domingo, 22 de março de 2015

Um Salto no Vazio: Ernesto Jodos em Recife - Por Bruno Vitorino

Ernesto Jodos. Fonte: Google Imagens

Diana Krall ecoava no sistema de som do Teatro Luiz Mendonça, embalando o ambiente com sua releitura à Spettus Steak House do clássico “Fly me to The Moon”, de Bart Howard. Sofisticação e requinte era o que sua versão industrializada desse standard consagrado por Frank Sinatra parecia derramar sobre o público. Sentado na extremidade esquerda de minha fileira, tentava entrar no clima de descontração e leveza que parecia envolver os presentes. Ainda estava um pouco agoniado, talvez por causa da meia hora que passei em pé na fila devido ao atraso de uns trinta minutos na abertura dos portões. Quando finalmente meu espírito chegou ao teatro, já ribombava, como um sinal dos deuses, o segundo gongo de advertência - aquele toque que anuncia à platéia que em breve as apresentações irão começar. “Que bom! Não vai atrasar tanto.”, pensei. Neste mesmo instante, reparei que todos, repito, todos!, os casais que estavam à minha volta, sacavam de seus celulares para tirar uma selfie e imortalizar no Instagram esse momento íntimo e fugaz que, outrora destinado a quedar esquecido nos porões da memória, convertia-se em acontecimento real, fato histórico na biografia dos enamorados, pelo seu registro e publicação nas redes sociais. “Não imaginava que éramos assim tão positivistas...”, lembro que cheguei a pensar.

Foi aí que ouvi de passagem, para meu espanto: “É o Hermeto que vai tocar agora, véi!”. Descendo as escadas, um jovem hipster de bigodes eriçados nas pontas e barba vultosa que parecia ter acabado de acordar, pois trajava uma calça de pijama, com uma camisa regata furada e um chinelo de dedo, prenunciava o que eu temia: que a ordem das apresentações fosse invertida e eu tivesse de assistir ao concerto do duo Hermeto Pascoal e Aline Morena. Justamente o único que não queria ver. Mas, calma! Antes que seu cenho ganhe rugas de desaprovação, leitor, faço questão de esclarecer o óbvio: amo a música de Hermeto Pascoal! Tive verdadeira uma epifania com o concerto de seu grupo na MIMO em 2009, com direito a torpor, perplexidade e uma noite inteira de reflexões sobre a arte, o sentido da vida e qual seria, depois de ter presenciado tamanho milagre artístico, minha relação com a música. Sempre me intrigaram a complexidade arquitetônica de suas composições, a maneira como ele conferia um novo sentido à tradição ao fazê-la dialogar com o contemporâneo, a infinidade de seu vocabulário sonoro que incorporava todos os sons possíveis em sua música, daqueles gerados pelos instrumentos convencionais aos oriundos dos objetos mais improváveis – no álbum Slaves Mass, ele usa até um porco! -, e como, por fim, dentro de todo esse universo inóspito os músicos compartilhavam tanta liberdade e exercitavam com tanto ímpeto o risco. E o Hermeto lá guiando tudo! Vê-lo ao vivo com seu grupo foi, portanto, uma experiência indescritível. No entanto, com o duo Hermeto/Aline não sinto isso. Nem de longe vislumbro toda essa dimensão. Vejo apenas um happening que prima pela espontaneidade em si mesma, sem propósito estético definido, irmã gêmea do excêntrico. De resto, sinceramente, acho que a Aline, por mais que tente e se esforce, não consegue acompanhar o “Bruxo” (e o grupo, quando presente) em suas explorações e mais atrapalha do que contribui para música que ali está sendo feita. Enfim, não pude deixar de sentir certo alívio quando veio então o terceiro e último gongo, e com ele o anúncio da primeira atração da noite: Alex Corezzi e Jean Kapsa.

O projeto do saxofonista Corezzi, mineiro radicado em Pernambuco e a mente iluminada por trás da produção do Recife Jazz Festival, com o pianista francês Jean Kapsa foca em reinterpretações mais abertas de temas clássicos da música instrumental brasileira. E por “mais abertas” deve-se entender que os instrumentistas se valem de uma célula melódica de determinada composição, apoiando-se na harmonia que lhe é implícita, para a partir desta estrutura mínima se lançarem nas improvisações e empreenderem um diálogo intenso na construção espontânea das formas. Dentro dessa perspectiva, o mais que conhecido frevo “É de Fazer Chorar” foi revisitado num andamento moderado, com os músicos a flutuar em rubato sobre o pulso estabelecido que delimitou o clima emotivo apropriado para receber um sax tenor vigoroso o qual percorria de forma assimétrica determinado trecho pinçado da melodia, enfatizando assim seus grupamentos rítmicos, ancorado num piano frenético que abusava de pontilhismos, clusters e acordes estendidos que de tão imensos desabavam sobre si. Depois disso, alternância de improvisações individuais e reexposição do motivo ad libitum. No entanto, o que à primeira vista me pareceu uma abordagem corajosa e exploratória de temas tradicionais e vastamente tocados, à maneira do que fizera, por exemplo, o grande Albert Ayler com seu mergulho no spiritual, no gospel e na creoule music, revelou-se um quê burocrática e repetitiva. Lá pela terceira música, percebi que aquilo que se pretendia free e pautado no imprevisível acabava sempre por repousar sobre uma confortável e protegida fórmula estrutural: o sax livremente tocando a melodia sobre um piano tempestuoso; aumento da tessitura sonora como ponte para os solos; seção de improvisos do tenor; solo de piano sobre um vamp que estabelecia o lugar harmônico; retorno ao tema com a mesma pegada da abertura. Ou seja, um formalismo disfarçado que ia totalmente de encontro aos preceitos da improvisação livre, que nega justamente o preconcebido ao focar no imponderável e seus desafios. Vale ressaltar, porém, que se do ponto de vista musical a apresentação do duo Corezzi/Kapsa me pareceu um tanto morna, repetitiva e carente de um diálogo mais propositivo, reconheço o grande mérito didático de apresentar a um público pouco afeito à música instrumental uma abordagem não convencional dos temas que interpretou, convidando os ouvintes a fruir a música sob um viés certamente inesperado por eles, como denunciou o calor dos aplausos ao final do set. Mas, nesse momento, eu já ansiava pelo concerto que me fizera sair de casa e encarar uma longa viagem à zona sul da cidade. Em breve, subiria o palco para escrever/declamar sua poesia em primeira pessoa o argentino Ernesto Jodos.

