Na coluna deste mês, os editores do
blog comentam o mais recente trabalho do cantor pernambucano Siba, “De Baile
Solto”.
Boa leitura!
- Rógeres Bessoni:
Dirijo-me
ao trabalho de Siba sempre com respeito, observando um músico cuja trajetória
admiro e que me transmite uma rara sensibilidade e seriedade como pesquisador e
“mergulhador” da nossa cultura. Chego sabendo que vou topar pela frente com um
multi-instrumentista, localizado entre os pioneiros do Mangue Beat e Mestre de
maracatu rural, o que me levou, confesso, a uma expectativa de ser impactado
por um experimentalismo sonoro, mas, com sempre... lá vem a surpresa de onde
menos se espera (e que grata surpresa!). Como concepção musical, o trabalho não
alcançou, a meu ver, paragens realmente novas. Os melhores momentos ficam a
cargo do bom andamento e melodia de “Marcha Macia” e de “Quem E Ninguém” (os
cruzamentos de maracatu com eletricidade geralmente resultam em experiências
arretadas pra mim).
Em
diversos momentos, os arranjos (especialmente de guitarra) e andamentos,
eventualmente monótonos, não botam os instrumentos “para render” como seria
possível, e alguns bons temas, sem o apoio de uma malha sonora mais rica,
perdem força. Mas, ainda que em música o trabalho tenha ficado aquém do que
minha expectativa criou (e, ressalto, isso não é problema de Siba nem de nenhum
outro artista; essas ansiedades e expectativas são de responsabilidade
inteiramente minha), mencionei uma surpresa que tive, e aqui está ela: o que me
impactou, de fato, foi a grande qualidade das letras. Sim, as letras,
exatamente isto. Fazia muito, muito tempo que um disco não me impressionava
pela qualidade de todo o seu texto. E o fato de não ter sido lançado e
alardeado com ambições nesse sentido, deixou a coisa ainda melhor, justo pela
espontaneidade da língua brasileira destas bandas ter sido posta de maneira
tranquila, do jeito que se fala, sem as irritantes e inúteis afetações
nordestinistas que, em tantos casos, mal disfarçam um brutal complexo de inferioridade.
Tivemos e ainda temos bandas e artistas individuais que “emplacaram”
comercialmente e agradaram público e “crítica” como sendo referências em poesia
ou letras “vanguardistas, desconcertantes”, empenhadíssimos em serem
reconhecidos e lembrados assim, fazendo para tanto todos os trejeitos,
salamaleques e referências óbvias tidos como necessários nesse métier, algumas vezes com trabalhos
ridiculamente pretensiosos, mas que sempre me passaram a consistência de um
castelo de areia fofa.
Embora
ainda não tenha encontrado nesse trabalho de Siba alguns dos sons “que estou
procurando”, me deparei com a arte de fazer letras novas, amadurecida como eu
buscava - e não se trata do simplismo “que letra bacana, fala de tal coisa!”.
Ocorre que Siba aparece realmente como herdeiro – no melhor aproveitamento
desse termo – da linguagem usada por seu povo na rua e na mata. Atesta todo o
processo de depuração e refinamento linguístico (sempre espiritual) a que se
submeteu nas inúmeras sambadas de maracatu de que deve ter participado,
externando a habilidade sagaz e criativa no manejo da nossa desconhecida língua
luso-brasileiro-pernambucana. Começando por “Marcha Macia”, em que ele
materializou primorosamente a temática da crise urbana e humana que corrói
diversos grandes centros, tão atualizada e, sobretudo, da maneira como foi
tecida, tão recifense, envereda em seguida por uma corrente de sonoridades
pernambucanas escutadas em todos os espaços da minha infância, a composição da
memória linguística de qualquer pirralho dos interiores por onde passei, e
mesmo desse “interior crescido” que é o Recife. E ali estão fragmentos da fala
do povo, trava-línguas, os locutores de festas de interior, o tema sempre
presente em diversas vertentes da poesia popular que opõe o pobre versus o rico
nos desafios de improviso poético, a aranha arranhando a jarra, as
reminiscências de uma casa da infância, e por aí vai. A grande sacada é que
todos esses elementos aparecem no disco de maneira muito bem articulada,
APROVEITADA – essa é a palavra-chave –, e não apenas repetidos mimeticamente e
em clichés, ou amontoados de forma caótica. Siba usou magistralmente e sem
teatralismos a língua que todos nós aqui aprendemos a falar, manuseou esses
conteúdos para dizer o que queria, fosse memória ou protesto, e nisso reside a
grandeza da construção poética do disco. E, nas composições destas nossas
plagas, esse foi o meu grande achado do ano. Mas, ainda um toque sobre a
musicalidade, uma grande coisa pode ser vista neste trabalho: as músicas têm tratamento
melódico e são cantadas, o que não é pouca coisa, não. Parece óbvio, mas não é.
