfície, que negligencia sua mais importante função: questionar! Algo bem distante daquela “juventude que não corre da raia a troco de nada” de outrora. Agora só o “verniz” importa.

Entendidas todas essas questões, é possível compreender como Reginaldo Rossi transpôs a condição de ídolo marginal do “povão” para se consagrar um dos sumos pontífices da alta cultura brasileira. Ele não foi reconhecido por sua grandeza e importância para essa camada da população. Ele foi cooptado pela sistemática lucrativa do kitsch, ressignificado como um ícone cult pelos setores da sociedade que definem o que é ou não digno de nota - os chamados formadores de opinião – e posto à venda como um artigo de luxo não mais para os personagens de sua música, mas para os moradores de imóveis de alto padrão. Tudo é deslocado no mundo Pós-Moderno e é fundamental enxergar todas essas camadas heterogêneas que se sobrepõem. Portanto, meu querido, não se deixe levar pelo “efeito manada” promovido pela imprensa e, ao menos, problematize o processo que criou o mito Reginaldo Rossi e pôs o brega no mais elevado patamar da manifestação humana. Cometa o mais mortal dos delitos contemporâneos: pense!

5 comentários:

  1. Impossível deixar de concordar com seus pontos de vista, meu caro Bruno. Você dissecou com maestria os fenômenos sub-culturais que se afirmam cada vez mais numa sociedade que se aliena e quer sempre se igualar por baixo em tudo. Principalmente em cultura. Música é um desses aspectos, e dos mais importantes. A Música não pode ser considerada somente como meio de vida e afirmação social, claro. Mas para muitos é. Então eu considero e peço que me entenda por esta lógica: Reginaldo Rossi nunca se disse um ícone, muito menos um super-astro ou um genial compositor. Inteligente como ele era, não faria isso. Falo porque o conheci desde o início de carreira, vez que participei, tanto quanto ele, da Jovem Guarda e seus programas melosos e infantilmente populares. Fomos colegas de palco, muitas vezes. Ele com seu grupo "The Silver Jets" e eu participando do grupo "Os Tártaros". Eram tempos em que corria solta a rivalidade entre o pop, o rock e a bossa nova. Entre os artistas que divertiam e os que se revoltavam contra o sistema. Vivi isso e sei do que estou falando. Nunca tomei partido por nenhuma das vias. Por que? Porque a música pra mim era trabalho, como foi muito mais pro Rossi e pra todos da época, que não estavam ali porque queriam. O que queriam era sobreviver do seu ofício, como até hoje tantos querem. Não entendo (nem entenda) isso como desculpa para fazer música sem grandes objetivos artísticos. No meu caso, eu não tinha outra forma de ganhar dinheiro pra pagar meus estudos. Tocava todas as noites, exceto às segundas. No final de semana a coisa piorava, pois além dos bailes, tocávamos em Rádio e TV. Assim, não dá para parar e analisar o que tocávamos. Tocávamos o que estava na moda e o que nos pagavam para tocar. Inclusive (e muito, bossa nova, a tal MPB) Recuso-me a chamar bossa-nova e outros ritmos digamos, "politizados" da época (anos 60/70) de MPB. Por que? Porque isso foi uma invenção meio fascista dos eternos aproveitadores da arte, para pichar de nefasta toda a arte que não lhes agrada, ou aos seus interesses e crenças políticas. Você deve imaginar do que estou falando.

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  2. (continuo aqui)...