Formado na prestigiosa Berklee College of Music, Jodos é uma das figuras principais da rica cena jazzística argentina surgida em meados dos anos 1990, a qual fora responsável pela ampliação das fronteiras estéticas dessa música no país ao combinar a tradição dos standards a uma produção autoral que carregava em si as inquietações de uma geração de instrumentistas que investigava, inquiria e ressignificava os cânones de suas próprias raízes culturais. Desde então, o pianista vem atuando em diversos projetos como líder, co-líder e sideman, angariando inúmeros prêmios ao longo de sua trajetória e documentando numa discografia que já se avoluma sua música introspectiva e personalíssima, que se põe em xeque a todo instante, seja em contextos mais dentro da plataforma chorus ou naqueles de total desprendimento de qualquer alicerce preconcebido. Particularmente, tomei conhecimento da existência de Jodos num disco do excelente saxofonista Rodrigo Dominguez (também argentino) intitulado “Tonal” (2004). Nesse projeto, em que o tradicional combo “sax/órgão hammond/bateria” abandonava o hard bop que o consagrou, bem como sua estrutura “tema – improviso – tema”, e se lançava em voos arriscados pelas paisagens sonoras abstratas da improvisação coletiva; pude perceber a destreza técnica de Jodos e como ele a utilizava em prol de expressar o que sentia a cada momento da música executada. Estava tudo lá: seu jeito de harmonizar melodias aparentemente incompatíveis com o rigor estrutural dos acordes, o modo como ele respondia às investidas dos músicos e contribuía para a atmosfera emotiva do que estava sendo tocado, sua capacidade impressionante de criar todo um discurso improvisativo a partir do mais singelo e despretensioso motivo, o uso que fazia dos espaços, os silêncios que tocava. Tudo isso num contexto de muita incerteza, como se a música estivesse prestes a fugir do controle a qualquer instante, e de tensão a níveis elevados, com uma permanente sensação de que não houvesse qualquer zona de repouso para onde os instrumentistas pudessem levar os temas à conclusão. Por todas essas razões, ver Ernesto Jodos em ação era para mim apenas uma questão de oportunidade.


O concerto foi baseado no mais recente trabalho do pianista, o disco “Actividades Constructivas”, lançado ano passado pela label argentina BlueArt. Nesse álbum, Jodos, sozinho, propõe-se a investigar a tênue fronteira que divisa composição e improvisação, colocando essas perspectivas frente a frente em sua odisseia sonora: a primeira enquanto lugar objetivo da expressão musical, esquema previamente definido, fruto do processamento do impulso criativo pelas estruturas do pensamento, ou seja, improviso escrito; e a segunda enquanto discurso libertário, rompante criativo em estado bruto que vem dos mais recônditos confins da memória, o qual carrega em si uma peculiar carga emocional justamente por ser não refletido, e materializado no ato da execução, isto é, composição instantânea. Ao se valer da colisão desses extremos, Jodos apresentou em Recife uma música abstrata, exigente, de difícil assimilação, totalmente dissociada da sensibilidade estética banal que se entranhou em nossa cultura e do lugar comum daquilo que se consolidou Jazz no espírito coletivo fomentado pelo establishment. No entanto, uma música imensamente bela, dialógica, imaginativa e profunda que convidava o ouvinte mais curioso a abandonar o conforto de seus (pre)conceitos artísticos, daquilo que sempre conheceu por música, e celebrar na transcendência a condição humana que nos iguala, nos define e nos une. Era impressionante como a cada tema, o pianista parecia se concentrar para limpar de sua mente qualquer vestígio de estratégia na abordagem da música, que podia rutilar de uma exígua estrutura melódica ou ser iniciada da inteira negação a qualquer material prévio, e transpor a alma para a ponta dos dedos, como se escrevesse, nas palavras de Machado de Assis, “uma poesia austera e pura” que versava sobre as mais íntimas aspirações. Um mergulho desmedido dentro de si mesmo, um salto no vazio. Cada composição, cada improviso descortinava um universo novo cheio de nuances e sentido interno, como uma afirmação contundente de que na arte toda a repetição é nula. A polidez dos aplausos, contudo, fez-me suspeitar que fora mais respeitado pela condição de artista do que compreendido enquanto tal.

Não fiquei para os dois últimos concertos. Não tinha como. Depois desse recital, só me restou voltar para casa com a música que acabara de ouvir ainda reverberando em meu âmago e um sorriso de menino no rosto por ter conseguido comprar uma cópia do disco de Jodos - graças à boa vontade, vale ressaltar, de um dos membros da produção do evento.

Foi mais uma longa e agradável noite de reflexões sobre arte, vida, sentido e gratidão.


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