quinta-feira, 22 de maio de 2014

Variações em 4/4: Futebol e Barbárie



Nesta edição de nossa coluna mensal, os editores comentam a mistura cada vez mais hedionda de violência urbana e o futebol no país sede da Copa do Mundo.

- Fernando Lucchesi:

Quando o tema foi proposto por um dos integrantes do blog achei altamente pertinente. A sugestão veio ainda sob o impacto da morte do torcedor nas imediações do estádio do Arruda, atingido por um vaso sanitário. Não foi a primeira vez que um vaso sanitário foi arremessado do estádio, diga-se. Será a última? Não vou aqui tecer um comentário esperançoso, pois já discuti MUITO com parentes, amigos e cheguei à temida conclusão: não há esperança no horizonte para a resolução desse problema. O maior problema, penso, é a nossa legislação. Não há nada, mas absolutamente nada, que impeça o sujeito de digladiar-se com torcedores adversários, danificar patrimônio público e particular e estar solto algumas horas depois. Pois adivinhe onde estará esse sujeito no fim de semana seguinte? Fazendo o que de novo? Pois é! Não precisei colocar resposta para ser entendido.

O argumento que mais escuto é: “mas na Inglaterra resolveram isso!”. Calma! Resolveram em parte. Não vemos aquelas cenas absurdas dignas de uma rinha humana, mas elas (as organizadas) ainda existem e são extremamente perigosas. Duvida? Assista “The Real Football Factories” e entenda o que estou falando. De toda forma, a Inglaterra amenizou o problema com um ENDURECIMENTO da legislação e reforço da força policial, inclusive com uma polícia especializada para esse tipo de situação. O aparato policial é eficiente a ponto de conseguir monitorar aqueles que não podem ir aos estádios. Em dias de jogos do time do infrator, ele deve estar ou na delegacia ou prestando serviço comunitário.

O que quero dizer, queridos leitores, é: junte um aparato policial despreparado, uma legislação permissiva e em decorrência dessa a falta de punição, autoridades que não tem conhecimento quase básico do problema (que aliás, gastam dinheiro público para fazer uma “visitinha” à Inglaterra para ver o problema e as soluções de perto, mas nada aprenderam, aparentemente) e interesses dos clubes em financiar essas “coisinhas” chamadas de organizadas e temos praticamente um coquetel molotov social/futebolístico.

Lembro que em meados dos anos 90 surgiram aqui em Recife as famigeradas “galeras”, que tinham ligações com as mesmas organizadas que aterrorizam hoje. Elas se dissolveram? Não. Passaram um tempo hibernando e agora recrudesceram de forma incontrolável. Disse recentemente num comentário de um amigo no Facebook: “Isso só irá acabar quando esses delinquentes acharem que matar, roubar, furtar e quebrar perdeu a graça, pois o Estado não sabe nem por onde começar”. INFELIZMENTE!

- Giba Carvalho:      

“Nós abandonamos o trabalho, a família, mulher, filhos. Abandonamos tudo para defender o nosso clube. O clube é a nossa vida e por ele nós estamos prontos para lutar sempre, seja para matar ou pra morrer!”

É com esta frase que vi do presidente de uma das torcidas organizadas de um dos maiores clubes do Estado de São Paulo que inicio meu texto. Você acha que ele é diferente dos elementos que chocaram o país ao arremessar duas privadas e matar um membro de uma torcida rival, infiltrado numa co-irmã de outro estado aqui em Recife? Não! Eles não são diferentes. O “hooliganismo” brasileiro, no meu ponto de vista, está muito mais ligado ao extravaso de frustrações pessoais, supostamente movimentadas por sentimentos (parte pelo clube e parte por revoltas sociais) e onde os membros sabem que as punições são mais brandas, do que a outra coisa. E o nosso futebol atual vive à mercê do humor destes elementos. O esporte em si, está em segundo plano há muito tempo. Como consequência, vemos todas estas barbáries acontecer embaixo do nosso nariz e nos sentimos cada vez mais impotentes. Não existem leis específicas para crimes praticados para estes “cidadãos” (enquanto torcedores) e que utilizam a imagem do clube para praticar todo tipo de bandidagem que se possa imaginar. Torcidas organizadas são sinônimo de tudo de pior que possamos imaginar para o sistema penal brasileiro: tráfico de drogas, assassinatos, porte ilegal de armas, vandalismo contra o patrimônio público, violência sexual (existem casos de estupros e abuso sexual nas sedes das mesmas) e etc.

