Na coluna deste mês, os editores do
blog comentam o mais novo álbum da cantora baiana Karina Buhr, “Selvática”.
Boa leitura!
- Bruno Vitorino:
Acho Karina Buhr uma artista esperta. E
digo isso sem qualquer rastro de ironia ou viés pejorativo que a palavra “esperta”
possa denotar. Refiro-me tão somente à capacidade que tem de se construir
enquanto produto cultural que consegue por no mesmo pacote um grande apelo ao
vendável, largas doses de glamour intelectualizado e modismo cult de olho numa nova juventude supostamente
contrária àquela “geração Coca Cola” consumista e alienada; uma juventude que
se acredita engajada, cheia de causas e bandeiras libertárias, em eterno
conflito com o status quo da ordem
social não apenas deste país, mas, do mundo. É para esses jovens que Karina
Buhr canta. E como muito provavelmente a artista sabe que a música hoje, mais
do que despertar sensibilidades e comunicar espíritos numa comunhão via
experiência estética, contorna todas vicissitudes da técnica e do conteúdo
expressivo para referendar modos de vida, faz deles seu nicho de mercado e se
apresenta como referência simbólica para identidades subjetivas. Assim, numa
conjuntura de fim das Grandes Narrativas, de hibridização da arte com a lógica mercantil, de descentração do indivíduo ante o mundo e si mesmo, de
pulverização da realidade social em infinitas constelações simbólicas de
apreensão do mundo, Karina Buhr surge como um discurso, de certa forma,
unificador representante de um território imaterial que arrebanha todo esse séquito de jovens nefelibatas e adultos com “síndrome de Peter Pan” que brincam de
revoltados com a sociedade.
Por isso, é irrelevante se a música da
cantora é esteticamente inócua, como atesta veementemente este seu último
trabalho intitulado “Selvática”. Seu público alvo consumirá do mesmo jeito o
que quer que faça, bom ou ruim - se é que ainda faz sentido qualificar
produções no mundo líquido que relativiza tudo -, pois o que importa para ele é
o suplemento de alma, sonho e identidade que a grife Karina Buhr proporciona, já
que quando escuta a cantora ele não apenas frui uma manifestação artística, mas
consome a reboque uma atitude. Ouvir, curtir e compartilhar o pastiche punk Cerca de Prédio, por exemplo, significa
também, mais do que gostar de um som, apropriar-se de uma postura Ocupe
Estelita, ou seja, de suas críticas, de sua indumentária, da repetição passiva
de seu discurso e, inclusive, do patrulhamento ideológico que promove. Não sem
razão, o ativismo político da cantora (e não julgo aqui se este é legítimo ou
não) é sempre capitalizado como recurso de marketing
em prol de sua carreira artística. Por sinal, o próprio “Selvática” se
aproveitou da celeuma em torno da capa para transformar a polêmica em
estratégia de divulgação.
Quando lançou o disco virtualmente,
Buhr postou em sua página do Facebook a capa do disco, que trazia a própria com
os seios à mostra. Rapidamente a rede social retirou a postagem do ar sob o argumento da violação de seus termos de uso, o que gerou a reação enérgica da cantora
alegando falta de liberdade e resquícios de um cultura machista que se
escandalizava com a nudez feminina. Lógico, faço questão de deixar claro, que a
atitude do Facebook foi, para dizer o mínimo, contraditória. Como pode uma
empresa que militou há pouco a favor do casamento civil entre pessoas do mesmo
sexo se escandalizar com uma foto que não trazia qualquer conotação sexual,
apenas um par de peitos desnudos? Sinceramente, achei uma bobagem. Mas, o que
me deixou realmente impressionado foi como a artista se valeu do episódio para
promover o trabalho ocupando, com isso, os cadernos de cultura de inúmeros
veículos de comunicação e fazendo com que até o Ministério da Cultura se
manifestasse oficialmente por meio de nota contra a censura do Facebook. Ato
contínuo, uma multidão de seguidores, homens e mulheres, começou a postar em
seus perfis fotos com o peito de fora em solidariedade à cantora. Houve até mesmo quem se aproveitasse da ocasião para pegar carona na onda alheia e se promover em cima do episódio. Em resumo, uma “viralização” total que reforça para mim a
ideia de que Karina Buhr é menos cantora e mais espetáculo; menos uma artista e
mais uma celebridade que busca, surfando no mar da efemeridade de nossa cultura
contemporânea, ocupar um espaço de destaque na mídia e nos imaginários de
adolescentes e adultos infantilizados.
