domingo, 23 de agosto de 2015

Variações em 5/4: De Baile Solto



Na coluna deste mês, os editores do blog comentam o mais recente trabalho do cantor pernambucano Siba, “De Baile Solto”.

Boa leitura!


- Rógeres Bessoni:

Dirijo-me ao trabalho de Siba sempre com respeito, observando um músico cuja trajetória admiro e que me transmite uma rara sensibilidade e seriedade como pesquisador e “mergulhador” da nossa cultura. Chego sabendo que vou topar pela frente com um multi-instrumentista, localizado entre os pioneiros do Mangue Beat e Mestre de maracatu rural, o que me levou, confesso, a uma expectativa de ser impactado por um experimentalismo sonoro, mas, com sempre... lá vem a surpresa de onde menos se espera (e que grata surpresa!). Como concepção musical, o trabalho não alcançou, a meu ver, paragens realmente novas. Os melhores momentos ficam a cargo do bom andamento e melodia de “Marcha Macia” e de “Quem E Ninguém” (os cruzamentos de maracatu com eletricidade geralmente resultam em experiências arretadas pra mim).

Em diversos momentos, os arranjos (especialmente de guitarra) e andamentos, eventualmente monótonos, não botam os instrumentos “para render” como seria possível, e alguns bons temas, sem o apoio de uma malha sonora mais rica, perdem força. Mas, ainda que em música o trabalho tenha ficado aquém do que minha expectativa criou (e, ressalto, isso não é problema de Siba nem de nenhum outro artista; essas ansiedades e expectativas são de responsabilidade inteiramente minha), mencionei uma surpresa que tive, e aqui está ela: o que me impactou, de fato, foi a grande qualidade das letras. Sim, as letras, exatamente isto. Fazia muito, muito tempo que um disco não me impressionava pela qualidade de todo o seu texto. E o fato de não ter sido lançado e alardeado com ambições nesse sentido, deixou a coisa ainda melhor, justo pela espontaneidade da língua brasileira destas bandas ter sido posta de maneira tranquila, do jeito que se fala, sem as irritantes e inúteis afetações nordestinistas que, em tantos casos, mal disfarçam um brutal complexo de inferioridade. Tivemos e ainda temos bandas e artistas individuais que “emplacaram” comercialmente e agradaram público e “crítica” como sendo referências em poesia ou letras “vanguardistas, desconcertantes”, empenhadíssimos em serem reconhecidos e lembrados assim, fazendo para tanto todos os trejeitos, salamaleques e referências óbvias tidos como necessários nesse métier, algumas vezes com trabalhos ridiculamente pretensiosos, mas que sempre me passaram a consistência de um castelo de areia fofa.

Embora ainda não tenha encontrado nesse trabalho de Siba alguns dos sons “que estou procurando”, me deparei com a arte de fazer letras novas, amadurecida como eu buscava - e não se trata do simplismo “que letra bacana, fala de tal coisa!”. Ocorre que Siba aparece realmente como herdeiro – no melhor aproveitamento desse termo – da linguagem usada por seu povo na rua e na mata. Atesta todo o processo de depuração e refinamento linguístico (sempre espiritual) a que se submeteu nas inúmeras sambadas de maracatu de que deve ter participado, externando a habilidade sagaz e criativa no manejo da nossa desconhecida língua luso-brasileiro-pernambucana. Começando por “Marcha Macia”, em que ele materializou primorosamente a temática da crise urbana e humana que corrói diversos grandes centros, tão atualizada e, sobretudo, da maneira como foi tecida, tão recifense, envereda em seguida por uma corrente de sonoridades pernambucanas escutadas em todos os espaços da minha infância, a composição da memória linguística de qualquer pirralho dos interiores por onde passei, e mesmo desse “interior crescido” que é o Recife. E ali estão fragmentos da fala do povo, trava-línguas, os locutores de festas de interior, o tema sempre presente em diversas vertentes da poesia popular que opõe o pobre versus o rico nos desafios de improviso poético, a aranha arranhando a jarra, as reminiscências de uma casa da infância, e por aí vai. A grande sacada é que todos esses elementos aparecem no disco de maneira muito bem articulada, APROVEITADA – essa é a palavra-chave –, e não apenas repetidos mimeticamente e em clichés, ou amontoados de forma caótica. Siba usou magistralmente e sem teatralismos a língua que todos nós aqui aprendemos a falar, manuseou esses conteúdos para dizer o que queria, fosse memória ou protesto, e nisso reside a grandeza da construção poética do disco. E, nas composições destas nossas plagas, esse foi o meu grande achado do ano. Mas, ainda um toque sobre a musicalidade, uma grande coisa pode ser vista neste trabalho: as músicas têm tratamento melódico e são cantadas, o que não é pouca coisa, não. Parece óbvio, mas não é. Quando digo que algumas canções “perderam força”, nem de longe digo que são limitadas ou medíocres. De jeito nenhum. Ainda que minha já citada expectativa fosse por mais e diferentes sonoridades instrumentais, não tenho dúvidas de que estou diante de um trabalho sério, tratado e apresentado com zelo. Ao Mestre Siba, fica também esta minha gratidão: no cenário desolador destes nossos dias, todo esforço feito em prol da melodia e do texto são mais que bem-vindos e chegam em muito boa hora. É sempre um alento ver a música levada a sério.


