Ernesto Jodos. Fonte: Google Imagens |
Diana
Krall ecoava no sistema de som do Teatro Luiz Mendonça, embalando o ambiente
com sua releitura à Spettus Steak House
do clássico “Fly me to The Moon”, de Bart Howard. Sofisticação e requinte era o
que sua versão industrializada desse standard
consagrado por Frank Sinatra parecia derramar sobre o público. Sentado na
extremidade esquerda de minha fileira, tentava entrar no clima de descontração
e leveza que parecia envolver os presentes. Ainda estava um pouco agoniado,
talvez por causa da meia hora que passei em pé na fila devido ao atraso de uns
trinta minutos na abertura dos portões. Quando finalmente meu espírito chegou
ao teatro, já ribombava, como um sinal dos deuses, o segundo gongo de
advertência - aquele toque que anuncia à platéia que em breve as apresentações
irão começar. “Que bom! Não vai atrasar tanto.”, pensei. Neste mesmo instante,
reparei que todos, repito, todos!, os casais que estavam à minha volta, sacavam
de seus celulares para tirar uma selfie
e imortalizar no Instagram esse
momento íntimo e fugaz que, outrora destinado a quedar esquecido nos porões da
memória, convertia-se em acontecimento real, fato histórico na biografia dos
enamorados, pelo seu registro e publicação nas redes sociais. “Não imaginava
que éramos assim tão positivistas...”, lembro que cheguei a pensar.
Foi
aí que ouvi de passagem, para meu espanto: “É o Hermeto que vai tocar agora,
véi!”. Descendo as escadas, um jovem hipster
de bigodes eriçados nas pontas e barba vultosa que parecia ter acabado de
acordar, pois trajava uma calça de pijama, com uma camisa regata furada e um
chinelo de dedo, prenunciava o que eu temia: que a ordem das apresentações
fosse invertida e eu tivesse de assistir ao concerto do duo Hermeto Pascoal e
Aline Morena. Justamente o único que não queria ver. Mas, calma! Antes que seu
cenho ganhe rugas de desaprovação, leitor, faço questão de esclarecer o óbvio:
amo a música de Hermeto Pascoal! Tive verdadeira uma epifania com o concerto de
seu grupo na MIMO em 2009, com direito a torpor, perplexidade e uma noite
inteira de reflexões sobre a arte, o sentido da vida e qual seria, depois de
ter presenciado tamanho milagre artístico, minha relação com a música. Sempre
me intrigaram a complexidade arquitetônica de suas composições, a maneira como
ele conferia um novo sentido à tradição ao fazê-la dialogar com o
contemporâneo, a infinidade de seu vocabulário sonoro que incorporava todos os
sons possíveis em sua música, daqueles gerados pelos instrumentos convencionais
aos oriundos dos objetos mais improváveis – no álbum Slaves Mass, ele usa até um porco! -, e como, por fim, dentro de
todo esse universo inóspito os músicos compartilhavam tanta liberdade e
exercitavam com tanto ímpeto o risco. E o Hermeto lá guiando tudo! Vê-lo ao
vivo com seu grupo foi, portanto, uma experiência indescritível. No entanto,
com o duo Hermeto/Aline não sinto isso. Nem de longe vislumbro toda essa
dimensão. Vejo apenas um happening
que prima pela espontaneidade em si mesma, sem propósito estético definido,
irmã gêmea do excêntrico. De resto, sinceramente, acho que a Aline, por mais
que tente e se esforce, não consegue acompanhar o “Bruxo” (e o grupo, quando
presente) em suas explorações e mais atrapalha do que contribui para música que
ali está sendo feita. Enfim, não pude deixar de sentir certo alívio quando veio
então o terceiro e último gongo, e com ele o anúncio da primeira atração da
noite: Alex Corezzi e Jean Kapsa.
O
projeto do saxofonista Corezzi, mineiro radicado em Pernambuco e a mente iluminada
por trás da produção do Recife Jazz Festival, com o pianista francês Jean Kapsa
foca em reinterpretações mais abertas de temas clássicos da música instrumental
brasileira. E por “mais abertas” deve-se entender que os instrumentistas se
valem de uma célula melódica de determinada composição, apoiando-se na harmonia
que lhe é implícita, para a partir desta estrutura mínima se lançarem nas
improvisações e empreenderem um diálogo intenso na construção espontânea das
formas. Dentro dessa perspectiva, o mais que conhecido frevo “É de Fazer
Chorar” foi revisitado num andamento moderado, com os músicos a flutuar em rubato sobre o pulso estabelecido que
delimitou o clima emotivo apropriado para receber um sax tenor vigoroso o qual
percorria de forma assimétrica determinado trecho pinçado da melodia,
enfatizando assim seus grupamentos rítmicos, ancorado num piano frenético que
abusava de pontilhismos, clusters e
acordes estendidos que de tão imensos desabavam sobre si. Depois disso,
alternância de improvisações individuais e reexposição do motivo ad libitum. No entanto, o que à primeira
vista me pareceu uma abordagem corajosa e exploratória de temas tradicionais e
vastamente tocados, à maneira do que fizera, por exemplo, o grande Albert Ayler
com seu mergulho no spiritual, no gospel e na creoule music, revelou-se um quê burocrática e repetitiva. Lá pela
terceira música, percebi que aquilo que se pretendia free e pautado no imprevisível acabava sempre por repousar sobre
uma confortável e protegida fórmula estrutural: o sax livremente tocando a
melodia sobre um piano tempestuoso; aumento da tessitura sonora como ponte para
os solos; seção de improvisos do tenor; solo de piano sobre um vamp que estabelecia o lugar harmônico;
retorno ao tema com a mesma pegada da abertura. Ou seja, um formalismo
disfarçado que ia totalmente de encontro aos preceitos da improvisação livre,
que nega justamente o preconcebido ao focar no imponderável e seus desafios.
