sábado, 15 de agosto de 2015

Simpatia Pela Própria Sombra: Rock and Roll e Catarse no Imaginário Ocidental - Por Rógeres Bessoni


O guitarrista Jimmy Page e o escritor William Burroughs.


“Oh, Albion remains
Sleeping now to rise again”




A questão fundamental antes, durante e depois deste texto é uma só: ROCK AND ROLL É COISA SÉRIA. Há cerca de dois anos, me deparei com um link de internet para o resumo do que foi um dos encontros mais primorosos da música contemporânea e que entrou para os anais das entrevistas no mundo do rock. Em 1975, um dos maiores nomes da literatura beat e da chamada contracultura dos anos 50/60, William Burroughs, entrevistou Jimmy Page, para a Crawdaddy Magazine, revista até então totalmente desconhecida por mim. Até hoje, nunca peguei em um único exemplar físico, mas em algumas andanças online verifiquei tratar-se de uma revista especializada em jornalismo musical, criada em meados dos anos 60 e que se destacou pela abordagem frontal do fenômeno musical “rock and roll” - na verdade, parece que o próprio periódico se autodefinia como sendo “a primeira revista que levou o rock a sério”. Ao devorar o conteúdo dessa entrevista, mergulhei em insights profundos, despertados pelas associações de ideias que aconteceram naquela conversa. Na verdade, vários assuntos ali tratados alimentaram outros tantos insights que eu já havia tido, mas que ainda estavam crus, pedras brutas, sem elaboração. A entrevista se deu depois de Burroughs assistir a um show do Zeppelin, e as duas figuras trataram de falar de magia, de Aleister Crowley, de experiências hipnóticas com infra-sons e mantras, das experiências de indução ao transe na música sufi marroquina, dentre outras iguarias. Mas, do material compilado ali, o que me reacendeu uma ideia antiga, para mim nevrálgica, foram os questionamentos de Burroughs a respeito das possibilidades mágicas e psicológicas da música em geral, e do rock em particular. Esse escritor, que ajudou a revirar o baú escuro da alma humana pós-guerras mundiais, aponta para outra dimensão quando pergunta:

“Music, like all the arts, is magical and ceremonial in origin. Can rock music return to these ceremonial roots and take its fans with it?” (Numa tradução livre: “A música, assim como todas as artes, é mágica e cerimonial em suas origens. Pode o rock retornar a essas raízes cerimoniais, conduzindo consigo os seus fãs?”).

E mais ainda quando, ao tratar da aridez e estreiteza do pensamento ocidental contemporâneo, aponta a estreiteza de visão e de escolhas em que nos enclausuramos, a partir da cultura cristã e após o seu declínio,

“(...)when all magic became black magic; that scientists took over from the Church, and Western man has been stifled in a non-magical universe known as “the way things are.” Rock music can be seen as one attempt to break out of this dead soulless universe and reassert the universe of magic.” (...quando toda a magia foi tratada como magia negra; os cientistas substituíram as igrejas, e o homem ocidental foi enclausurado em um universo não-mágico, conhecido como “a maneira como as coisas são”. O rock pode ser visto como uma tentativa de rompimento com esse universo morto e sem alma, e recondução ao universo da magia).

E aqui chegamos a uma das sacadas mais geniais da contemporaneidade, a Chave para entender o poder catártico da música e, mais especificamente, o fogo devorador do rock and roll e como ele, o rock, insuflou a inquietação juvenil e aventureira em corações procedentes de toda parte, se apoderou de traços musicais do mundo inteiro e tocou, por assim dizer, a “Anima Mundi”, de que os alquimistas falavam. Essa Chave explica também como o rock atuou na minha própria vida, nas inúmeras vezes que me resgatou ou me conduziu pelo abismo. Foi essa saída do árido e brochante “non-magical universe”, da vida sem imaginação e sem encantamento e da recuperação da dimensão mágica que o rock operou em zilhões de pessoas – e o fez de forma incendiária, num movimento enfurecido e explosivo, sem muitas preliminares que, em suas duas primeiras décadas, nem deu tempo às pessoas para se reposicionarem ou entenderem bem o que estava acontecendo.