    Reginaldo foi um cara que fez uma carreira calcado no que o povo quis que ele fizesse. Preencheu o seu espaço na música realmente popular, que rola nos botecos, nos cabarés, nas pontas de rua, nos bairros miseráveis da cidade. Que é amada e entendida pelo povão, essa massa que não é assim porque quer, mas porque teve negada uma melhor educação em todos os sentidos e aí também os caminhos musicais. Duvido que um pedreiro prefira ouvir Prokofiev depois de uma jornada de 10 horas no batente, ou que uma secretária doméstica vá se deleitar com Tchekov, Tolstói ou James Joyce depois de passar o dia esquentando a barriga na beira de um fogão. Mas,voltemos ao principal. Reginaldo é o Rei também de uma massa que não é suburbana, certo? Os "cenosos" do Bar Central, que a gente tanto comenta. A vontade desses "cafuçus de rolex" de ser pobre é tão grande e ao mesmo tempo tão confortável, que até preferem se nivelar por baixo!!! E ao mesmo tempo, por que trabalhar se painho me dá o sustento e a grana, as chaves da Hilux e o apartamento novo pra eu levar minha gata e ele seus "pés-quebrados" na hora do expediente? Por que me esforçar pra ser médico ou juiz de direito, se painho cheio da grana não liga em que curso vou me formar, desde que fique coisa bem empregado nos inúmeros arranjos que me permitam viver uma vida de irresponsabilidade sem esforço e ainda sair bem na fita? Aí fica fácil tentar nivelar o seu gosto musical mais simplório e brega tentando elevá-lo ao nível da verdadeira ARTE, estabelecida milenarmente com todos os atributos que adquiriu ao longo de tantos séculos da verdadeira genialidade da raça humana.
    Nunca comprei um disco sequer de Reginaldo Rossi. Admiro-o como pessoa, como músico e compositor popular esforçado e sincero com seu público. Nunca tentou se passar por gênio, ao que eu saiba. Seguiu sua vida, como os milhões de artistas populares seguiram. Lamentável é o que essas correntes da banalização queiram fazer com ele e com milhares de outros impondo-lhes "coroas", títulos de nobreza e tantos adereços para vende-los como gênios. Não o são, não o serão, por esse fato. Mas, na concepção popular e somente aí, continuarão eternos. Como tantos que já passaram. O povo os escolheu, à sua maneira. Que seja feita a vontade do povo. A Arte verdadeira passa ao largo dessas vontades e dessas vaidades, quando existem. E segue evoluindo. Quem quiser conhece-la melhor, não vai começar bem se for adotar o "estilo cafuçu" de viver. O "estilo cenoso" e superficial de "saber das coisas ". Que saiam, os pretendentes, da "bolsa-de-canguru-mamãe", que deixem a geração "nem-nem" e tomem um rumo na vida. Ser brega é fácil demais. Difícil é viver como um brega, NA REAL! Parabéns pelo lúcido texto e desculpe que me alonguei. É difícil ser breve comentando um texto seu. E eu não tenho, nem quero, o dom da síntese.

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    1. Duas erratas:
      1. em vez de " desde que fique coisa bem empregado" leia-se " desde que fique bem empregado"... a "coisa" apareceu aí de graça...
      2. em vez de "Parabéns pelo lúcido texto e desculpe que me alonguei" leia-se: "Parabéns pelo lúcido texto e desculpe SE ME alonguei"

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  3. Os comentários acima são meus. Na pressa de publicá-los saiu como anônimo. Dada a extensão, tive que dividi-lo em dois. Desculpem a falha.

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  4. Muito bem colocado Fred. Bruno faz uma abordagem sobre o comportamento de uma parcela da sociedade, constituída por jovens que possuem um elevado poder aquisitivo, que não necessitam viver a dura realidade da população de baixa-renda e sim copiá-la. Esta, por não possuir os recursos necessários à manutenção de um padrão de vida semelhante a desses jovens, vivencia diariamente a dura realidade de ter que trabalhar ininterruptamente, e, quando muito, receber um salário mínimo no final do mês para sustentar sua família e pagar as contas. Como não têm recursos, esses cidadãos se vestem como podem e buscam nos bares da periferia um pouco de diversão ouvindo Reginaldo Rossi, esquecendo por um momento seus problemas, dores e sofrimentos. O autêntico culto ao “Rei do Brega” nasceu na periferia dos bairros nobres do Recife, nasceu nas favelas, nos morros, nos radinhos de pilhas que o assalariado sempre levava no bolso para ouvir ao pé do ouvido. Ao se auto intitularem “cafuçú”, termo preconceituoso e pejorativo, esses jovens se projetam para uma realidade a qual não pertencem e jamais gostariam de pertencer, fazem da realidade cotidiana do trabalhador assalariado um evento “artístico-cultural”, se travestem de forma semelhante àqueles que usam essas vestimentas por não terem condições de comprar roupa de grife, debocham e se divertem de uma realidade vivida por grande parcela da sociedade brasileira que não nasceu em berço esplêndido. Não podemos esquecer o que Bruno tão bem colocou, a cooptação de Reginaldo Rossi pelos formadores de opinião que, além de tê-lo colocado como estrela de primeira grandeza da música brasileira, o transformou em um símbolo nas esferas da intelectualidade, ou seja, amar a música do “Rei” é ser cult . Assim como Bruno eu não tenho nada contra Reginaldo Rossi, tenho respeito por quem gosta verdadeiramente de suas músicas, reconheço sua importância para a população que sempre o cultuou como ídolo, até curto quando numa roda de boa conversa com amigos, mas daí a dizer que a música de Reginaldo Rossi é arte são outros quinhentos. Grandes mestres da música brasileira sequer tiveram tanto destaque. Posso citar alguns como João do Vale, Clementina de Jesus, Geraldo Filme, Jackson do Pandeiro, Mestre Salustiano, entre tantos que nunca tiveram seu trabalho reconhecido pela contribuição que deram a nossa cultura. Complementando Bruno: Pensar é preciso e evoluir é necessário!

    Cristina Monteiro

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