terça-feira, 1 de dezembro de 2015

O Efeito João do Morro - Por André Maranhão

O cantor João do Morro. Fonte: Google Imagens.


Pelo visto, João do Morro irá do céu ao inferno em dois tempos. Ao menos em algumas esferas, onde antes parecia bastante louvado. Pessoalmente, nunca gostei dos seus trabalhos; aliás, para mim (e creio que para muitas pessoas), nunca foi uma novidade que seus discursos estiveram marcados por óticas extremamente machistas, violentas, de baixo calão. Como resultado, suas canções hoje arrebatam legiões de simpatizantes em um estado tão violento como o de Pernambuco, sobretudo na Região Metropolitana do Recife – eixo onde João do Morro parece dispor de um alcance mais forte, movendo milhares de seguidores em seus palcos e trios elétricos.

No entanto, é preciso recordar que o “signo” João do Morro não surgiu por acaso e nem espontaneamente; o mesmo foi empoderado aos poucos, referendado em círculos da cena artística local que o celebraram em videoclipes, festivais, e logo correram afobados para rodar documentários sobre aquele “fenômeno”; artista também carregado por governos e prefeituras “populares” e que não caiu de paraquedas em programas esportivos da TV à toa – hoje posando de “figura do povo” e tecendo análises sobre os desempenhos de Náutico, Santa Cruz e Sport, regadas a muitos caldinhos. Em outros termos, João do Morro foi um produto construído estrategicamente por grupos determinantes da cultura de Pernambuco, que hoje parecem coçar a cabeça com a encrenca em que se meteram, ainda mais após o artista ofender sumariamente a presidenta Dilma Rousseff. O Partido dos Trabalhadores, por sua vez, marcou posição e lançou um texto em repúdio ao cantor, descambando na problemática da violência contra a mulher e em todos os males que a mesma tem causado à sociedade. Uma resposta, diga-se de passagem, pertinente e legítima do PT.


Por outro lado, penso que a construção midiática e os patrocínios em torno de João do Morro são parte de uma armadilha que me incomoda bastante: a inversão radical promovida pela crítica / produção cultural, capaz de muitas vezes tratar um artista de “periferia” como o expoente mais legítimo e sincero da “cultura popular”. Esse tipo de lógica além de arriscada, pode se converter em algo ainda mais impreciso e implodir aos poucos, sobretudo quando envolve uma figura como João do Morro, alavancado sob a retórica de ser uma grande alternativa diante de outros estilos e linguagens da arte supostamente considerados “burgueses”, “pedantes”, ou “elitistas”, ou seja, simplesmente achincalhados por se tratarem de gêneros de uma dita “dominação” e ou “alienação”. O resultado disso foi um tiro no pé, pois um nome como João do Morro, ao cair no colo desse discurso de “verdade do povo” e do retrato de suas “lutas”, passou a ser endossado pelos principais jornais pernambucanos – jornais que muitas vezes pintam um artista que vem da “periferia” ou da “massa” como alguém automaticamente isento de reprodutivismos da cultura. Consequentemente, o erro desse tipo de cálculo, mais cedo ou mais tarde não deixou de aparecer, na medida em que alguém como João do Morro, antes já conhecido por cantar “Quer mamar, vá pra debaixo do burro”; “as nega endoida”; "Não me diga que uma tatuagem; é sinal de puta" ou “Vou chamar a Polícia Militar – É pau!”, retoma o seu discurso agressivo, taxativo (e agora ainda mais polêmico) ao pedir a Santo Antônio que “arrume uma macho pra Dilma”; ou ao chamá-la de “chupa charque”. É claro que tudo isso só me leva a discordar ainda mais desse tipo de enunciação articulada por João do Morro. No entanto, não devemos esquecer que além de segmentos da produção, crítica e imprensa locais, o cantor é parte de uma sequela que foi gerada por políticos e gestões de esquerda em Pernambuco, outrora quando cacifaram o próprio João do Morro e praticamente o tomaram como um “vanguardista das vozes populares”. Ora, ninguém precisa bancar o Peter Bürger pra saber que canções capazes de coisificar as mulheres, os negros e evocarem a violência policiesca não são sinônimos de vanguarda nem de relevância estética. Porém, as autoridades parecem ter acreditado nisso, ou tapeado muita gente reproduzindo esse tipo de delírio.

Para finalizar, creio que o Efeito João do Morro não deixa de remontar aos trabalhos de Norbert Elias sobre o conceito de civilização – para ele um constructo sociohistórico, um processo marcado por relações e desenvolvimentos de políticas higienistas que nos cercam, através da oficialização de espaços “liberados” para vertermos nossas emoções, quando, na realidade, as mesmas não deixam de ser controladas por dispositivos. Em outras palavras (e transpondo esse paralelo para hoje), não esqueçamos que apesar de ser muito digno opor-se às violências das canções de João do Morro – artista que descreve Dilma como alguém que “bota em nosso cu” – não esqueçamos que há anos atrás (e até mesmo há meses), outras tantas personalidades e baluartes da cena artística de Pernambuco estavam em blocos satíricos a cantar sobre os palcos “multiculturais”, bancados pelos cofres públicos e agradando centenas de intelectuais, com paródias que envolviam Oscar Niemeyer “comendo a mãe do presidente” (Lula); chamando cantoras da MPB de “cola-velcro, testemunhando a voz de mulheres supostamente traídas que chamariam “o negão pra resolver”; ou na senda dessa turma que afirmava que iria “botar no cu” de uma série de prefeitos, vice-prefeitos, vereadores, deputados, dentre outros – tudo isso, justificado sob o álibi de apenas tratar-se de uma “brincadeira de Carnaval” (leia-se, de um lugar apropriado para situações de licenciosidade controlada), como também, de um espaço bastante pautado por muita hipocrisia no ar, é claro! 

3 comentários:

  1. Carlos Eduardo Montenegro1 de dezembro de 2015 às 13:12

    Perfeito, meu amigo. A brodagem recifense é o maior empecilho pra qualquer evolução cultural nessa cidade. E a hipocrisia reina entre os brothers...

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