Quando digo que algumas canções “perderam força”, nem de longe digo que são
limitadas ou medíocres. De jeito nenhum. Ainda que minha já citada expectativa
fosse por mais e diferentes sonoridades instrumentais, não tenho dúvidas de que
estou diante de um trabalho sério, tratado e apresentado com zelo. Ao Mestre
Siba, fica também esta minha gratidão: no cenário desolador destes nossos dias,
todo esforço feito em prol da melodia e do texto são mais que bem-vindos e
chegam em muito boa hora. É sempre um alento ver a música levada a sério.
- André Maranhão:
Em
De Baile Solto, me pareceu claro o
empenho de Siba em se fazer um intérprete escudado pela guitarra; coisa que se
somou às suas bases da canção popular, principalmente identificáveis em suas
letras coloquiais e sem muita complexidade poética. Seus drives guitarrísticos e palhetadas de stratocaster se lançam com batidas de maracatu – uma receita que
não deixa de ser interessante, mas que está longe de ser um trunfo à Heraldo do
Monte, ou Treminhão. Seu melhor momento com o instrumento está em “Meu Balão Vai
Voar”; por sinal, o recurso mais interessante da faixa. Já em “Mel Tamarindo”,
a guitarra Siba parece desafinada nos trechos finais.
Siba
não é um cantor, propriamente falando. Ao menos não me parece um artista
voltado primeiramente para a técnica vocal. Não é desafinado; no entanto, o
vocalise final de “Marcha Macia” é simplesmente uma prova complicada para
considerá-lo um cantor especializado. Ainda assim, Marcha Macia é uma canção
interessante, composta de ironias bastante pertinentes às excessivas
higienizações do cotidiano, vivenciada em diversos espaços de sociabilidade em
que nos encontramos: prédios cada vez mais cercados, o suposto avanço,
propagado pelos últimos discursos do poder público de “modernização”, e o afã
pela felicidade por via das relações de consumo.
Em
“Três Desenhos” e “Três Carmelitas”, o excesso de informações aponta um
desencaixe entre os compassos das canções, seus recursos instrumentais e os
tempos das letras. “Gavião” é marcada pela escolha de sintetizadores exagerada,
além da ausência de harmonização ter me incomodado, na medida em que o vácuo
sonoro me pareceu fruto da falta de acordes na canção. “Quem e Ninguém” é uma
empreitada difícil de acertar, já que Siba basicamente tentou eletrificar o
maracatu de baque solto. Eu já não sou lá um dos fãs mais adequados para
escutar aquelas longas apresentações de maracatu cantadas por aqueles senhores,
o que dirá ouvir isso tudo enfeixado por sintetizadores e pedais?!
Considero
“A Jarra e a Aranha” é uma das melhores canções do álbum. Justo quando Siba
parece mais conservador na forma, se torna melhor, pois é capaz de combinar uma
letra cômica (um verdadeiro trava língua) somada a um ritmo mais próximo do
frevo e até das marchinhas cariocas. “A Jarra e a Aranha” é uma boa pedida,
inclusive para o carnaval!
- Giba Carvalho:
Inegavelmente,
Siba tem talento com as palavras. Por consequência, seus trabalhos são bastante
superiores aos que usualmente são produzidos na “Cena Pop de Pernambuco”. Com De Baile Solto não é diferente. O
“Baile” flutua com letras simples e que atingem o ouvinte de modo agradável e
eficaz. Mesclando questionamentos pessoais e respostas próprias, o compositor
percorre caminhos que não são usualmente caminhados por estas terras.