- André Maranhão:

Em De Baile Solto, me pareceu claro o empenho de Siba em se fazer um intérprete escudado pela guitarra; coisa que se somou às suas bases da canção popular, principalmente identificáveis em suas letras coloquiais e sem muita complexidade poética. Seus drives guitarrísticos e palhetadas de stratocaster se lançam com batidas de maracatu – uma receita que não deixa de ser interessante, mas que está longe de ser um trunfo à Heraldo do Monte, ou Treminhão. Seu melhor momento com o instrumento está em “Meu Balão Vai Voar”; por sinal, o recurso mais interessante da faixa. Já em “Mel Tamarindo”, a guitarra Siba parece desafinada nos trechos finais.

Siba não é um cantor, propriamente falando. Ao menos não me parece um artista voltado primeiramente para a técnica vocal. Não é desafinado; no entanto, o vocalise final de “Marcha Macia” é simplesmente uma prova complicada para considerá-lo um cantor especializado. Ainda assim, Marcha Macia é uma canção interessante, composta de ironias bastante pertinentes às excessivas higienizações do cotidiano, vivenciada em diversos espaços de sociabilidade em que nos encontramos: prédios cada vez mais cercados, o suposto avanço, propagado pelos últimos discursos do poder público de “modernização”, e o afã pela felicidade por via das relações de consumo.

Em “Três Desenhos” e “Três Carmelitas”, o excesso de informações aponta um desencaixe entre os compassos das canções, seus recursos instrumentais e os tempos das letras. “Gavião” é marcada pela escolha de sintetizadores exagerada, além da ausência de harmonização ter me incomodado, na medida em que o vácuo sonoro me pareceu fruto da falta de acordes na canção. “Quem e Ninguém” é uma empreitada difícil de acertar, já que Siba basicamente tentou eletrificar o maracatu de baque solto. Eu já não sou lá um dos fãs mais adequados para escutar aquelas longas apresentações de maracatu cantadas por aqueles senhores, o que dirá ouvir isso tudo enfeixado por sintetizadores e pedais?!

Considero “A Jarra e a Aranha” é uma das melhores canções do álbum. Justo quando Siba parece mais conservador na forma, se torna melhor, pois é capaz de combinar uma letra cômica (um verdadeiro trava língua) somada a um ritmo mais próximo do frevo e até das marchinhas cariocas. “A Jarra e a Aranha” é uma boa pedida, inclusive para o carnaval!


- Giba Carvalho:

Inegavelmente, Siba tem talento com as palavras. Por consequência, seus trabalhos são bastante superiores aos que usualmente são produzidos na “Cena Pop de Pernambuco”. Com De Baile Solto não é diferente. O “Baile” flutua com letras simples e que atingem o ouvinte de modo agradável e eficaz. Mesclando questionamentos pessoais e respostas próprias, o compositor percorre caminhos que não são usualmente caminhados por estas terras.

