domingo, 14 de setembro de 2014

O Que Ouvi de Interessante no Mês de Agosto: Parte II - Por Bruno Vitorino



Ell Gênio Duo. Divulgação: Leila Nunes
Ell Gênio Duo – Reflexos:

Na zona de intersecção entre o tradicional e o moderno, estão os pernambucanos do Ell Gênio Duo. Tradicionalistas por formação e vanguardistas na inquietude de suas abordagens, a dupla, formada por Luciano Emerson (clarinete) e Caio Fernando (violão de 7 cordas), mescla em suas composições as estruturas clássicas do choro, a liberdade do discurso improvisativo  do jazz e o esmero da arquitetura erudita, apontando, desta forma, tanto para o aspecto conservador do viés tradicional da cultura, quanto para o caráter libertário, por parte da vanguarda, daquilo que concerne à sedimentação rija dos símbolos inscritos nas práticas coletivas da cultura. Dessa forma, a música constante no álbum de estreia do dueto – “Reflexos” – é um encadeamento constante de teses, antíteses e sínteses. Neste disco, o duo demonstra uma comunicação telepática que estabelece suas bases no risco, na descoberta, na exploração das possibilidades melódicas, rítmicas e harmônicas, nos limites entre composição enquanto estrutura pré-concebida e a improvisação enquanto criação instantânea. Pondo de lado a burocracia estéril dos tecnocratas, ouve-se nesse trabalho um virtuosismo que vai, portanto, muito além da mera destreza técnica para descambar numa necessidade incontrolável de expressar em sons os sentimentos mais recônditos. Sem falar na ironia fina contra a banalização do termo “gênio”, que se reduziu a mero selo de qualidade tal como o ISO, já presente no nome do projeto. Certamente um dos trabalhos instrumentais mais densos já registrados em nosso estado.







Keith Jarrett / Charlie Haden – Last Dance:

Eu descobri quase por acaso que Charlie Haden havia morrido. Fiquei “fora do ar” por alguns minutos pelo inesperado da notícia. Ele era um de meus heróis do contrabaixo, e eu nutria a esperança de num futuro próximo vê-lo ao vivo... Por isso, com sua morte, morreu também, de certa forma, um pedaço de mim e de tantos outros baixistas que se inspiravam nesse ícone. Encantavam-me (e ainda me encantam) seu não-virtuosismo tácito, sua capacidade extraordinária de harmonizar absolutamente tudo, suas escolhas na construção das linhas, seu domínio pleno das formas e sua habilidade para transitar à beira das estruturas formais da composição, quando os momentos de improvisação livre e coletiva exigiam um caminho mais aberto. Cada nota que tocava, cada silêncio que enaltecia tinha um significado imenso nas suas interpretações e na maneira como ele estabelecia elos com os outros músicos envolvidos na execução do tema. Não sem razão Keith Jarrett o considerava um dos maiores improvisadores da história do jazz. “Last Dance” é o segundo álbum que o encontro desses dois mestres rendeu. É uma celebração da amizade e do reencontro musical que demorou três décadas para voltar a acontecer. A informalidade da sessão vai desde o local das gravações – o estúdio caseiro de Jarrett – à escolha dos temas. São releituras de standards estabelecidos no cânone jazzístico e, por isso mesmo, ainda mais desafiadores, pois requerem dos instrumentistas a capacidade de fazer algo novo com um material desgastado por um sem número de interpretações. Nesse sentido, a dupla engrandece as composições com a entrega plena de si em cada música, buscando a transcendência metafísica no diálogo constante, seja na execução dos temas, seja na improvisação sobre esse suporte que é o chorus. É tão magnífico, por exemplo, ouvi-los executando com tanto frescor e jovialidade uma composição como “Round Midnight”, uma tema tão violentado por músicos de churrascaria que não conhecem Thelonious Monk e muito menos vislumbram sua dimensão e importância para a música que ajudam a corromper com a frieza cadavérica que lhes é peculiar. “Last Dance”, assim como seu antecessor “Jasmine”, impõe-se como um resgate da jornada em busca do Belo na Arte. Algo que fora rechaçado pelos urubus do vanguardismo de araque, pela incapacidade dos músicos sem criatividade e ousadia, que não conseguem ir além das fronteiras de sua própria inércia e das doces recompensas da indústria do espetáculo, em compreender o seu papel ante o sagrado que é a Música e, por fim, pelo público que deseja apenas som ambiente para embalar sua futilidade. Por todas essas razões, um disco obrigatório. 

No player abaixo, é possível ouvir trechos dos temas. É bem verdade que isso é insuficiente para revelar toda a beleza do trabalho, mas serve para atiçar ainda mais a curiosidade e tornar a audição desse álbum ainda mais irresistível.

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