Musicalmente
falando, o álbum possui alguns pontos de relevância e outros nem tanto.
Primeiro ponto é que De Baile Solto é
extremamente bem gravado e mixado. Como segundo ponto, eu confesso gostar de
uma coisa no trabalho de Siba: ele sabe cultivar suas raízes de modo correto e
na mais pura concepção rítmica do que de fato é a música da Zona da Mata
pernambucana. Isto é bastante diferente de alguns outros que “metem” um
trompete com batida de frevo e afirmam ser ícones do carro-chefe da música
pernambucana. Por outro lado, não achei tão interessante esta mescla de
regionalismo com guitarras. Até porque, mesmo tendo ciência da pesquisa de
ritmos afros pelo compositor da Zona da Mata Pernambucana,
prefiro quando o lance é mais cru. Um pouco conservador? Talvez. Mas, as cordas
das rabecas fazem diferença imensa para meus ouvidos no produto final.
De
Baile Solto é um trabalho de muito bom nível, que nada a braçadas largas no
cenário contemporâneo de Pernambuco e que marca a luta da preservação de
memória contra um suposto desenvolvimento em suas letras. Já na execução, fica
claro que a música pode modernizar-se mantendo algumas características das
raízes antigas. Siba é um artista que possui de fato dimensão internacional e
demonstra isso claramente com todo lirismo, poesia e com uma gama de possibilidades sonoras para seus ouvintes.
Destaco
– “Quem e Ninguém”, “A Jarra e a Aranha” e “O Inimigo Dorme”.
- Bruno Vitorino:
Sempre tenho a curiosidade de ouvir um
trabalho novo do pernambucano Siba Veloso. Quando chega a meus ouvidos a
notícia de que ele entrou em estúdio para gravar um novo disco, meu coração e
juízo, como que numa espécie de combinação tácita e secreta, logo se põem a
cultivar boas expectativas e conjeturar sobre que paisagens sonoras serão desveladas.
Suspeito, por sinal, que tal acordo tenha surgido há muito, nuns velhos tempos
em que eu, baixista, punk e criança,
ia assistir às apresentações da lendária Mestre Ambrósio no Recife Antigo e me
via inteiramente extático diante daquela reinterpretação intensa e verdadeira
das tradições do meu Pernambuco. Tradições estas, diga-se, que se apresentavam
diante de mim como um território povoado, vivo e dinâmico, e não como um museu empoeirado
de memórias coletivas imortalizadas nos pedestais intocáveis do purismo
regionalista – que de alguma forma me tinham um certo cheiro de Casa Grande. O
fato é que, desde essa época, Siba se tornou para mim sinônimo de um artista de
muita profundidade estética, haja vista sua imersão nas raízes de seu universo
sonoro por excelência - o maracatu rural - e a sagacidade de sua mente criativa
em romper com as cômodas bolhas do discurso tradicionalista e dialogar com os
além de si propostos pelo mundo, num sincretismo que costuma ser fértil,
distante anos-luz da caricatura mercantil da wold music.
Se por um lado, no disco Siba e a Fuloresta, o compositor se
apresenta como um legítimo mestre de maracatu imbuído de um poder
transcendental conferido pelas práticas sócio-culturais daquela comunidade lá
em Nazaré da Mata que se preservam pela repetição e se inscrevem na rima e no
ritmo exuberante dos taróis; e do outro, temos em Avante, como uma entidade inteiramente alienígena à primeira
representação de sua artisticidade, o quase roqueiro que veste jeans, usa tênis
All Star e toca guitarra Fender inserido no coração de um grande
centro urbano do Brasil fazendo uma música impregnada pela sonoridade grotesca do
Cidadão Instigado de Fernando Catatau, que faz do tosco recurso estético e do nonsense, poesia; com De Baile Solto, encontramos um Siba no
meio do caminho.