Portanto, não perderei meu tempo aqui
escrevendo as considerações que fiz sobre cada música que ouvi e reouvi não sei
quantas vezes do disco “Selvática”, pois elas não serão lidas como análises
estéticas de um trabalho artístico, e sim como ataques pessoais a indivíduos
que seguem – para usar um termo do momento – a entidade Karina Buhr. E, na boa,
a verdade é que, por sua música não possuir qualidades artísticas mensuráveis por
critérios tradicionais (e tradicional é bastante diferente de conservador,
beleza?), toda e qualquer análise musical que aponte os inúmeros aspectos negativos
que o trabalho traz em si é inapropriada, porque seu propósito não é estético,
porém midiático-mercadológico-comportamental ligado a um padrão de consumo
específico. E como não estudei Administração, Propaganda ou Psicologia do Consumo,
prefiro não entrar nessas áreas e dizer somente que “Selvática” é apenas mais
um disco com data de validade bem curto voltado para jovens revoltados de
apartamento e rede social ou adultos com crise de meia idade. Se você se
encaixar nestes grupos, parabéns! Certamente encontrará mais um placebo
para ludibriar sua própria consciência.
- Giba Carvalho:
A
estética sempre foi utilizada por diversos artistas como complemento de suas
falhas musicais. Notadamente, nos dias de hoje, percebo que inúmeros destes
artistas da "nova" geração investem muito mais no lado performático, do que nas
pesquisas para dar o real corpo que seus trabalhos necessitam.
Em “Selvática”, novo álbum de Karina Buhr, isto será atenuado unicamente pelo
vigor dos arranjos.
Com
um time de acompanhamento formado por Edgard Scandurra, Fernando Catatau, Guilherme
Mendonça e Manoel Cordeiro, a cantora baiana procurou desbravar sons estranhos,
vários ruídos, gritos, vozes soturnas e raros momentos de leveza. Tudo isto
acoplado a temas da atualidade, tais como – feminismo (principalmente), o
crescimento urbano desordenado pela especulação imobiliária (ou seria
política?), racismo e criminalidade. É bem verdade que todos estes temas devem
ser debatidos e que o artista deve ter a liberdade de criar como desejar e
pensar. O problema é como fazer isto de modo convencedor e que traga boas
sensações aos ouvintes. Em alguns momentos tais exposições foram de puro
sofrimento auditivo (Pic-Nic e Cerca de Prédio).
A
única coisa que ocorreu de modo diferente na audição deste álbum foi que
finalmente, Karina Buhr, conseguiu a proeza de me fazer gostar de uma música do
seu trabalho solo. Alcunha de Ladrão
é um reggae de qualidade, de melodia e letra bastante interessantes e que não
cai na chatice usual do ritmo. Muito bem trabalhado nos metais e nas guitarras.
Por
outro lado, tenho uma posição formada sobre a artista em ênfase. Para mim - “É
uma atriz em potencial e péssima cantora!” Isto não mudou com “Selvática”. O
que mudou desta vez, é que Buhr vem para a briga de “peito aberto” (não apenas
pelos seios à mostra na capa) e isto me agrada sobremaneira. Indiscutivelmente,
é o trabalho de uma mulher com personalidade e que vive “mutações constantes”,
embora estas, me pareçam mais convenientes do que naturais.
Para
finalizar, tenho certeza ao afirmar que este é o melhor disco de Karina Buhr em
sua carreira solo. Mas, particularmente não me convence por continuar com a
marca registrada dela – “pessimamente cantado e ótimo apenas para atuações.