Vale ressaltar, porém, que se do ponto de vista musical a apresentação do duo Corezzi/Kapsa
me pareceu um tanto morna, repetitiva e carente de um diálogo mais propositivo,
reconheço o grande mérito didático de apresentar a um público pouco afeito à
música instrumental uma abordagem não convencional dos temas que interpretou,
convidando os ouvintes a fruir a música sob um viés certamente inesperado por
eles, como denunciou o calor dos aplausos ao final do set. Mas, nesse momento, eu já ansiava pelo concerto que me fizera
sair de casa e encarar uma longa viagem à zona sul da cidade. Em breve, subiria
o palco para escrever/declamar sua poesia em primeira pessoa o argentino
Ernesto Jodos.
Formado
na prestigiosa Berklee College of Music,
Jodos é uma das figuras principais da rica cena jazzística argentina surgida em meados dos anos 1990, a qual fora responsável
pela ampliação das fronteiras estéticas dessa música no país ao combinar a
tradição dos standards a uma produção
autoral que carregava em si as inquietações de uma geração de instrumentistas que
investigava, inquiria e ressignificava os cânones de suas próprias raízes
culturais. Desde então, o pianista vem atuando em diversos projetos como líder,
co-líder e sideman, angariando inúmeros
prêmios ao longo de sua trajetória e documentando numa discografia que já se
avoluma sua música introspectiva e personalíssima, que se põe em xeque a todo instante,
seja em contextos mais dentro da plataforma chorus
ou naqueles de total desprendimento de qualquer alicerce preconcebido. Particularmente,
tomei conhecimento da existência de Jodos num disco do excelente saxofonista
Rodrigo Dominguez (também argentino) intitulado “Tonal” (2004). Nesse projeto,
em que o tradicional combo “sax/órgão hammond/bateria” abandonava o hard bop que o consagrou, bem como sua
estrutura “tema – improviso – tema”, e se lançava em voos arriscados pelas
paisagens sonoras abstratas da improvisação coletiva; pude perceber a destreza técnica
de Jodos e como ele a utilizava em prol de expressar o que sentia a cada
momento da música executada. Estava tudo lá: seu jeito de harmonizar melodias
aparentemente incompatíveis com o rigor estrutural dos acordes, o modo como ele
respondia às investidas dos músicos e contribuía para a atmosfera emotiva do
que estava sendo tocado, sua capacidade impressionante de criar todo um
discurso improvisativo a partir do mais singelo e despretensioso motivo, o uso que
fazia dos espaços, os silêncios que tocava. Tudo isso num contexto de muita
incerteza, como se a música estivesse prestes a fugir do controle a qualquer
instante, e de tensão a níveis elevados, com uma permanente sensação de que não
houvesse qualquer zona de repouso para onde os instrumentistas pudessem levar os
temas à conclusão. Por todas essas razões, ver Ernesto Jodos em ação era para
mim apenas uma questão de oportunidade.
O concerto
foi baseado no mais recente trabalho do pianista, o disco “Actividades
Constructivas”, lançado ano passado pela label
argentina BlueArt. Nesse álbum, Jodos, sozinho, propõe-se a investigar a
tênue fronteira que divisa composição e improvisação, colocando essas perspectivas
frente a frente em sua odisseia sonora: a primeira enquanto lugar objetivo da
expressão musical, esquema previamente definido, fruto do processamento do
impulso criativo pelas estruturas do pensamento, ou seja, improviso escrito; e a
segunda enquanto discurso libertário, rompante criativo em estado bruto que vem
dos mais recônditos confins da memória, o qual carrega em si uma peculiar carga
emocional justamente por ser não refletido, e materializado no ato da execução,
isto é, composição instantânea. Ao se valer da colisão desses extremos, Jodos apresentou
em Recife uma música abstrata, exigente, de difícil assimilação, totalmente dissociada
da sensibilidade estética banal que se entranhou em nossa cultura e do lugar
comum daquilo que se consolidou Jazz no
espírito coletivo fomentado pelo establishment.
No entanto, uma música imensamente bela, dialógica, imaginativa e profunda que convidava
o ouvinte mais curioso a abandonar o conforto de seus (pre)conceitos artísticos,
daquilo que sempre conheceu por música, e celebrar na transcendência a condição
humana que nos iguala, nos define e nos une. Era impressionante como a cada
tema, o pianista parecia se concentrar para limpar de sua mente qualquer vestígio
de estratégia na abordagem da música, que podia rutilar de uma exígua estrutura
melódica ou ser iniciada da inteira negação a qualquer material prévio, e
transpor a alma para a ponta dos dedos, como se escrevesse, nas palavras de
Machado de Assis, “uma poesia austera e pura” que versava sobre as mais íntimas
aspirações. Um mergulho desmedido dentro de si mesmo, um salto no vazio. Cada
composição, cada improviso descortinava um universo novo cheio de nuances e
sentido interno, como uma afirmação contundente de que na arte toda a repetição
é nula. A polidez dos aplausos, contudo, fez-me suspeitar que fora mais
respeitado pela condição de artista do que compreendido enquanto tal.
Não
fiquei para os dois últimos concertos. Não tinha como. Depois desse recital, só
me restou voltar para casa com a música que acabara de ouvir ainda reverberando
em meu âmago e um sorriso de menino no rosto por ter conseguido comprar uma cópia
do disco de Jodos - graças à boa vontade, vale ressaltar, de um dos membros da produção do evento.
Foi
mais uma longa e agradável noite de reflexões sobre arte, vida, sentido e
gratidão.
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