O fato é que o rock and roll ativou Imagens e Símbolos Primordiais poderosos que estavam encerrados no nosso escuro, sob violenta e severa vigilância das duas Grandes Inquisições – a inquisição religiosa cristã medieval, que sistematizou o medo e a submissão, e depois, sua substituta, a inquisição materialista, científico-industrial, com um igualmente severo Index Librorum Prohibitorum, que nos precipitou no paralítico “non magical universe”. O rock estremeceu sedimentos profundos de maneira tão desconcertante e imprevisível que nenhuma construção científica, antropológica, nem nada que o valha, me parece ser a maneira  apropriada de abordar esse xamã enlouquecido. O “rigor científico” não tem acesso nem à sua sacristia. Apenas alguns deslavados enxerimentos junguianos da minha parte me ajudam a vomitar uma intuição profunda que tenho há tempos: o rock foi um poderoso catalisador e agente catártico no psiquismo ocidental. Num grande festejo a um só tempo bacante, hermético e combativo, nos conduziu a um contato com a dimensão fantástica da nossa Sombra, que vínhamos de muito tempo evitando e mal conseguindo conter. E pagamos preços altíssimos por isso. Então, poderosos Arquétipos foram movimentados. Um bestiário inteiro foi acordado no nosso subterrâneo. Tido pelos prosaicos não-iniciados como uma aparição do diabo, o rock foi na verdade o exorcista mais eficaz e fiel que tivemos em atividade por cerca 30 anos. E falo no passado porque, para mim, esse ente poderoso se retirou do cenário já há bastante tempo. Na verdade, encerrou-se (ou está apenas em suspenso) sua ação mais ostensiva, frontal. Seu período de movimentação na limpeza pesada da cabeça ocidental, quando operou de forma crucial, foi mais ou menos de 1955 até cerca de 1985. Neste intervalo, a grande atuação aconteceu. Se conseguimos ler o ideograma (ou hieróglifo) desenhado pela trajetória do rock, nos deparamos com um tratado alquímico, teatralizado com peso, sensualidade e fúria, bem escancarado na nossa frente.

Com efeito, quando surge, a alma ocidental está mastigada por tudo o que foi o último milênio. Um milênio denso e intenso, que assistiu ao apogeu e declínio da Idade Média, à quase total destruição dos últimos núcleos de cultura pagã na Europa, à Inquisição, à demonização da imagem da mulher, à tentativa de recuperação da cultura clássica, à descoberta e colonização mortífera do Novo Mundo, à empreitada iluminista de elaborar um gênero humano autônomo, racionalmente situado e resolvido no mundo (mas que não conseguiu “ordenar” a vida interior desse novo homem esclarecido e laico, nem livrá-lo de suas angústias mortais), ao acontecimento de duas guerras mundiais, ao desenvolvimento das psicoterapias e às primeiras tentativas científicas de desvendar e controlar a mente e, além de tudo, ao crescimento devorador das tecnologias como nunca se viu. Esse tumulto gigantesco pós-antiguidade clássica deixou nossa sociedade com muito lixo em baixo do tapete, que se converteu numa verdadeira bomba-relógio psicoemocional, por tudo que passou a ser difícil confrontar.

Estando o mundo assim, ainda mais após a grande depressão econômica do início dos anos 30 do séc. XX e o fim da Segunda Guerra, saindo de imensos tormentos e caminhando entre o tédio e a incerteza – e, muitas vezes, desesperança -, e com a instalação da Guerra Fria, começava a crescer uma geração de jovens com todos os motivos pra não endossar e não sentir qualquer identificação com os modelos rígidos do carcomido Ocidente, prontos para escrachar e ignorar todas as falácias sobre heroísmo militar e poder econômico. Uma leva de jovens, nascidos do meio para o fim da Segunda Guerra e que foram vítimas diretas ou indiretas dela, começa a demonstrar abertamente o quanto despreza a roupagem das sociedades puritanas da Europa e dos Estados Unidos e o quanto estão sequiosos por outras histórias.