Sejam estas nos palcos ou nas cabeças onde o vácuo anti-musical se propaga a
troco de piruetas e derivados afins.”
- Rógeres Bessoni:
Talvez não seja interessante começar
uma análise com “talvez”, mas é um problema o que primeiro quero levantar antes
de emitir qualquer opinião: talvez seja difícil definir “consistência” em uma
produção musical. Pode ser que isso – consistência – tenha a ver com um
casamento bem sucedido de grande inventividade musical com maturidade poética
nas letras. Pode ser que ela – a consistência – seja percebida como um impacto
que lhe faz parar tudo que estava fazendo, para prestar atenção a um portal
interdimensional que apareceu subitamente no meio da rua, num dia comum. A
finalidade não é multiplicar as alegorias para aproximar a consistência do
nosso campo visual imaginário. Apenas declaro com total honestidade que há
muito tempo não sinto, oriundo da nossa cena musical, o impacto consistente das
coisas novas.
“Selvática” mantém essa ausência de
surpresas. Sem grandes achados melódicos, sem grandes achados poéticos, com uma
boa banda, mas em nada surpreendente, o disco é, no máximo, morno. Mais um dos
registros da onda morna em que flutua a música pernambucana pós-mangue. Karina
encaixa alguns vocais bem colocados, como em Dragão e Despediço-Te-Me,
com uma voz cristalina em certos momentos, mas sem grandes voos de ousadia ou
interpretação de real fúria - nem na faixa-título, em que mais selvageria com
técnica seria muito bem-vinda. Não ficou nada de fato marcante, nenhuma
“assinatura” como intérprete. Enquanto isso, o tecido musical, apesar de
executado de forma competente, é de uma limitação irritante e nos precipita na
monotonia de ouvir um disco inteiro sem nada de hipnótico: nenhum riff, nenhuma melodia, nenhuma pegada de
bateria, nada.
Há boas sacadas nas letras, como em Alcunha de Ladrão, mas são apenas boas
sacadas, nada que aponte um novo caminho ou abra trilhas para outras
percepções. As letras não revelam, não ameaçam e não assustam o cotidiano – nem
nos conduzem a vê-lo “pelo lado de fora”. Por isso, o disco é morno: em todo o
trabalho, não há uma única construção sonora ou textual que se estabeleça como
um marco. O disco inteiro não conduz ou aponta para absolutamente nenhum
caminho novo. Vi um dos comentários sobre a obra dizendo que ela “peita o mundo
machista”, e para mim não peita. Qualquer que seja sua temática ou intenção, o
texto do disco não alcança de jeito nenhum os níveis radioativos que a poesia
necessita para afrontar e desmantelar um universo e, em seguida, plasmar outro
vigorosamente. Não tenho nenhum motivo para duvidar da sinceridade e seriedade
das buscas musicais de Karina Buhr, mas ainda não foi dessa vez que sua obra
desferiu o golpe certeiro de uma guerreira do Daomé.
- Fernando Lucchesi:
No
seu terceiro disco a cantora e compositora baiana mescla peso e melodia. Fica
explícita no disco a intenção de fazer uma mistura das principais influências
da cantora. Há desde pop, punk rock, reggae e até um pouco de maracatu em algumas músicas.
O
álbum abre com Dragão, música com
muita percussão e alguns naipes de metal, mas que não sai do lugar comum. O
disco muda com Eu Sou Um Monstro. Com
uma letra provocativa, Karina Buhr sugere às mulheres que mostrem seu lado
selvagem ao se verem acuadas diante de diversas situações em que são vítimas.
Ao mesmo tempo em que reflete sobre a apatia, ela revela a mulher forte e
lutadora ao confessar “ser um monstro”. A música flui muito bem, densa e pesada,
mas cadenciada com uma guitarra muito bem executada e cheia de efeitos sonoros.
Com uma base eletrônica e muita percussão Conta
Gota funciona bem e revela uma cantora que evoluiu em relação aos seus
trabalhos anteriores.
