Agosto foi um mês
de saxofonistas na minha escuta. Talvez por causa de certa preocupação e pesquisa
das questões da melodia – motivos, tema, fraseados, articulação, etc. – tenha intuitivamente voltado meus ouvidos para
estes instrumentistas. Separei aqui três dos discos que ouvi mês passado, todos
projetos capitaneados por saxofonistas, mas que apontam caminhos estéticos
diferentes entre si, atestando o quão pessoal pode ser a música em sua infinita
variedade.
1. Mark Turner Quartet – Lathe of
Heaven:
Dos saxofonistas contemporâneos
radicados em Nova Iorque, Mark Turner sempre me pareceu a menos badalado de
seus pares em seu mundo da arte, atuando à sombra de figuras estelares como
Chris Potter, Joe Lovano e Joshua Redman, recebendo pouca atenção da crítica
especializada e desempenhando um papel relativamente discreto no circuito
internacional do jazz. No entanto, o tenorista formado na Berklee College of Music e descoberto pelo trombonista/produtor
Delfeayo Marsalis (o mais novo dos irmãos da dinastia Marsalis) no início dos
anos 1990 vem conseguindo se sobrepor à subestima com um estilo de improvisação
bastante particular que privilegia longas e bem arquitetadas linhas melódicas, o
uso dos espaços e da variação motívica, saltos inesperados nos registros do sax
notadamente a explorar os agudos como recurso provedor do clímax; sintetizando,
com isso, numa espécie de dialética sonora, explosão emotiva e contenção
racional de seus impulsos. Obviamente influenciado por John Coltrane e Sonny
Rollins, pois são referências inescapáveis a qualquer saxofonista do gênero,
seu estilo, entretanto, busca primordialmente reconectar o tenor à tradição de
certa forma esquecida do contemplativo Cool Jazz, mais especialmente ao sax de
Warne Marsh, daí a singularidade de sua sonoridade.
“Lathe of Heaven”,
disco lançado em meados do ano passado pelo selo alemão ECM Records, documenta a
maturidade de Turner enquanto solista decantada ao longo de sua carreira, além
de enfatizar, pela primeira vez, a meu ver, seu talento inerente para a
composição além dos esquemas convencionais de saxofonistas prolixos no qual um
tema é estruturado por blocos que expõem uma melodia - geralmente complicada, cheia
de notas e picotada por acentos rítmicos incomuns - através de centros tonais que servem de guia para
os músicos nos solos que giram indefinidamente sobre toda a forma. Neste
sentido, o que se encontra no álbum do tenorista é a preocupação de um
compositor inteiramente consciente de seus objetivos estéticos em enfatizar os
silêncios, desenhar melodias vagarosas que se movem calmamente por meio de notas
longas tocadas em contraponto que gravitam sobre uma seção rítmica bastante
fluida e liberta dos constrangimentos impostos pela noção tradicional de swing em 4/4; valendo-se da ausência de
um instrumento harmônico para, além de depositar mais responsabilidade sobre
todos os envolvidos no delicado processo coletivo da interpretação em contextos
de espaço amplo, articular seções ancoradas por um sentido harmônico (geralmente
modal) a outras inteiramente abertas de improvisação coletiva. Com isso, Turner,
Avishai Cohen (trompete), Joe Martin (contrabaixo) e Marcus Gilmore (bateria) conseguem
a proeza de transitar com muita naturalidade entre tradição e o avant-garde numa música que propõe uma
ideia pouco usual de lirismo que é, de alguma maneira, clássica, mas
inteiramente nova. Disco altamente recomendado.
