O saxofonista, compositor e arranjador Oliver Nelson. |
É interessante perceber como alguns discos mudam totalmente a nossos ouvidos com o passar do tempo: de uma ilha erma e isolada nos confins da sensibilidade humana, que aparentemente nada revela ou comunica, a uma imensa metrópole sonora que constrói inúmeros vínculos com nossos sentimentos mais pessoais. A depender do trabalho, é necessário que o ouvinte tenha alguma familiaridade com o artista e certo conhecimento da linguagem utilizada por ele, para que a mensagem codificada em sons, que é a música, seja transmitida, e o elo emocional seja, enfim, estabelecido entre esses dois atores da escuta, num processo que chamamos de experiência artística.
No entanto, artistas de fato criativos e
compromissados tão somente com a expansão de suas fronteiras expressivas podem
deixar desamparados, do ponto de vista estético, até seus fãs mais devotados e
continuar a surpreender o público ao longo da história no momento que instituem
nela um marco. Imaginem, por exemplo, o impacto causado pelos Beatles quando
eles apresentaram ao público, que até então os tinha como um grupo de “Iêiêiê”
que cantava a três vozes sobre paixões adolescentes balançando os cabelos em
sincronia, o revolucionário Revolver
em 1966. E mais ainda: imaginem o choque que esse disco continua a provocar
naquele que descobre o quarteto inglês por estes dias. É de perder o chão! Por
isso, afirmo que o tempo desempenha um papel fundamental nesses casos, pois
esse estranhamento inicial só pode ser vencido pelas transformações internas
que só ele, o tempo, nos proporciona, alterando inclusive a nossa compreensão
de música, nosso gosto e juízo de valor.
Eu poderia escrever aqui linhas e mais linhas sobre
as incontáveis vezes que isso aconteceu comigo: ouvir um disco, não entender
absolutamente nada, deixá-lo de lado e, depois de um bom tempo, como numa
revelação dos Céus, achá-lo espetacular numa audição despretensiosa e não
compreender como eu pudera não ter gostado dele logo de primeira. No entanto,
pretendo falar de minha última descoberta “tardia”, por assim dizer, que por
sinal nada mais era do que um clássico absoluto: The Blues and The Abstract Truth do saxofonista, compositor e
arranjador Oliver Nelson, lançado em 1961 pelo selo Impulse!.
A primeira vez que ouvi esse disco faz uns dez
anos. Naquela ocasião, tinha lido bastante a seu respeito em artigos e livros
que destacavam sua importância por retornar às raízes e investigar
minuciosamente os pilares do blues -
plataforma fundamental ao jazz -, apontando com isso novos direcionamentos na
composição jazzística ao incorporar princípios da harmonia modal no blues e se
valer de uma arquitetura que ia além da forma básica do gênero; na
interpretação dos temas por conta do escrutínio nos arranjos e na distribuição
das vozes, enfatizando cores obscuras e criando tessituras inesperadas; na
improvisação devido aos solistas presentes na sessão fortemente ligados ao avant garde e às novas abordagens como o
Jazz Modal e o Third Stream (a grosso
modo, a junção do jazz com a música erudita). Tudo isso, diga-se de passagem,
numa época em que o Free Jazz, sob a égide do grande Ornette Coleman,
subvertia os alicerces tradicionais do jazz como a forma chorus, a ideia de progressão harmônica e a noção de swing e dominava a atenção da cena de
então como uma novidade irresistível, uma revolução em curso. Contudo, apesar
de todas essas qualidades, lembro-me muito bem de não ter ouvido “nada do outro
mundo” no álbum e de tê-lo achado, devo confessar, um tanto convencional. Pus o
disco num canto esquecido de minha coleção por quase uma década, e só pela ação
silenciosa do acaso é que pude, finalmente, vislumbrar toda a sua dimensão e depurar
sua mensagem.
Semana passada, estava folheando o primeiro volume
do Real Book, uma espécie de livro
sagrado do jazz que compila inúmeras composições, em busca de uma música para
estudar harmonia (o modo dórico, mais especificamente) e improvisação. Do nada
– se é que isso existe -, lembrei-me que Stolen
Moments, tema composto por Oliver Nelson e que abre The Blues and The Abstract Truth, flerta com o modal. Toquei a introdução
(claramente em C dórico - Cm7 / Dm7 / EbMaj7), dei uma olhada na melodia, conferi
seu encadeamento de acordes e quando dei por mim estava longe de casa,
totalmente imerso no mundo imaterial da composição. “Realmente, esse tema é
massa.”, disse a mim mesmo. Tinha de reouvir a gravação original para ver o que
os instrumentistas faziam, como se comportavam na transição do tema ao momento
dos improvisos sobre a forma minor blues,
etc.
Foi um choque! Primeiramente pelo o time magistral
que Nelson escalou para a sessão: o incendiário Freddie Hubbard no trompete, a
lenda Eric Dolphy tocando sax alto e flauta, o toque impressionista de Bill
Evans ao piano, e uma cozinha sublime formada por Paul Chambers no baixo e Roy
Haynes na bateria[1].
Depois, pela maestria na interpretação do tema que eu acabara de visitar: a
ambiência profunda do estúdio, a completa atenção dos músicos às nuances e
expressões que Oliver Nelson põe no arranjo, conferindo-lhe força, a atmosfera cool que envolve o tema, o quanto é dito
nos silêncios e o quanto é subtendido nos fraseados. Cada improviso parece ser
melhor do que o outro, e à medida que os solistas mandam seu recado
inevitavelmente me lembro da perplexidade do escritor Alex Ross ante a
capacidade da música de, numa breve sequência de notas ou acordes, assumir as
peculiaridades de uma pessoa, traduzir num mundo abstrato a personalidade de um
artista[2]. O que
fica extremamente claro quando o tenor de Oliver Nelson se apresenta para
improvisar neste tema. Ele dá ao todo apenas quatro giros sobre a breve
estrutura minor blues, e faz uma
improvisação quase motívica, com padrões baseados em arpejos de tríades e figuras
rítmicas simples (tercinas) que vão criando tensão à medida que o encadeamento
harmônico se desenrola – especialmente quando ele insiste na tríade de Ebm
enquanto a progressão vai de Ab7 para G7, remetendo à escala aumentada -, mas
que, para muito além da análise técnica e da radiografia musicológica, traz em
si uma profundidade emotiva que as palavras jamais conseguirão exprimir. E é
justamente neste aspecto que reside toda a sua beleza, porque seu improviso
fala sem reservas a todo aquele que estiver disposto a ouvir, independente de
educação formal, provando que a música não é uma esfera autossuficiente, e sim uma
maneira de apreender a realidade a nossa volta e de partilhar da condição
humana que nos define.
Desde essa (re)descoberta, venho ouvindo compulsivamente
o disco todos os dias, faixa a faixa, com a maior atenção que consigo dar aos
detalhes, como que para recuperar o tempo que perdi sem me dar conta da
grandeza desse clássico, e pensando, ao final de tudo, como esse mesmo tempo que
nos turva a visão pode nos ensinar lições valiosas sobre aquilo que julgamos sempre
saber.
[1]
Há também George Barrow no sax barítono, contudo sua participação fica restrita
aos naipes.
[2]
Ver ROSS, Alex; Escuta Só: Do Clássico ao Pop, Companhia das Letras, 2011, São
Paulo.