Afirmo, com plena certeza, de que o que falta para a resolução deste problema, em âmbito nacional, é interesse por parte das autoridades, endurecimento das leis e, principalmente, punição severa aos Clubes. Infelizmente (e triste de quem negar) estes elementos estão totalmente mancomunados com as Diretorias dos Clubes.  Tal receio, por parte das várias Diretorias, é coisa de quem tem o rabo preso. Nada justifica acesso às dependências de qualquer clube se você não paga mensalidades. Aqui no Brasil é o que mais encontramos: invasões, agressões a atletas e até mesmo a funcionários que nada tem a ver com o futebol. Coisas do país dos absurdos!

Voltando a falar do caso ocorrido no Estádio do Arruda, tenho a certeza de que se não fosse ano de Copa do Mundo, os envolvidos ainda estariam foragidos. O futebol no Brasil ainda é visto como lazer e modo de vida, mesmo com todos estes atos insanos por parte de vários elementos que deveriam estar com estadia garantida em algum presídio do país. Não podemos continuar tapando o sol com a peneira! Mudanças urgem acontecer para que o futebol volte a ser prazer e para que nossos filhos não se tornem apenas expectadores de Náutico x Destilaria do Cabo, Sport x Paulistano e Santa Cruz x Santo Amaro. Do contrário, continuaremos afundando nesta “privadização” esportiva atual chamada futebol.

- Bruno Vitorino:

“Chamam de Pátria nossa miséria!” – Humberto Effe

Costuma-se dizer que o Brasil é o país dos absurdos. Vou um pouco mais além: o Brasil é o país da naturalização dos absurdos. É como se o ultraje fosse parte constituinte de nossa identidade cultural de tal forma que nos acostumamos à banalidade e ao diário do nefasto em nossas vidas, nutrindo no íntimo - e compartilhando com o Outro via Facebook - uma espécie de revolta letárgica ante o caos. Achamos normal, corriqueiro, os políticos corruptos, os ônibus superlotados, os assaltos à mão armada, a extorção institucionalizada em carga tributária e seu parco retorno público, os atropelamentos de ciclistas, os concidadãos ensimesmados, os infantes lavadores de vidro nos sinais... Não gostamos, mas nos resignamos à apatia política e à hipocrisia moral e nos deixamos iludir por nossa contagiante irreverência e a irrefreável capacidade de rir do que não tem graça. E assim vamos vivendo.

No entanto, o fato é que temos problemas históricos arraigados no âmago de nossa sociedade que fornecem as bases para a rotinização do absurdo. Não cabe aqui neste breve comentário elocubrar teses sociológicas sobre o Brasil, mas todos sabem que educação, distribuição de renda, moradia, saúde pública - para ficar só no básico - sempre foram um problema severo que nunca foi encarado como deveria pelas elites políticas que governaram e governam este país e discutidos/reivindicados com serenidade e contundência pela sociedade civil. Ao contrário, dentre inúmeras desdobramentos, propiciou uma série de larápios “salvadores da pátria” e um sem número de teorias rocambolescas sobre o caráter redentor da miséria que tabula o pensamento de muito intelectualóide de rede social por seu suposto caráter anti-burguês. O resultado disso é uma gangrena social que se espalha pela tessitura de nossa sociedade. O futebol, infelizmente, não fica de fora dessa dinâmica do abjeto.

Para o torcedor comum, aquele que ama o futebol enquanto espetáculo, ir a campo hoje é primeiramente enfrentar uma via crucis: chegar ao estádio umas três horas antes do jogo; desdobrar-se para comprar o ingresso (se for resgatar a entrada pelo “Todos com a Nota” então...), aguardar em pé a abertura dos portões; adentrar aos empurrões num estádio desconfortável para assistir a um jogo sofrível; depois da partida, ficar literalmente preso sob o olhar intimidante do batalhão de choque da polícia que vê em todos potenciais delinquentes; e, finalmente, sair às pressas para fugir da barbárie e do terror promovidos pelas torcidas organizadas em brigas e em costumeiros arrastões pós-jogo. A cidade se converte em praça de guerra num cenário digno dos mais profundos círculos do Inferno de Dante. Passei por tudo isso quando fui ver a primeira partida da final do pernambucano entre Sport e Náutico. Fazia tempo que não ia à Ilha do Retiro e estava com saudades de casa e de ver meu time jogar. Mas, minha euforia e paixão logo se convertem em frustação e tristeza. E tenho certeza que muitos compartilham comigo esses sentimentos.