Ao fazer a ponte entre esses lugares
aparentemente distantes do painel da Cultura, o pernambucano leva o Maracatu às
ruas da cidade grande para, em letras de métrica rica e problematizadoras de
suas circunstâncias e entornos, propor uma reflexão sobre realidade que se
apresenta e o estatuto de arte popular e pop
em nossos tempos, numa música muito bem arquitetada a qual requer, além dos
ouvidos, também o corpo para ser ouvida. Um baile onde a dança que se propõe
não é aquela da frivolidade hedonista e festiva dos folguedos populares, que
mira na rota de escape; e sim a do encontro consigo e da percepção do outro, a da
celebração coletiva na construção social da realidade, a da resistência
estética, intelectual e, por que não dizer, humana ante a retumbante marcha da
imbecilização que avança e se espraia esvaziando de significados tudo o que
pisa, entregando em contrapartida discursos ocos, modos de vida padronizados e
mercadorias enquanto arcabouço simbólico de uma nova ordem social. Por isso, ao
ouvir De Baile Solto imediatamente me
vem à cabeça o que disse certa vez John Coltrane: “Eu acho que a maioria dos
músicos estão interessados na verdade, sabe? Eles têm de estar, porque um
objeto, um objeto musical, é uma verdade. Se você toca e faz uma assertiva, uma
assertiva musical, e é uma assertiva válida, tem-se uma verdade por si mesma
bem aí, sabe?”[1].
E é exatamente esta perspectiva de verdade que torna o disco tão necessário e
seus enunciados tão vastos.
Destaque para a ironia não tão sutil de
“Marcha Macia” e “Quem e Ninguém”, as camadas rítmicas enviesadas sobrepostas
em ostinatos e a guitarra saturada de “Gavião”, a mistura de compassos
quaternário e ternário de “Três Desenhos” que conferem movimento à poesia, a
latinidade lacônica de “Três Carmelitas”, o jogo de palavras no frevo-carimbó-maxixe-la
ursa de “A Jarra e a Aranha” e para o fato de não haver baixo no disco inteiro,
e sim uma tuba construindo belas linhas nos registros graves.
Altamente recomendado!
- Fernando Lucchesi:
Pude acompanhar bem a carreira de Siba
durante o período em que ele foi membro da banda Mestre Ambrósio. Daí por
diante perdi completamente o contato com sua música. Vi que alguns discos dele,
como Siba e a Fuloresta foram, em
geral, bem recebidos pela crítica, assim como seu último disco solo Avante.
Sem dúvida, Siba busca introduzir novos
elementos na sua música, incorporando um lado mais urbano (vide a grande
quantidade de músicas em que a guitarra é o instrumento condutor
rítmico/melódico), sem, no entanto, abandonar o som que o projetou, inspirado
nas tradições oriunda do interior.
Essa mescla do urbano com o rural fica
excelente em algumas músicas e em outras, nem tanto. “Marcha Macia” e “Gavião”
(uma versão sombria e psicodélica da música do disco Terceiro Samba do Mestre Ambrósio) abrem o disco com maestria dando
a impressão que o álbum vem com mais canções do mesmo calibre, mas não é o que
vemos, nem ouvimos. As extensas “Mel Tamarindo”, “Três Desenhos” quebram o
ritmo interessante que se apresentava no começo. Já “Três Carmelitas”, esta com
uma levada mais pop, retoma o ritmo inicial. “Quem e Ninguém” e “A Jarra e a Aranha”
(com uma guitarra puxada pro frevo) trazem em suas letras divertidos jogos de
palavra demonstrando o talento do letrista Siba. Já a música que dá título ao
disco, “De Baile Solto”, é um instrumental completamente dispensável.
Se
Siba não foi completamente feliz na ideia da junção de influências, pode-se afirmar
que ele já demonstrou que boas idéias para isso ele tem.
[1] BLUME,
August; “Interview With John Coltrane” in
DeVITO, Chris (editor), “Coltrane on Coltrane: The John Coltrane Interviews”,
Chicago Review Press, Chicago, Illinois, 2010, pág. 14.
Parabéns ao grupo pelos comentários, não conhecia o disco e gostei muito do que li e ouvi. Cristina Monteiro
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