sábado, 24 de outubro de 2015

Cenários de Desertificação Cultural: O Cancelamento da MIMO 2015 – por Bruno Vitorino



Foi com um misto de surpresa e desalento que recebi a notícia, por meio do parceiro de blog Giba Carvalho, de que a edição deste ano do Festival MIMO seria cancelada em Olinda. A justificativa encontrada pelos organizadores do evento, num comunicado publicado em sua página no facebook, aponta para a falta de patrocínio para bancar todas as despesas de realização da etapa pernambucana do festival. Realmente. Imagino que em tempos de crise econômica (e isto é um fato), com a Administração Pública de modo geral na pindaíba e a iniciativa privada – que nunca teve muito interesse em apoiar a ações culturais mesmo no tempo das vacas gordas, diga-se – atuando no vermelho, fica no mínimo difícil para uma mostra “internacional” de música bancar o cachê de artistas que na maioria dos casos recebem em dólar ou em euro. E qualquer pessoa minimamente informada sabe o quanto a cotação dessas moedas tem operado na estratosfera das bolsas de valores ultimamente. Mas, mesmo diante desse cenário, a pergunta que não consigo tirar da cabeça é: por que só cancelaram a etapa Olinda do festival?

O fato é que a MIMO, que nasceu em 2004 “Mostra Internacional de Música em Olinda”, cresceu muito além de seu escopo original. Aclamado ano após ano por público e mídias, o evento se consolidou enquanto negócio, expandiu sua área de atuação para além dos concertos, conquistou outras cidades, deixando com isso de ser um conceito de festival para se tornar uma trademark que comercializa não somente shows, mas toda uma experiência de consumo de bens culturais de maneira massiva e gratuita. Assim, amparada pela irresistível pauta da democratização do acesso à cultura a qual fala em “tornar acessíveis ao grande público atividades de cultura e de artes no formato de espetáculos para a fruição[1], a MIMO (e não mais “Mostra Internacional de Música em Olinda”) tornou-se uma franquia potencialmente interessante tanto para empresas, que atrelam sua marca a um projeto cultural renomado, quanto para o Poder Público por todos os dividendos políticos que um evento desta natureza lhe traz. Por isso que mesmo diante de um cenário de crise e escassez de verbas para empreendimentos culturais houve patrocinadores, se não para bancar a realização da mostra em todas as cidades originalmente pensadas pela produção, ao menos, na maioria delas. Desta forma, ao que parece, acabou sendo apenas uma questão de cortar aquela cidade cujo estado tivesse menos recursos a oferecer, como numa espécie de leilão em que se descarta o pior lance. Do contrário, teriam cancelado, por exemplo, Paraty ao invés da “cidade-mãe” e “berço da inspiração” da MIMO, não é mesmo? Mas, não foi o que aconteceu, e deu no que deu.

Fonte: Facebook da MIMO. 
Obviamente que eu entendo a estratégia dos produtores sob a ótica do negócio: a MIMO é uma empresa que vende um produto na forma de evento cultural. Simples assim. O que não aceito é essa conversa mole, com ares de tragédia quixotesca, de heróis da resistência da arte pela arte sucumbindo à realidade intransponível dos fatos econômicos; esse papo furado de “Desculpem, mas lutamos até o fim por vocês, público amado.”, quando na verdade a decisão parece ter sido bastante racional e prática do ponto de vista empresarial. Leio nas entrelinhas disso tudo algo como: “Pessoal, Olinda tornou-se inviável financeiramente. O estado está quebrado e a prefeitura não chega junto. Além disso, Rio e Minas estão oferecendo condições bem mais interessantes. Vamos focar lá. Cancelem Olinda. Se der, ano que vem retornamos. Se não der, paciência.”

E como explicar Pernambuco e Olinda terem grana para encher os bolsos das celebridades decadentes da música nacional e dos arautos da pernambucanidade em eventos como carnaval, Festival de Inverno de Garanhuns e editais de fomento, e deixarem escorrer pelos dedos a realização em suas terras do maior festival de música instrumental do país? E o Governo Federal, que também fomenta a mostra, não liberou mais recursos de modo a garantir a realização da etapa Olinda da MIMO por quê? Vai por a culpa na crise pela qual jura de pés juntos não ser responsável? Onde fica toda aquela conversa de que cabe ao Estado garantir por meio de políticas culturais a manutenção de programas e ações de interesse público? Meu coração teria ficado mais tranquilo se eu visse um pouco mais de franqueza e menos pirotecnia retórica por parte de todos os atores envolvidos nesta história, e meu juízo certamente não estaria lançando sobre mim perguntas tão incômodas.