Esses jovens, predominantemente brancos, muitos de origem proletária, tendo alguns crescido nos subúrbios industriais das grandes cidades ou em zonas portuárias, ambientes onde algumas escórias sociais se misturavam inevitavelmente, não tiveram dificuldades em se aproximar dos sons hipnóticos desse submundo. Mesmo no sul agrário e racista dos Estados Unidos, a figura central de Elvis mostra como outro veio branco, distinto do racista, se esgueirava em meio ao conservadorismo mais medíocre, e absorvia o gospel, o blues e o jazz. Negros, ciganos, latinos, orientais – as bagagens sonoras desses universos proscritos vinham à tona e encontravam muita gente com olhos, ouvidos e cabeça abertos, prontos para se alimentar de tudo.

Os sons, cheiros e sabores dos referidos submundos inebriaram esses jovens branquelos que não faziam e nem queriam fazer parte dos salões de uma aristocracia velha, criminosa, militaresca e obesa; apontavam e conduziam para os locais onde acontece a farra, a mistura promíscua e alquímica de todos os elementos, as três dimensões que vieram a ser o berçário do rock: os bares, a rua e a estrada. O mitólogo Junito de Sousa Brandão diz que Hermes e Dionísio foram os deuses gregos que mais estiveram misturados aos homens e, com isso, esse grande mestre nos dá uma outra Chave para desvendarmos toda uma sorte de mensagens renegadas por nossas idiossincrasias, que não nos permitem perceber movimentações simbólicas extraordinárias, como por exemplo esta: só a combinação poderosa e explosiva de Hermes com Dionísio poderia fazer nascer o psicopompo boêmio que foi o rock and roll. Só os bares (território de Dionísio por excelência) e a estrada (domínio de Hermes, que era deus das estradas e foi o inventor da lira e da flauta) poderiam ser o laboratório mágico dessa música vulcânica e catártica. Dionísio maneja os vícios e apetites sensuais dos humanos, e Hermes é o deus que revela o que está oculto e o único com trânsito livre entre os “três mundos”: o submundo profundo, o mundo dos homens e o Olimpo - ou seja, Dionísio e Hermes combinam de forma ímpar o trânsito através dos vícios reprimidos e das possibilidades sensoriais embotadas com a elaboração musical e a revelação, propiciando uma erupção artística de escala planetária que se instalou como uma escada para o escuro, para descermos com alguma luz ao nosso mundo oculto, ou trazermos coisas de lá para a luz do dia, nos fazendo compreender isto: só uma grande convulsão cultural hermético-dionisíaca estaria habilitada a enfiar a mão na ferida puritana e simplista do que havia se tornado o Ocidente, revolvendo com sofisticação ácida (e lisérgica) e sensualidade incandescente a escuridão e as forças cegas mal contidas sob os bons modos da razão adestrada.
A carta do louco no tarô de Marselha.

Preparado o cenário e com o advento do rádio e a popularização das primeiras gravações em disco, a batida crua do blues foi subindo como fumaça de incenso. Aquelas gravações rústicas de Robert Johnson e demais pioneiros dos anos 20 e 30 apareceram enigmáticas e hipnóticas. Como fazer aquilo tudo apenas com violões de cordas de aço e batendo o pé no chão? De repente, as incríveis possibilidades da simples combinação voz humana/slide guitar abriu um horizonte sonoro totalmente novo e desconcertante para os ouvidos atentos. Porque aquela música não era apenas melancólica, como já tínhamos provado no romantismo erudito e em alguns ritmos latinos; ela também tinha uma sonoridade rasgada, cortante, e, mesmo sem ser propriamente “cigana”, sugeria as andanças. O boêmio errante, com o violão dentro do case, viajando de trem de cidade em cidade, brigando nos bares por causa de mulher ou jogo, proscrito, dormindo em muquifos e bebendo e fumando muito. Essa imagem acompanha desde o princípio o imaginário em torno do bluesman e oferecia perspectivas irresistíveis. Pegar a estrada só com a guitarra debaixo do braço e partir para o mundo, de trem ou pegando carona, com uma roupa surrada e ganhando dinheiro de bar em bar. Estava plasmado um ideal que pertenceu a todos. A carta sem número do Tarô, o Arcano “O Louco”, saiu de casa com uma mochila nas costas e um cachorro em seu encalço – rumo ao precipício, muitos diriam. O Louco provocativo, desafiador e revelador, começou uma jornada esperada há séculos, num feixe de energia oscilatória entre o goliardo e o Cavaleiro.