Penso que, com o esvaziamento dos estádios do torcedor - o autêntico a que me refiro acima - das famílias, dos amigos, e de todos aqueles que veem o futebol como um esporte nobre, um instrumento agregador da comunidade e um mitigador das diferenças sociais, já que somos todos um só nas arquibancadas, abre-se espaço para a invasão do banditismo que corrói nossa sociedade. Coloque-se na equação a ausência de um Estado que efetivamente garanta a segurança de sua população e a real inclusão social, a ineficácia do códice jurídico para tratar dessas questões, a relação promíscua que os clubes (e alguns jogadores) mantém com as organizadas e chegaremos à tragédia que aconteceu no Arruda. E que, vale ressaltar, poderia ter ocorrido em qualquer um dos estádios dos grandes times do Recife. Esse episódio grotesco e vergonhoso, que alcançou contornos globais, afinal, somos, querendo ou não, o país sede da Copa do Mundo, grita que estamos longe do que se conhece por Civilização. Vivemos numa casa de espelhos onde a realidade social é escamoteada em discursos, abobrinhas, falácias, delírios e incompetência. E não tenho esperança de que superaremos isso.

Olhando meu filho, constato que nunca poderei levá-lo para assistir a um jogo. Quem em sã consciência não se sente arriscando a vida ao ir a campo? Eu me sinto e muito! Ainda mais quando penso em meu rebento. Por isso, receio que o amor que ele certamente desenvolverá pelo seu time terá de ser platônico, alimentado na frieza da televisão e no distanciamento do sofá de casa.

- André Maranhão:


Eu não vejo um problema isolado que explique a situação calamitosa do futebol num país como o Brasil. Em minha opinião, é preciso identificar quais gatilhos disparam em conjunto[1], tornando aquele esporte um caso emblemático de problemas sociais. Muitos de nós nos deparamos com várias notícias envolvendo violência, corrupção, impunidade, desigualdade econômica e regional entre os clubes brasileiros, como também entre os seus torcedores. Creio que uma copa do mundo como a de 2014, a ser realizada no Brasil, não trará mudanças consideráveis no painel do nosso futebol. No máximo teremos estádios novos / reformados e uns elefantes brancos fincados em rodovias escuras e precárias, cuja solução em prol de uma mobilidade urbana mais eficaz parece ainda bem remota.

Além da barbárie recaída sobre a violência, identifico a barbárie por parte de várias autoridades irresponsáveis para com os cofres públicos. Sobre a primeira, um dos alvos mais fáceis de retaliar é as torcidas organizadas. O Estado apenas simula uma prestação de contas e tenta acalmar um clamor da opinião pública e do senso comum, quando bane temporariamente as torcidas organizadas. Para mim, isso é um grande erro. Responsabilizar todos os torcedores das organizadas pela violência do futebol é apenas expiar o bode. É preciso identificar quais dos seus membros agem violentamente, seja nos estádios, nos bairros e estações em vez de proibir toda uma torcida de entrar nos estádios. Qualquer multidão é muito mais que uma mera soma de indivíduos. A soma das partes é diferente do todo; já o diziam Aristóteles e Émile Durkheim. Para mim, boa parte dos episódios violentos ocorre em situações de multidão e invisibilidade – ainda mais incitada pela ausência de câmeras, de uma polícia devidamente especializada para clássicos futebolísticos e pela falta de monitoramento e identificação da delinquência através de câmeras. Ora, uma receita como essa culminaria, mais cedo ou mais tarde, numa bomba chiando; num coquetel molotov social.

Sobre a barbárie com os cofres públicos, trarei dois exemplos. O primeiro é do clube Mainz 05, atualmente na Fussball-Bundesliga – a Série A do campeonato alemão. Em 2011, o time recebeu um novo local para sediar seus jogos: a Coface Arena. Com capacidade para 34 mil torcedores (sendo 19 mil sentados e quase 14 mil em pé) o estádio também conta com lugares para portadores de acessibilidade e Imprensa. A obra foi construída com 65% de estrutura pré-moldada – o que contribuiu na agilidade e custeio de sua construção. O resultado foi de R$ 135 milhões, bancados majoritariamente por verba privada, incluindo não só a arena, mas o seu entorno no orçamento. Em contrapartida, você sabe quanto custou a reforma do Maracanã em 2013? R$ 1,192 bilhões de muita verba pública! É isso mesmo; apenas para reformar o Maracanã...