Musicalmente falando, o álbum possui alguns pontos de relevância e outros nem tanto. Primeiro ponto é que De Baile Solto é extremamente bem gravado e mixado. Como segundo ponto, eu confesso gostar de uma coisa no trabalho de Siba: ele sabe cultivar suas raízes de modo correto e na mais pura concepção rítmica do que de fato é a música da Zona da Mata pernambucana. Isto é bastante diferente de alguns outros que “metem” um trompete com batida de frevo e afirmam ser ícones do carro-chefe da música pernambucana. Por outro lado, não achei tão interessante esta mescla de regionalismo com guitarras. Até porque, mesmo tendo ciência da pesquisa de ritmos afros pelo compositor da Zona da Mata Pernambucana, prefiro quando o lance é mais cru. Um pouco conservador? Talvez. Mas, as cordas das rabecas fazem diferença imensa para meus ouvidos no produto final.

De Baile Solto é um trabalho de muito bom nível, que nada a braçadas largas no cenário contemporâneo de Pernambuco e que marca a luta da preservação de memória contra um suposto desenvolvimento em suas letras. Já na execução, fica claro que a música pode modernizar-se mantendo algumas características das raízes antigas. Siba é um artista que possui de fato dimensão internacional e demonstra isso claramente com todo lirismo, poesia e com uma gama de possibilidades sonoras para seus ouvintes.

Destaco – “Quem e Ninguém”, “A Jarra e a Aranha” e “O Inimigo Dorme”.


- Bruno Vitorino:

Sempre tenho a curiosidade de ouvir um trabalho novo do pernambucano Siba Veloso. Quando chega a meus ouvidos a notícia de que ele entrou em estúdio para gravar um novo disco, meu coração e juízo, como que numa espécie de combinação tácita e secreta, logo se põem a cultivar boas expectativas e conjeturar sobre que paisagens sonoras serão desveladas. Suspeito, por sinal, que tal acordo tenha surgido há muito, nuns velhos tempos em que eu, baixista, punk e criança, ia assistir às apresentações da lendária Mestre Ambrósio no Recife Antigo e me via inteiramente extático diante daquela reinterpretação intensa e verdadeira das tradições do meu Pernambuco. Tradições estas, diga-se, que se apresentavam diante de mim como um território povoado, vivo e dinâmico, e não como um museu empoeirado de memórias coletivas imortalizadas nos pedestais intocáveis do purismo regionalista – que de alguma forma me tinham um certo cheiro de Casa Grande. O fato é que, desde essa época, Siba se tornou para mim sinônimo de um artista de muita profundidade estética, haja vista sua imersão nas raízes de seu universo sonoro por excelência - o maracatu rural - e a sagacidade de sua mente criativa em romper com as cômodas bolhas do discurso tradicionalista e dialogar com os além de si propostos pelo mundo, num sincretismo que costuma ser fértil, distante anos-luz da caricatura mercantil da wold music.

Se por um lado, no disco Siba e a Fuloresta, o compositor se apresenta como um legítimo mestre de maracatu imbuído de um poder transcendental conferido pelas práticas sócio-culturais daquela comunidade lá em Nazaré da Mata que se preservam pela repetição e se inscrevem na rima e no ritmo exuberante dos taróis; e do outro, temos em Avante, como uma entidade inteiramente alienígena à primeira representação de sua artisticidade, o quase roqueiro que veste jeans, usa tênis All Star e toca guitarra Fender inserido no coração de um grande centro urbano do Brasil fazendo uma música impregnada pela sonoridade grotesca do Cidadão Instigado de Fernando Catatau, que faz do tosco recurso estético e do nonsense, poesia; com De Baile Solto, encontramos um Siba no meio do caminho.

