O som do progresso é a Makita!
Essa miraculosa ferramenta da construção civil que corta pedras com uma
precisão cirúrgica emite seu grito estridente por todo o Recife. Típica das
grandes cidades que vivenciam o paradoxo do crescimento econômico atrelado ao
subdesenvolvimento urbano, seu canto esquizofrênico envolve a nós, ouvintes
compulsórios, num recital de agonias. Sem perceber, somos aos poucos enredados
numa trama de agressividade que nos vai enlouquecendo paulatinamente até
chegarmos ao colapso. O ruído urbano enquanto trilha sonora cotidiana é o mote
que propulsiona “O Som ao Redor”, o brilhante longa-metragem do cineasta
pernambucano Kleber Mendonça Filho.
Não é um filme
convencional de fluxo linear que articula tensão (desafio) e relaxamento (final
feliz) com protagonistas em busca de um objetivo. Trata-se de uma película de
narrativa fragmentada, dura e seca, sem direcionamento claro da história
contada, cujos personagens “tocam a bola pra frente” sem muitas pretensões.
Interessado em sobrepor as reminiscências da casa grande, o boom imobiliário e a paranoia nossa de
cada dia, Kleber Mendonça retrata com muita acidez e clara desilusão o habitat da classe média recifense: carro
do ano, apartamento com duas garagens, babás e empregadas, escapismo, ausência
de utopias, violência urbana, estratificação social. Uma observação paciente e
minuciosa de um microuniverso intrincado. Não há catarse.
Devo confessar que o filme me marcou profundamente não por
ser uma radiografia impiedosa de um Recife aristocrático e cada vez mais
embrutecido, mas por eu ter me visto nos personagens e nas situações em que
eles se encontravam. Como não sentir a claustrofobia da verticalização que nos
aprisiona e nos cerceia o convívio humano? Como manter a sanidade mental diante
de uma realidade tão implacável que destitui a essência humana que nos
caracteriza, reduzindo-nos a corpos que desempenham meros papéis sociais
historicamente delimitados? A angústia da dona de casa dilacerada pela rotina e
atormentada pelo cachorro do vizinho é tão nossa que o riso nervoso do
reconhecimento nos escapa. “O Som ao Redor” é um espelho colocado diante de
nossos olhos para que nos posicionemos. Daí o filme ser tão impactante e
incômodo.
Contudo,
apesar de toda familiaridade que o longa estabelece com o espectador, o que se
passa na tela não é um recorte cru de uma realidade conhecida. Ao contrário. O
cenário concebido por Kleber Mendonça é, na verdade, um ponto de vista e os
personagens do enredo são manifestações do próprio diretor, o que fica evidente
de modo emblemático em Sofia. Ela não consegue se enquadrar no modelo social
proposto e não compreende os descaminhos os quais transformaram a rua em que um
dia morara naquele emaranhado de insanidade. Com sua esmaecida curiosidade,
Sofia – “sapiência” em grego – busca em vão as respostas. Elas não existem. É
um caminho sem volta. Não há paz de espírito, porque já não existe alma. O que
lhe resta? Sucumbir ou ir embora!
Ultimamente
tenho pensado bastante sobre o Recife e em como transformá-lo num lugar melhor
de se viver. Temo que a vida encapsulada que levamos nos conduza ao labirinto
da falta de convívio e à perda da memória afetiva com a cidade. Que terminemos
num admirável mundo novo de arranha-céus, relacionamentos virtuais, paraísos de
consumo herméticos e entretenimento fácil. Por isso, vejo “O Som ao Redor” como
um olhar necessário. Pessimista, fatalista, triste, é verdade; porém preciso,
pois não há reflexão no entorpecimento. É um filme, não para ser visto, mas
para ser sentido. Em uma palavra: indispensável!
Quando assisti ao filme a primeira vez, foi como entrar em um labirinto de Borges, cheio de reentrâncias e saídas falsas que confirmavam a força do labirinto de pessoas que vagavam em um universo sem sentido, nem direção. As várias estórias, aparentemente desarticuladas, articulavam-se à medida que o filme avançava seu enredo, mostrando os resquícios da Casa Grande sem Senzala, mas com seus hábitos e modos, na estratificação social e cultural dos personagens. Muitos eram os sons "ao redor" que se misrturavam de forma emblemática no micro (lar) ao macrocosmo (rua materialização da cidade). Até chegar ao último, das bombinhas de São João (tradição cultural) escamoteando tiros de revolver em que o "coronel" é morto em uma vingança clássica de nossa vasta tradição histórico-social, como um ritual de purificação. Katársys há, só que não fazemos parte dela!
ResponderExcluirBruno, muito pertinente seu comentário, é exatamente assim que nos sentimos, incomodados e impotentes com o som ao nosso redor e o filme de Kleber Mendonça, retrata de forma extraordinária essa triste realidade. A falta de respeito e consciência de que não estamos sozinhos no mundo e que vivemos em sociedade, parece ter sido “esquecida” pelo ente social. As pessoas são desrespeitadas no seu dia-a-dia seja em casa, no trabalho, no trânsito e em todos os lugares, pior é que a maioria desses incômodos são ocasionados por pessoas que se dizem esclarecidas, que clamam por seus direitos, no entanto esquecem de seus deveres para com a sociedade. Situações como essas nos remete a Durkeheim e sua teoria sobre consciência coletiva, nesse caso, a falta dela!
ResponderExcluirCristina Monteiro
E pensar que, pouco mais de uma década atrás, não faziamos a mínima idéia de todo esse movimento (da evolução da urbe RMR), e desprenteciosamente vivemos toda a afetividade que uma zona de moradia poderia nos proporcionar, ali em JB2. Talvez por isso, por crescermos desfrutando de todas as formas "humanas" de convívio social, menos cheias de makitas e espaços fechados perfeitos (os condomínios), no subúrbio olindense, hoje vemos esse processo caótico de crescimento econômico atrelado ao subdesenvolvimento urbano (segundo Bruno), como algo que destrói exatamente esse laço de afeto homem-espaço. Mas penso, por outro lado, sobre a percepção de nossos avós acerca da cidade, que foi de seus filhos e depois nossa. Talvez, num futuro, espaços fora do solo sejam ocupados por tecnologia anti-gravitacional. E nossos filhos verão as makitas em museus da cidade e dirão aos seus netos: ali viviamos bem, sem todo essa loucura de hoje. Ao menos, antes da era da "Air-Residence", temos com este filme a oportunidade de refletir sobre 'Nós' na mudança do tempos... #pelaDESMAKITALIZAÇÃOdorecife
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