Essa é, no entanto, a parte mais exotérica e palpável desse novo “ideal”, porque, junto com a aventura emerge também a - igualmente fascinante – aura do maldito. O pacto com o diabo, a paisagem sombria, as entidades espectrais. Uma das lendas que li não sei onde dizia que Howlin' Wolf foi possuído pelo espectro de um lobo, para poder ter a voz que tinha. A célebre possível relação de Robert Johnson com a magia negra e a venda da própria alma em um pacto, talvez numa encruzilhada (tão conhecida da nossa macumba), não apenas nos apontam para o capeta, mas também – de novo – para o ambiente hermético. Ora, Hermes é também o senhor das encruzilhadas e também é ele quem nos leva e traz da escuridão para a luz. A tentação que temos de encarar nossa própria sombra é proporcional ao medo de fazê-lo, criando uma atração-repulsão que nos mantém confusos, numa neblina de sensações imprecisas, enquanto não inventamos de fazer a caminhada consciente.

Cartaz do filme "A Encruzilhada",

E para acender os nervos de aço desse xamã em gestação, Muddy Waters ajuda a botar uma das grandes forças cegas da vida a serviço da Opus: a eletricidade. No filme “Crossroads” (no Brasil “A Encruzilhada”), ele é mencionado como o inventor da guitarra elétrica. Ainda que não o tenha feito sozinho, foi sem dúvida um dos pioneiros na eletrificação das bandas. A energia aterradora presente no trovão é canalizada para dentro dos instrumentos, para produzir efeitos sonoros inconcebíveis antes disso. Mas, é importante ressaltar: dentre os grandes bruxos do blues, a força elétrica foi canalizada justamente pelo que carregava o pântano em seu nome. As Águas Lamacentas trazem à tona todo o vigor simbólico de outra lâmina, o Arcano XVIII do Tarô, a carta da Lua. É de “lua” (“luna”, em latim) que vem a palavra “lunático”, característica atribuída aos xamãs, oráculos e sacerdotes do transe em diversas culturas, e este é um Arcano que, por sua vez, segundo alguns intérpretes, simboliza morte e renascimento, ou “a reforma da casa”. O mestre tarólogo Pedro Camargo, por exemplo, interpretando a carta da Lua, nos fala sobre essa empreitada: “Durante as obras (de reforma da casa) haverá desconforto, sujeira, os esgotos estarão abertos e a presença de micro-organismos que ameaçam a saúde será constante”. Não poderia haver descrição mais cristalina do que foram a quebradeira e podridão promovidas pelo rock em seu apogeu. E ninguém esqueça que o Arcano “A Lua”, no Tarô de Marselha, traz em sua composição tanto lobos uivantes quanto um caranguejo que sai da lama.

Para uma imensa parcela de toda uma geração, tornava-se cada vez mais evidente que vínhamos nos movimentando dentro de uma gaveta apertada, com percepções limitadas e repetitivas. A sensação crescente de sufocamento dentro do consenso social e o tédio face à repetição de padrões, dos discursos religiosos/militares/científicos que não solucionavam nada, somados aos caminhos recém-abertos pelas psicoterapias e ao desenvolvimento da neurociência, assim como os primeiros contatos menos fantasiosos com as religiões orientais e com as práticas xamânicas norte-americanas – todos esses elementos inflamaram uma vigorosa intuição de que nossa mente abriga imensidões muito maiores do que poderíamos perceber enquanto estivéssemos bem amestrados. Havíamos engolido a sugestão (essa sim!) diabólica de soltar o Fio de Ariadne. E a raiva contra essa condição estreita explodiu, como tinha que ser. Mas ninguém tinha o mapa pra sair do labirinto.