Ao fazer a ponte entre esses lugares aparentemente distantes do painel da Cultura, o pernambucano leva o Maracatu às ruas da cidade grande para, em letras de métrica rica e problematizadoras de suas circunstâncias e entornos, propor uma reflexão sobre realidade que se apresenta e o estatuto de arte popular e pop em nossos tempos, numa música muito bem arquitetada a qual requer, além dos ouvidos, também o corpo para ser ouvida. Um baile onde a dança que se propõe não é aquela da frivolidade hedonista e festiva dos folguedos populares, que mira na rota de escape; e sim a do encontro consigo e da percepção do outro, a da celebração coletiva na construção social da realidade, a da resistência estética, intelectual e, por que não dizer, humana ante a retumbante marcha da imbecilização que avança e se espraia esvaziando de significados tudo o que pisa, entregando em contrapartida discursos ocos, modos de vida padronizados e mercadorias enquanto arcabouço simbólico de uma nova ordem social. Por isso, ao ouvir De Baile Solto imediatamente me vem à cabeça o que disse certa vez John Coltrane: “Eu acho que a maioria dos músicos estão interessados na verdade, sabe? Eles têm de estar, porque um objeto, um objeto musical, é uma verdade. Se você toca e faz uma assertiva, uma assertiva musical, e é uma assertiva válida, tem-se uma verdade por si mesma bem aí, sabe?”[1]. E é exatamente esta perspectiva de verdade que torna o disco tão necessário e seus enunciados tão vastos.

Destaque para a ironia não tão sutil de “Marcha Macia” e “Quem e Ninguém”, as camadas rítmicas enviesadas sobrepostas em ostinatos e a guitarra saturada de “Gavião”, a mistura de compassos quaternário e ternário de “Três Desenhos” que conferem movimento à poesia, a latinidade lacônica de “Três Carmelitas”, o jogo de palavras no frevo-carimbó-maxixe-la ursa de “A Jarra e a Aranha” e para o fato de não haver baixo no disco inteiro, e sim uma tuba construindo belas linhas nos registros graves.

Altamente recomendado!


- Fernando Lucchesi:
         
Pude acompanhar bem a carreira de Siba durante o período em que ele foi membro da banda Mestre Ambrósio. Daí por diante perdi completamente o contato com sua música. Vi que alguns discos dele, como Siba e a Fuloresta foram, em geral, bem recebidos pela crítica, assim como seu último disco solo Avante.

Sem dúvida, Siba busca introduzir novos elementos na sua música, incorporando um lado mais urbano (vide a grande quantidade de músicas em que a guitarra é o instrumento condutor rítmico/melódico), sem, no entanto, abandonar o som que o projetou, inspirado nas tradições oriunda do interior. 

Essa mescla do urbano com o rural fica excelente em algumas músicas e em outras, nem tanto. “Marcha Macia” e “Gavião” (uma versão sombria e psicodélica da música do disco Terceiro Samba do Mestre Ambrósio) abrem o disco com maestria dando a impressão que o álbum vem com mais canções do mesmo calibre, mas não é o que vemos, nem ouvimos. As extensas “Mel Tamarindo”, “Três Desenhos” quebram o ritmo interessante que se apresentava no começo. Já “Três Carmelitas”, esta com uma levada mais pop, retoma o ritmo inicial. “Quem e Ninguém” e “A Jarra e a Aranha” (com uma guitarra puxada pro frevo) trazem em suas letras divertidos jogos de palavra demonstrando o talento do letrista Siba. Já a música que dá título ao disco, “De Baile Solto”, é um instrumental completamente dispensável.  


Se Siba não foi completamente feliz na ideia da junção de influências, pode-se afirmar que ele já demonstrou que boas idéias para isso ele tem.

  





[1] BLUME, August; “Interview With John Coltrane” in DeVITO, Chris (editor), “Coltrane on Coltrane: The John Coltrane Interviews”, Chicago Review Press, Chicago, Illinois, 2010, pág. 14. 

Um comentário:

  1. Parabéns ao grupo pelos comentários, não conhecia o disco e gostei muito do que li e ouvi. Cristina Monteiro

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