2. Steve Lehman Octetc – Mise en Abîme:
O disco do Steve
Lehman é uma porrada! É um trabalho que apresenta ao ouvinte sério e aos
músicos interessados com os aspectos da composição, interpretação e improviso
possibilidades inteiramente novas e inspiradoras. Desdobramento natural de sua
tese de doutoramento em música na Universidade de Colúmbia (clique AQUI
para ler), em “Mise em Abîme” o saxofonista depura sua abordagem musical baseada
em três conceitos chave: a música espectral, que consiste basicamente em
decompor uma nota musical em sua série harmônica e considerar todo esse halo
sonoro nas escolhas da orquestração, harmonização e improviso; improvisação
afrológica, que mais do que uma técnica ou estilo, sintetiza um conceito de
improvisação, um ethos musical
fundamentado na espontaneidade das decisões tomadas "na hora" durante a performance,
no caráter colaborativo do ato de tocar, na preocupação em articular personalidade
e perspectivas individuais através do som; e limiares rítmicos, ideia que foca
na percepção cognitiva dos fenômenos rítmicos. Mas, calma! Não se assuste com
todo esse embasamento teórico, pois não se trata de uma música científica,
laboratorial e inorgânica, mero exercício formal e acadêmico da construção
sonora. Há, isto sim, uma ousadia de se procurar novas maneiras de compor,
improvisar e interpretar um tema por trás de todo este aparato conceitual que
mais remete à música erudita de vanguarda que ao jazz. No entanto, Lehman tenta
aqui erguer uma ponte entre estes dois mundos, fazendo com que se retroalimentem
e se expandam enquanto linguagens e plataformas expressivas. E, ao fazer isso
de maneira muito firme através de uma música inteligível e palatável, propõe
uma outra sensibilidade, uma outra construção estética que defina um novo conceito
de beleza bem distante daquela que se sedimentou em nossa memória auditiva.
Música para mentes abertas, ouvidos inquietos e curiosos. Altamente recomendado!
3. John Coltrane – Offering: Live at
Temple University:
Em outubro de
1956, John Coltrane foi expulso do aclamado quinteto do trompetista Miles
Davis. Miles, digamos usando um termo suave, estava “triste” com o
comportamento do saxofonista. Seus problemas com o álcool e o vício em heroína
faziam com que Trane estivesse sempre em más condições: chegava atrasado,
cochilava no palco, errava as entradas dos temas, era displicente nos
improvisos... Era o fundo do poço. Até que, em meados de 1957, Coltrane, nas
palavras do próprio, experimentou, “pela graça de Deus, um despertar espiritual
que me levou a uma vida mais rica, plena e mais produtiva”[1]. Por
conta dessa epifania, o saxofonista entrou numa espécie de primeiro ciclo
criativo que lhe rendeu as camadas de som (sheets
of sounds), complexos esquemas harmônicos e os álbuns “Blue Train” e “Giant
Steps”, ambos clássicos e obrigatórios. A partir de então, o aspecto espiritual
passou a estar presente na concepção musical de John Coltrane, e, à medida que
ele continuava sua busca por uma música que abarcasse todas as suas
necessidades expressivas, este caráter religioso foi tomando um papel cada vez
mais central em sua produção.
Lato sensu, “Offering: Live at Temple
University” documenta um John Coltrane em sua última fase: absolutamente imerso
naquela perspectiva transcendental de sua obra, de busca em não apenas se
reconectar com uma Força Criadora através da música, como também em ampliar suas
fronteiras estéticas para ainda mais longe. Olhando mais especificamente, o
disco duplo traz o registro do concerto histórico dado por Coltrane e seu grupo
em 11 de novembro de 1966 - quando ele já não mais se apresentava em clubes, e
sim em igrejas e templos - em que, de maneira totalmente inesperada e
espontânea, ele põe seu instrumento de lado e começa a cantar e bater no peito,
inteiramente mergulhado num transe. Através deste precioso documento é possível
identificar aspectos fundamentais da música do saxofonista em seu último estágio,
isto é, sua preocupação com o ritmo pelo incremento de percussionistas; o ainda vigoroso som do tenor e as intensas
sessões de improvisação, a despeito da debilidade de sua saúde por causa do câncer
no fígado que em 6 meses lhe retiraria a vida; e, o mais importante, como as
composições serviam de plataforma para vôos individuais e coletivos pelas
paisagens abstratas e rarefeitas do etéreo com o mais puro intuito de
comunicar o sublime. Por isso, “Offering” é o testemunho de que Coltrane em seu
mergulho na espiritualidade se entregou inteiramente a celebrar e agradecer ao
Cosmo pela dádiva da vida, como se afirmasse um preceito dos sufis que defendiam que “a totalidade da
criação é o som e que tudo surgiu e desenvolveu-se através do tom e do ritmo”[2]. Um
disco obrigatório para os iniciados na liturgia de John Coltrane, mas, talvez,
não adequado para aqueles que iniciam contato agora com sua obra.
[1]
Trecho retirado do texto escrito pelo próprio Coltrane para o clássico “A Love
Supreme”.
[2]
KHAN, Musharaff Moulamia; “A Vida de Um Sufi”, Editora Civilização Brasileira,
Rio de Janeiro, 1973, pág. 119.
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