Tudo bem, no fim dos anos 50 do séc. XX as referências às práticas meditativas do Hinduísmo e do Budismo já nos chegavam com mais facilidade e fidedignidade, ainda que muito envoltas em uma capa de mistério esotérico/ocultista. No entanto, as então encorajadoras pesquisas com LSD e a popularização de relatos detalhados sobre o uso das plantas de poder pelos índios da América do Norte pareciam mais do que um convite tentador: as substâncias psicotrópicas foram consumidas em larguíssima escala, na tentativa de derrubar rapidamente os muros do nosso consenso psicológico. Neste ponto, lembro a extraordinária e “matadora” conversa que a Monja Coen, mestra zen budista brasileira, teve com seu mestre iniciador. Ela nos relata, que em meio a toda a onda do psicodelismo, perguntou-lhe se eram válidas quelas tentativas de expandir a consciência por meio das drogas, ao que o mestre respondeu: “Para que tentar entrar pela janela se existe uma porta?”. Sim, iniciávamos uma busca pelas portas, mas é evidente que tateávamos sem rumo certo. Depois de tantos séculos de compressão da vida íntima, seja por sistemas teológicos, seja mais recentemente pelas ditaduras filosóficas, econômicas e políticas, sendo nossa alma conduzida à força a viver “do lado de fora” sob vigilância atenta, é claro que nossa civilização não desenvolveu nenhuma intimidade com o que quer que seja a mente e seus caminhos. No entanto, esse sufocamento não conhece o perdão das potências psíquicas subterrâneas. A atitude rock and roll de colocar dinamite nas portas das percepções foi o ricochete irrefreável, o comando implacável: “Vamos derrubar essa porra desse labirinto e colocar o Minotauro no trono de Creta!!!”.

Um novo trovadorismo, lisérgico e elétrico, surge a partir das novidades testemunhadas. A pseudo-confiabilidade dos nossas balizas lógicas e sensoriais é desmascarada, nosso território sempre movediço se evidencia, e o que tanto nos confunde é justamente a natureza deste jogo demiúrgico em que nos metemos. As letras passam, então, a trazer tudo. O texto incandescente do rock visita lugares recônditos dentro da nossa alma, fala das atuais guerras tecnológicas e também das batalhas ancestrais, do nosso constante e mal-disfarçado flerte com a treva, do transe esquizofrênico, da nossa insatisfação crônica e agônica e relata as angústias dos profundos sofrimentos afetivos. Mas nossa experiência fugaz é revista numa viagem de ressignifação; esse trovadorismo eletrificado surge extraindo poder da grandeza épica de Tolkien, mergulhando nos vórtices abissais de William Blake, provocando os símbolos da tradicional cristandade e conduzindo ao salto no vazio interior – desligue, relaxe e escorregue no tobogã buraco de minhoca, “it is not dying, it is not dying”...

O Turbilhão foi acionado quando folk e o blues eletrificados botaram todo mundo na estrada, libertaram a sexualidade e o gosto pelos psicotrópicos. A descoberta do formato “banda”, montado sobre a estrutura bateria, baixo, guitarra e teclado (os teclados foram vitais para a definição do som dos anos 60 e continuaram sendo vastamente utilizados por todas as experiências do progressivo) ajudou a elaborar uma nova configuração de postura no palco e de relação artista-público. O hard rock aterrou as vibrações, trazendo peso, velocidade, fúria, criando os sons energéticos de uma música a um só tempo de farra e de guerra. O peso aumentou – a velocidade também e a fúria também – e o metal, definitivamente desenhado, com suas inúmeras vertentes, como se fossem uma grande rede de cavernas subterrâneas, fez ecoar sons grandiosos e sombrios e os gritos guturais de dragões enjaulados, ansiosos por alçar voo, enquanto o vômito do punk esculhambou merecidamente a afetação da “nobreza” ocidental, com um chute na porta e um soco no estômago, como numa gloriosa briga de rua. E as odisseias sonoras das muitas vertentes do progressivo tanto reconfiguraram a herança medieval e a melancolia romântica, quanto canalizaram sonoridades siderais que pareceram desenhar a trilha sonora perfeita para a ficção científica. Seus temas épicos, gigantescos, sem refrão e sem os tempos e os ciclos melódicos simples que compõem a nossa zona de conforto, usualmente ignoram nossa linearidade lógica, num território de experiências musicais que flutua do mais encantador lirismo às raias do bizarro, até hoje abrindo portais para um sem-número de universos paralelos. E, assim, franqueando o acesso a um jardim de infinitas veredas que se bifurcam, o vastíssimo rock and roll ajudou incontáveis viajantes a se libertarem do que há de mais ordinário na mente ordinária, injetando uma qualidade de força que impulsionou milhões a se rebelarem e enfrentarem os medos, a humilhação, a desolação e o aparente absurdo de estarmos aqui.

