quarta-feira, 16 de outubro de 2013

A Religiosa - por André Maranhão Santos





A mais recente adaptação de A Religiosa, assinada pelo diretor e roteirista Gillaume Nicloux difere da versão Nouvelle Vague de Jacques Rivette – censurada pelo governo francês dos anos sessenta. E um dos pontos diferenciadores entre ambas as versões se dá em como os ideais de liberdade e luta pelos direitos humanos aparecem na versão de Nicloux, além dos seus paralelos com a filosofia iluminista, já que tal filme deriva do roman-mémoires La Religieuse de Denis Diderot, publicado no final do século XVIII e que se baseia no caso de Margueritte Delamarre, uma jovem francesa que lutou para sair da vida monástica num período contemporâneo à vida de Diderot.

Em A Religiosa, Suzanne Simonin é a personagem principal; uma garota que entra para um convento sem o desejar, passando por humilhações, assédios morais, sexuais, além de discriminações, somados ao seu desejo de abandonar o hábito de freira. Suzanne é interpretada de maneira notável pela atriz belga Pauline Étienne, que aparece escudada pela grande Isabelle Hupert e por Martina Gedeck (bastante famosa após A Vida dos Outros e que sendo alemã protagoniza o filme em francês, mantendo a forte tradição de atrizes europeias poliglotas).

Especialmente, há uma importante contribuição para mim em A Religiosa: tal qual Ligações Perigosas – filme de 1988, adaptado do livro de Chordelos de Laclos, estrelado por Glenn Close, Michelle Pfeiffer e John Malkovich – os ambientes mais recônditos da vida privada apontam para os jogos de poder, a sedução, a manipulação em pleno cotidiano e mentalidades do mundo francês do século XVIII. A Religiosa também se articula com outros filmes tais como O Nome da Rosa (adaptado do romance de Umberto Eco, dirigido por Jean-Jacques Annaud, estrelado por Sean Connery e tendo Jacques LeGoff como consultor histórico) e Dúvida (de John Patrick Shanley) com Meryl Streep, Phillip Seymour Hoffman e Amy Adams no elenco, por se tratarem produções que explicitam os abusos recorrentes ao longo da instituição religiosa no Ocidente e apontam para a emergência das leis como instrumentos fiscais contra as arbitrariedades empreendidas em lugares sagrados e mais restritos.

Num pensamento iluminista consonante, outro filósofo como Voltaire via nas benesses que alguns governos concediam à estrutura política da Igreja uma série de perigos e violações à Humanidade. O filósofo defendia a oração não como dominação ou despotismo, mas como algo em profundo diálogo com o papel fiscalizador do Direito Civil. “O magistrado deve apoiar e conter o sacerdote, da mesma forma que o pai de família deve mostrar consideração para com o preceptor de seus filhos e impedir que abuse deles”, assim o enfatizou em seu Dicionário Filosófico.

Também é sabido do papel estratégico que a vida feminina dos conventos proporcionou à economia dos bens masculinos e às relações de poder entre os gêneros. Evitar o casamento de certas filhas para não repartir o latifúndio na forma de herança, ou se valer dos espaços clericais para efetuar um processo civilizador sobre a figura feminina – naquela que sabe os seus lugares e limites e não contraria a autoridade da figura masculina – eis aqui exemplos cruciais do interesse patriarcal por via da domesticação religiosa. Embora a Coroa de Portugal nem sempre mostrasse favorecimentos à criação de novos espaços de reclusão para a entrada de mulheres na vida monástica (já que via no aumento do número de mulheres celibatárias um risco para o crescimento populacional de uma colônia como o Brasil) a monarquia lusitana quase sempre encorajou as casas de recolhimento em solo brasileiro. No século XVII, já havia conventos na Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo, tendo este número se multiplicado em outras localidades como Pernambuco, Maranhão, Minas Gerais e na Região Sul, tanto na forma de conventos quanto nas casas de recolhimento. Em Trópico dos Pecados, Ronaldo Vainfas argumenta que essas casas também estipulavam diversas restrições às mulheres, preferindo, inclusive, moças brancas e de famílias abastadas. As casas de recolhimento também atuavam enquanto recebedoras de mulheres casadas durante a ausência dos seus respectivos maridos, retiros espirituais de viúvas e correção de condutas femininas “indevidas”.

O que pretendo aqui não é desqualificar ou negar a existência da vocação na vida monástica e na reclusão, mas atentar para a importância do exercício histórico / democrático que o filme A Religiosa pode estimular em conjunto ao significativo valor que o pensamento iluminista pode elucubrar num contexto como o de Diderot. Por outro lado, a Razão não precisa atuar como a legítima redenção do Ser, já que na própria época de La Religieuse, alguém como Kant foi capaz de frisar que vivia na “era do Iluminismo” no lugar de viver numa época de pleno esclarecimento. Mas o filme que inspirou esta postagem pode reavivar o debate sobre o direito à fé, o lugar, a filiação e as formas da vida religiosa, e analogamente à personagem Suzanne - que desejou abandonar a vida monástica para professar sua fé sob outros modos - no mundo contemporâneo, a Democracia deve garantir o direito de uma islâmica usar um hijab, como também de ampará-la caso não queira usá-lo ou deseje parar de usá-lo.

Devo finalizar com uma lição sobre a fé que aprendi num livro de Walter Benjamin, intitulado A Origem do Drama Trágico Alemão, onde aquele filósofo, judeu, esotérico e fugitivo do Holocausto cita a seguinte alegoria: “Santa Teresa vê, numa alucinação, a Virgem esparzindo rosas sobre a sua cama, e conta a visão ao seu confessor ‘Eu não vejo nenhumas’, responde este. ‘Claro, a Virgem trouxe-as para mim’, é a resposta da santa”. Cada vez que eu releio, me conforto com este depoimento, pois semelhante a Benjamin, consigo acreditar que há um gesto radicalmente sensorial quando Cristo é deslocado para o plano do provisório, do cotidiano e do precário. No filme A Religiosa, a personagem Suzanne Simonin parece alimentar esta linha de raciocínio, ao ver que Deus se faz através de um prisma ético que antecede as instituições e que na fé religiosa pode residir uma via de contestação, de luta e de renovação da liberdade humana.

Nenhum comentário:

Postar um comentário