segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

A Profecia de Star Wars – por Bruno Vitorino


Diante de um mundo que fracassou, o homem de nosso tempo tem de fazer uma escolha: ou a angústia ou a abjeção.

Nelson Rodrigues (I)


Demorou, mas finalmente fui assistir a Star Wars: Os Últimos Jedi. Sinceramente, não sei impelido por quais forças ocultas me sujeitei a essa experiência, no mínimo, ultrajante para qualquer amante da trilogia clássica de George Lucas. Talvez, por uma espécie de dever moral, já que de peito aberto, embora desconfiado, submeti-me voluntariamente ao desastre intitulado O Despertar da Força; daí que agora eu deveria continuar o que havia começado e me expor ao suplício dessa nova trilogia até seu fim. Ou talvez, por ter lido em um bocado de veículos da Grande Mídia que se tratava de um filme magistral, uma continuação magnífica que não só honrava o universo de Star Wars, mas que o renovava por inteiro. Inclusive, cheguei a ouvir de profundos conhecedores da saga – e não apenas dos carentes viciados em likes encontrados em cada esquina do Facebook, Instagram e Twitter – que se tratava do melhor de todos os filmes já realizados da série. De repente, por conta disso tudo, devo ter alimentado alguma ilusão que acendeu minha curiosidade. Assim, passado o frenesi da estreia e aproveitando que o novo “filme do momento” é o reboot (mais um) de Jumanji, dei-me ao luxo de desperdiçar R$ 20,00 e aproximados 150 minutos de minha modéstia existência.

A grosso modo, o episódio VIII é uma gororoba cinematográfica espetaculosa e açucarada como só Hollywood sabe fazer: mistura constantes referências e citações à trilogia original, personagens sem carisma e densidade psicológica, heróis pré-formatados e sem trajetória, vilões sem fundamento ou propósito, piadinhas sem graça e todos os lugares-comuns ditados pelo politicamente correto e o bom mocismo tão em voga hoje. O resultado é uma trama confusa e maçante em que, novamente, tudo está posto e não há desenrolar dos fatos: não se explica quem é Snoke, de onde veio a Primeira Ordem, como a República ruiu ou como a Aliança Rebelde se organizou. Ou seja, trata-se de mais um enlatado Walt Disney Company de grande apelo comercial e fácil consumo voltado para um espectador via de regra egocentrado, infantil e imediatista, acostumado às facilidades sem esforço da internet e à fruição distraída de produtos culturais, que procura bens de significado os quais lhe deem algum sentido, ainda que ilusório e fugaz. Ele já recebe tudo prontinho para não ter o trabalho de ligar os pontos do roteiro (ou até mesmo de assistir aos filmes anteriores) e poder desfrutar de sua pipoca em paz, sem pensar muito, de preferência. Ademais, o simples fato de comprar o ingresso lhe assegura o desejado efeito causado pela febre Os Últimos Jedi: a sensação de pertencimento a uma coletividade que se identifica e se reconhece através do consumo da franquia Star Wars.

Por isso, o “x” da questão não reside nas qualidades cinematográficas do blockbuster, que simplesmente não existem, mas repousa no arcabouço simbólico que ele compila, empacota e vende e na forma como a película traduz e representa o imaginário desta geração. De tal sorte, se cada época tem o Star Wars que merece, não deixa de ser interessante e bastante irônico que na mesma proporção de seu retumbante fracasso enquanto obra Os Últimos Jedi sirvam como um vigoroso documento da era culturalmente esfacelada, árida e midiática em que vivemos. Porque, nas entrelinhas do roteiro esterilizado de Rian Johnson, encontram-se cristalizadas as questões que mobilizam tanto a juventude nascida nas redes e criada em apartamento quanto os adultos infantilizados que gralham, sem praticar, as mais nobres intenções humanas. Da Rey empoderada e já senhora de si, passando pelo Chewbacca vegano (isto mesmo! A fera de outrora tem uma crise moral após assar algumas galinhas intergalácticas) e pela liderança feminina, santa e hegemônica de Leia na Aliança Rebelde até chegar ao execrável Líder Supremo branco de olhos azuis; o filme joga na cara do público do início ao fim todos os clichês possíveis do politicamente correto. Tudo é milimetricamente concebido para não ofender, e mais ainda: educar moralmente com sua edificante mensagem gluten free um público desprovido de símbolos unificadores e transversais e averso às contrariedades, mesmo as intelectuais.