Diante de tudo isso, resta-me apenas lamentar que Pernambuco acabe perdendo um dos mais importantes eventos culturais do estado - dentre os poucos que ainda possui. Evento este que colocava, de certa forma, este pequeno vilarejo com febres de megalópole cultural do Brasil (quiçá da galáxia!) que é o Grande Recife na rota mundial da cultura; desmistificava a música instrumental para um vasto público pouco familiarizado com ela; trazia para cá grandes nomes da atualidade que antes só passavam, quando muito, por São Paulo e Rio; promovia o intercâmbio de culturas e materialidades do sensível por meio dos concertos e etapas educativas; proporcionava novas formas de interação e ocupação do patrimônio histórico, tornando-o vivo e integrado com o tecido urbano; e, de quebra, ainda enchia de vida as ladeiras de Olinda, mostrando todo o potencial da cidade que fica ocultado pela inércia da municipalidade.

Cabe agora aos daqui se contentar com os mega-espetáculos de pagode romântico, axé music e forró estilizado; com as festinhas de brega cult que proliferam por todos os redutos descolados desta província; com as figurinhas repetidas que se acostumou a ver periodicamente nos eventos promovidos pelo Poder Público (especialmente no carnaval); e com os festivais indie de música cujas bandas trazem como único mérito artístico serem absolutamente desconhecidas do público geral e cultuadas tão somente por sociedades secretas de hipsters. Mas, não faz mal. Desde que nossa classe artística tenha um FUNCULTURA para chamar de seu e o recifense descolado encontre seus falsos ícones locais para reverenciar - o do momento se chama Johnny Hooker - acreditando-se no centro do universo das Artes, tudo correrá bem. E assim, de delírio em delírio, vamos negando a desertificação cultural que nos assola com cada vez mais contundência.



[1] MIRANDA, Danilo Santos de, “Apresentação” in WU, CHIN-TAO; “Privatização da Cultura: A Intervenção Corporativa nas Artes desde Os Anos 80”, Boitempo Editorial, São Paulo, 2006, pág. 21.  

2 comentários:

  1. Bruno, mais um excepcional texto de sua autoria. Gostaria de comentar uma coisa que ouvi de uma amiga que leu o texto e que vale a pena ser ressaltado. Palavras dela - "Creio que a única coisa que ele esqueceu de citar foi que o pagode mela-cueca, o forró estilizado, o sertanejo universitário possui MUITO público e o mesmo PAGA (mesmo que dividindo em 5 x no cartão) para ir assistir. Diferentemente, da turminha cabeça-incrível que paga de inteligente, mas não quer PAGAR de fato R$20 num ingresso para qualquer coisa relativa a arte.

    Achei interessante e válidas as palavras.

    Forte abraço e, mais uma vez, parabéns pelo excelente texto.

    Giba Carvalho.

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  2. Ótimo texto, Bruno. Fiquei sem acreditar quando uma amiga me contou. Li no facebook a notícia e também pensei a mesma coisa que você: "Pq cancelaram só aqui em Olinda?". Acho sim que vem rolando uma desertificação artística cultural, em se tratando de apoio institucional a mostras e festivais de música em PE de maneira geral. Escutei de uma pessoa que vem trabalhando na produção da MIMO que o problema foi de não ter tido apoio financeiro da prefeitura e do estado, que só foi recebido grana de empresas privadas e que não era suficiente para fazer a mostra. E que a ideia é quardar essa grana e só usar no ano que vem com o apoio dessas empresas pra completar a grana total que seria necessária e aí poder realizar a MIMO, mesmo que novamente não se tenha o apoio financeiro da prefeitura e estado. Vê que coisa doida! Enfim... Mas acho que surgiu (vem surgindo) uma movimentação artística interessante de uma galera (artistas, produtores, jornalistas, donos de alguns bares de Olinda e voluntários) que ta querendo realizar uma MIMO diferente, com mais artistas locais, com mais linguagens, de maneira totalmente independente. É um movimento de protesto que quer fazer com as próprias mãos, à sua maneira apresentações artísticas de variadas áreas, oficinas e debates sobre políticas públicas de cultura. Tem um grupo no facebook se organizando, teve uma reunião presencial nessa última terça e na próxima terça terá outra reunião presencial. Bom, claro que não será uma MIMO com renomados artistas internacionais e tal, mas pelo que venho entendendo desse movimento, o que se quer é mobilização em prol da arte. Não deixar passar batido. Acho uma iniciativa massa e super válida. Não sei se vai dar certo, mas estou torcendo bastante. O nome desse movimento é "Mimodifique". Pode surgir daí alguma coisa muito bacana. Um jeito de não esperar pra fazer, fazer apenas. Com a força e as pernas que se tem. Tô confiante que será interessante, no mínimo enquanto mobilização artística cultural.

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