Por fim, façamos um balanço com o segundo exemplo: qual foi a sede da última Copa do Mundo? África do Sul. A edição do mundial deste ano será no Brasil, e o torneio em 2018 será na Rússia e Catar, que dividirão a condição de sede. No final de 2013, a organização Transparência Mundial divulgou um ranking de corrupção internacional. Um dos pontos principais baseados na pesquisa foi o gasto com o dinheiro público. Quão mais próximo do escore 100, menos corrupto seria considerado um país. No topo da pesquisa ficaram Dinamarca e Nova Zelândia, empatadas com 91 pontos. O Brasil ficou empatado com a África do Sul na posição 72 com 42 pontos. Embora o Catar ficasse em 28º (à frente de países como Portugal, Espanha e Israel) vale salientar a que a grande mãe Rússia (responsável em Sochi 2013 pelos Jogos Olímpicos mais caros da história, incluindo os de verão e os de inverno) ficou em 128º. Talvez a FIFA, uma entidade constantemente denunciada por práticas tão corruptas queira justamente isso: outro país corrupto para colaborar nos seus esquemas de procedência duvidosa. Alguém disse por aí que o Japão se reconstruiria do tsunami sofrido em 2011 antes do Brasil terminar seus estádios da Copa de 2014. Não há nenhum absurdo em acreditar nisso!




[1] Faço aqui uma alusão a Jon Elster com o termo trigger.

3 comentários:

  1. Demasiado humano, insano, barbárie! Como sempre muito pertinente todas as variações! !!!

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  2. Não há muito o que comentar sobre o que disseram esses quatro excelentes excelentes articulistas.. Cada qual enfocando um aspecto do problema, cada qual trazendo sua luz para esclarecer essa instituição que, com o decorrer do tempo, se tornou tão cruel: as torcidas organizadas. Teoricamente, um meio encontrado pelos amantes do futebol para externar - dramaticamente, na maior parte das vezes- o amor pelo seu clube. Transformaram-se, pela ação criminosa de grupos ali infiltrados, em mais um problema dos inúmeros com que temos de lidar, nesse país em eterna busca de afirmação no concerto das nações. Um país que ainda não encontrou o seu destino, quiçá glorioso. E que segue tateando, por falta de foco, competência e direção, num labirinto sem fim. O Brasil, também neste particular, vai continuar sendo o "país do futuro", o adolescente irresponsável, eternamente acarinhado pelas vovós e mamães inconsequentes que tudo justificam, quando se trata dos seus amados "filhinhos". Faz muitos anos que penso que o futebol é apenas o que é: um jogo de interesses, de política suja (perdoem a redundância), de acobertamento de grandes, imensas, insuperáveis ladroagens, sempre a favor da "cartolagem", com a conivência de "jogadores", torcidas, patrocinadores e toda a gama de pessoas, entidades e situações que envolvem esse "esporte". Que de esporte, aliás, não tem mais quase nada. Estoicismo, preparo atlético, amor à camisa, são coisas que estacionaram no tempo. Muito tempo, dia-se de passagem. A última vez (a penúltima aconteceu no estádio do Sport, Campeonato nacional, o Sport jogando contra o Grêmio, coisa de 1973 ou 74, nenhum dos comentaristas era sequer nascido, suponho...) que compareci a um estádio foi para ver o América jogar contra o Porto, no campeonato passado, em meio a uma platéia de pouco mais de mil torcedores. Por que? Somente para fixar na retina aquela beleza vã, etérea, de ver meu time entrar em campo, da forma como o via -bem pequenino ainda, aos 5 anos de idade- quando meu pai me levava à Ilha do Retiro para assistir partidas de um futebol bem diferente desse de hoje. Uma tentativa inútil, mesmo,apagada nos dias seguintes, por fatos idênticos a esse aqui discutido, que se tornaram rotina semanal, tanto quanto a ação dos "black blocs" em protestos ditos "pacíficos" por locutores e locutoras globais imbecilizados ou adestrados. Resumindo a ópera,e pedindo desculpas pelas letras garrafais, eu grito: O FUTEBOL BRASILEIRO ASSEMELHA-SE, HOJE, AO CONTEÚDO DAS PRIVADAS ATIRADAS SOBRE A MASSA ADORMECIDA.

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