Não à toa, Rey, a empoderada protagonista, é uma heroína sem lastro heroico, que não é forjada ao longo do tempo por meio de treinamento, ascese e/ou sacrifício, como sempre o foram os personagens heroicos no continuum da História, de Ulisses a Frodo (ou Merida, se preferir). Rey não. Ela já nasce pronta e não precisa fazer qualquer esforço para dominar a Força, que se manifesta nela como um evento puramente fisiológico que simplesmente se desenvolve e cresce. E aqui nos deparamos com uma inflexão importante na saga: se na trilogia clássica a Força era uma poderosa energia externa ao herói alcançada após um duro e tortuoso caminho, agora ela se transfigura num “dom” comodamente adormecido nas entranhas dos personagens que desperta convenientemente do nada. Para que fazer esforço, afinal?

Não sem razão também, Luke Skywalker, representante da Tradição e do Passado, é apresentado no filme como um velho amargurado, atormentado e ranzinza, autoexilado nos confins da galáxia, que nega qualquer possibilidade de ligação afetiva ou professoral com Rey, a epítome da nova geração. Para que ele mude de ideia, é preciso apelar a um sentimento tão caro aos idosos, o saudosismo; que é devidamente providenciado por Chewbacca, personagem da série original, ao mostrar um holograma vintage (e clássico) de Leia pedindo ajuda. Mais à frente no desenrolar do arco, é emblemática a cena no esboço de treinamento em que Luke pergunta a Rey o que é a Força. “É um poder que os jedis têm de mover as pedras”, ela responde, o que para mim sintetiza o brutal desconhecimento histórico dos acontecimentos e o total estranhamento/desinteresse desta geração por qualquer resquício estruturador da tradição. E se restou em mim qualquer sinal de dúvidas quanto a isso (“vai ver, estou exagerando”, cheguei a pensar), o filme se faz absolutamente claro. É o próprio Mestre Yoda, alegoria da sapiência no universo Star Wars, quem destrói a Árvore do Conhecimento Jedi e os livros sagrados que trazem os textos mais ancestrais e preciosos da ordem guerreira. Como o livro, suporte por excelência do conhecimento, objeto historicamente constituído e responsável por disseminar e preservar as conquistas do pensamento humano, pode ser deletado num ato de leviandade tão grande, que deixaria Umberto Eco chocado? “Ah, Luke, são apenas papéis velhos. Estes livros que você leu a menina Rey já conhece. Precisamos apagar o passado e construir o futuro a partir do zero”, diz Yoda, enquanto a pira de livros me remetia aos horrores das fogueiras de certos regimes totalitários. Deprimente.

E eu poderia divagar por linhas e mais linhas a respeito de outros tantos episódios inócuos e completamente desnecessários – tal qual o filme em si – de Os Últimos Jedi: o dilema adolescente de Rey e Kylo Ren que fazem da Força um verdadeiro Whatsapp para discutir seus dramas e sentimentos desprovidos de substância emocional; o retorno de Leia do hiperespaço à nave-mãe tal como um arcanjo embalado pela luz miraculosa da Força após um bombardeio da Primeira Ordem (e ela ainda sobrevive, ok?); o “workshop para crianças engajadas de como contestar o sistema capitalista malvado e opressor”, quando numa trama secundária e clichê os coadjuvantes Finn e Rose se metem numa aventura em busca de um “mestre decodificador” que ajude os insurgentes a invadir a nave do Líder Supremo (e cujo desfecho é digno do final de Cinderela Baiana); a irracionalidade masculina e indomável de Poe, o bom selvagem de coração puro; os pequenos proto-jedi que, no fundo de sua condição social miserável, pegam as vassouras com o poder da Força (é dessa massa de desvalidos que sairá a nova ordem jedi que pacificará a galáxia, segundo Yoda); o “Eu preciso ver O Despertar da Força, pô.” que entre aplausos e assovios cheguei a ouvir na ovação do público ao final do filme… Saí do cinema um tanto atarantado.