Um processo de recomposição do tecido humano ocidental se desencadeou em amplitude inesperada. A fornalha pulsante desses novos padrões musicais, para realizar a Opus a que se propôs, se alimentou de todo o material humano que pudesse encontrar e, para tanto, fez irromperem buscas por todos os símbolos e fragmentos possíveis da nossa história conhecida, bem como da nossa história imaginária. Os ocidentais começaram por pedir a bênção ao blues e, daí por diante, a todos: foram aprender com a Índia, com o Marrocos, com os vestígios árabes na Ibéria, com os ciganos, com o Vodu. Procuraram sofregamente nutrição nos seios de suas culturas-mães, em todas as tentativas de reaprender o paganismo, aprender as cantigas medievais, recuperar todos os símbolos esquecidos da era da Cavalaria, a bruxaria, as memórias celtas e vikings, a Bíblia, a magia cerimonial. Ao longo de toda a sua história, após o fim da civilização clássica, o Ocidente só conseguia materializar sua escuridão na forma dos três flagelos do Apocalipse: a Guerra, a Fome e a Peste (e a Morte provocada pelas três). Mas quando o rock and roll estava na plenitude de sua fúria incendiária, nossa civilização conseguiu engendrar, à luz do dia, algo que nunca tinha sido visto e ninguém imaginaria antes: conseguimos fazer, em escala planetária, A REPRESENTAÇÃO LÚDICA DA NOSSA SOMBRA. Revolvendo todos os parâmetros com os quais o Ocidente via a si mesmo e se relacionava com o resto do fenômeno humano e desaguando também em terras do Leste, estava lá, tudo no palco, nas capas dos discos, no imaginário em torno de cada banda. Gemidos, grunhidos, gritos, rebolados, irreverência, sexualidade escancarada, os ritos orgiásticos com as groupies (repetidos anonimamente por milhares de fãs). O cotidiano prosaico nunca mais foi o mesmo depois dessa martelada de Thor.

Passada a fúria, ele, o rock, se encontra atualmente sem bons médiuns em atividade, mas parece estar oculto entre nós, uma entidade sem forma, num silêncio soturno, irrompendo aqui e acolá - como os deuses da antiguidade, que não são mais venerados, mas que, em sã consciência, ninguém ousa dizer que não existem. Nos segurando na borda do Grande Vulcão, nos ensina a olhar para dentro do abismo onde escorrem sete quedas de lava e de marfim, ao passo que nosso centro de poder interno se acende como um acelerador de partículas. Muitos foram devorados pela energia cáustica que foi liberada, assim como muitos antes haviam perecido de apatia. Inúmeros caíram atordoados pelos movimentos tectônicos das nossas últimas convulsões culturais, e outros tantos pareceram enlouquecer ante as visões que se descortinaram. Mas, aqueles que vão além do transe bioquímico, que escapam tanto do enrijecimento quanto dos curtos-circuitos neurais, que atravessam a espessa massa de barulho – esses, terminam desaguando num vasto espaço sem dimensões, suspensos em ondas de silêncio profundo e, turbinas acionadas, escutam o que parece ser o sussurro primordial: “Set the controls for the heart of the sun, the heart of the sun... THE HEART OF THE SUN!”.

Um comentário:

  1. Adorei! Isso não é um comentário é um verdadeiro trabalho científico. Sou fã de blues e achei sua abordagem perfeita, principalmente ao destacar a relação que alguns blusmen tinham com "forças ocultas" na tentativa de justificar aquela melodia tão forte e marcante. Parabéns! Cristina Monteiro

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