O
grande problema do disco reside na sequência de músicas pesadas, com notada
influência do punk rock. Apesar de
muito bem executadas pela banda de apoio, a voz de Karina Buhr definitivamente
não funciona em músicas nesse estilo. A voz dela fica tão fraca por cima de
camadas de guitarras que, muitas vezes, fica até difícil compreender o que ela
canta. Pic Nic (possivelmente a
música mais fraca do disco), Esôfago
e Cerca de Prédio vão todas nessa
mesma direção. Voluntária ou involuntariamente, Karina parece ter elaborado um
novo hino para o movimento Ocupe Estelita com Cerca de Prédio”, em que critica abertamente a especulação
imobiliária.
Já
no final do disco, Buhr segue mostrando mais explicitamente suas influências
regionais com Rimã (com uma bateria
característica de maracatu), Alcunha de Ladrão
(um reggae com toques de guitarra
paraense). Mas, apesar dessas duas músicas a cantora não abandona sua verve pop e encara duas ótimas baladas Vela e Navalha (essa, com uma guitarra
com leves toque psicodélicos) e Desperdiço-Te-Me”.
O disco encerra com a faixa-título do álbum Selvática,
um longo poema musicado que não tem nada de muito especial. Um disco que
surpreende, apesar de algumas limitações da cantora.
- André Maranhão:
Creio
que para entendermos “Selvática” é preciso situar Karina Buhr. Se Mônica
Salmaso, Alcione e Céu, são cantoras; Adriana Calcanhoto, uma cancionista; Rosa Passos, uma
intérprete; para mim, Karina é muito mais uma performer, cujos trabalhos
se posicionam e rendem melhor no
embaralhar da canção com a foto, o videoteipe, a colagem, o figurino, a
maquiagem e a arte feminista / crítica ao falocentrismo. A capa do álbum,
inclusive, já mostra como a força do visual faz parte de sua estética, ao mesmo
tempo em que ouvir o disco revela que analisar Karina a partir de recursos
técnicos de seu canto pode não levá-la a muitos elogios.
Primeiramente,
uma grande parte de “Selvática” se perde numa poética, que embora aparente uma desconstrução
da linguagem – preocupada com os “rastros” das palavras, ruídos e entonações – se
converte mais em um discurso autorreferente, repleto de tautologias (“mordida,
a pele fica ferida”), frases repetitivas e, fazendo aqui um trocadilho com a
canção Pic Nic, “sem graça”. Essas
posturas se estendem da primeira à quinta faixa do álbum. Para mim, o melhor do
disco se concentra em Cerca de Prédio,
Vela e Navalha, Rimã, e Alcunha de Ladrão
(esta última a melhor canção do trabalho de Karina), pois nesses trechos, ela alterna
bem entre o punk, a ciranda, o reggae; e arredonda melhor sua voz, como
também apresenta uma literalidade mais interessante nessas canções. Ainda
assim, estou longe de considerá-la uma cantora, propriamente falando.
As
duas últimas faixas (Desperdiço-me-te
e Selvática) me chamaram atenção mais
pela qualidade literária e menos pela musical. Ambas as canções poderiam,
inclusive, servir perfeitamente como bons poemas, mas não brilham igualmente no
formato de canto. Consequentemente, o desencaixe entre a qualidade da palavra
escrita e a perda de intensidade de uma palavra cantada, me incomodou várias
vezes em Selvática. Por isso, penso
que Karina poderia optar mais pelo arredondamento de suas melodias e insistir na
harmonia como recurso instrumental de sua banda, pois é possível realizar
trabalhos de crítica mais contundente, além de uma fértil desconstrução
linguística, sem recorrer ao misto de guitarras e sintetizadores empobrecidos,
tampouco sem necessariamente amontoar cantos esparsos e caóticos para reunir qualquer
mensagem política mais sólida e militante. Ora, basta escutarmos artistas como
Itamar Assumpção, Sergio Sampaio, Jards Macalé, Badi Assad e Tom Zé, para
lembrarmos que é possível experimentar a arte sem abrir mão de afinação, qualidade
harmônica e literária.