Por isso, diria que Star Wars: Os Últimos Jedi é um filme profético, pois ele parece antecipar um futuro tenebroso para a produção cultural regida pela lógica vã do comércio de bens simbólicos voltados para aquilo que Luiz Felipe Pondé (tremei, CFCH!) chama de “self consumidor de significados”(II). E considerando que a juventude hoje não é mais uma faixa etária, e sim uma atitude, o mercado potencial para esse tipo de pacotilha é incomensurável. Foi essa combinação que alçou o filme ao patamar de 10ª maior bilheteria da história do cinema, arrecadando mais de $ 1.200.000,00 – e tenho certeza que sequer um centavo dessa renda, apesar da “nova consciência social” propagada no longa, será destinado às jovens sequestradas pelo Boko Haram na Nigéria, ou aos miseráveis do Haiti ou ainda às crianças que mundo afora são tolhidas da infância pela mesma máquina cruel que o filme caricatura. Mas, isso não importa, porque o público sai do cinema com sensação de ter participado de algo bom, nobre, de ter fortalecido uma corrente do bem, sem perceber ou sequer cogitar o intricado jogo de contradições e paradoxos por trás desse lucrativo negócio do conglomerado Disney. Com a camisa de Darth Vader e o balde de pipocas promocional do filme na mão (que ele guardará para mostrar aos amigos e alardeará em suas redes sociais), o espectador sai da sala de projeções já pensando no fechamento da trilogia e antevendo para si uma certa glória de shopping center, uma vez que tudo parecerá harmoniosamente em ordem no universo com o fechamento por certo apelativo e fácil que o episódio IX proporcionará.

Diante disso tudo, falar da destruição cinematográfica completa da saga original soa quase hediondo, não é mesmo?


(I) RODRIGUES, Nelson; Teatro Completo – Nelson Rodrigues: Tragédias Cariocas (Volume 2), Editora Nova Fronteira, 3ª edição, Rio de Janeiro, 2017, pág. 615. Excerto do texto publicado no programa da montagem de estreia de “Bonitinha, mas Ordinária”, em 1962.

(II) PONDÉ, Luiz Felipe; Marketing Existêncial: A Produção de Bens de Significado no Mundo Contemporâneo; editora Três Estrelas, São Paulo, pág. 47. 

2 comentários:

  1. Conheci a saga (pelo menos os dois terços iniciais, episódios 1 ao 6) nesse mês de janeiro. Qdo tentei linkar o que vi no cinema no ano passado com o que "descobri" neste janeiro de 2018, entrei em pane: Nao vi sentido em nada. Ha uma (talvez sutil) desconstrução dos "valores morais" da saga para adequamento das demandas da juventude atual, como se a historia por trás deste novíssimo episódios fossem apenas um detalhe. A desconexão com os antigos eventos, ou nao continuidade por meio da falta absurda de explicaçoes da Primeira Ordem ou a falta de treinamento pra aprimoramento de uma Jedi, tornam desrespeitoso o contexto deste novo mundo StarWars. Vamo ver o que se sucede ne?

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  2. Bruno, seu comentário sobre o filme está muito bom, claro e bem pertinente. Sou fã da Saga Stars Wars, diga-se, da primeira Trilogia e, posteriormente, da Segunda (numa menor proporção) e confesso fiquei indignada com o que fizeram com os personagens que foram heróis da minha geração. Não assisti ao filme “Os Últimos Jedi” (Episódio VIII), tampouco estou disposta a tamanha tortura! A mim já basta ter assistido ao filme anterior dessa nova Trilogia (“O Despertar da Força”- despertar do meu ponto de vista terrível, pois não faz o menor sentido). Após ler seu texto parei para refletir sobre a abordagem do filme e, inevitavelmente, compará-lo com os da primeira e segunda Trilogia e cheguei a seguinte conclusão: UM DESASTRE TOTAL! O roteiro dos dois últimos filmes deixa claro a intenção da Disney em alterar a filosofia Jedi em sua essência (não vejo de outra forma). Transforma mestre Yoda, símbolo do mais alto saber da Ordem Jedi e defensor da Aliança Rebelde, em um Ser que nega e repudia tudo que até então havia defendido e pelo qual tantos morreram. Como se não bastasse a “morte” deplorável e medíocre de Solo, ainda temos de engolir um Chewbacca com crise de identidade, uma Leia tonta que não tem a importância no desfecho da história, um Luke rabugento, e o pior de tudo isso, a força brotando instantaneamente em personagens que não sabemos de onde vieram, para que vieram e aonde vão! Enfim, só me resta lamentar e evitar assistir os novos filmes, assim preservarei na minha memória o que tenho até hoje: Ser Jedi é uma filosofia de vida onde o lado negro da força não tem poder!
    Cristina Monteiro

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