O historiador Giulio Carlo Argan |
A Itália é um estado-nacional com várias
personalidades comunistas; e se algumas cidades italianas são politicamente
orientadas à direita, outras são declaradamente esquerdistas. Não é à toa que
em seu livro Democracia e Segredo,
lançado há poucos anos, Norberto Bobbio considera a Esquerda italiana (La Sinistra) a mais expressiva da
Europa. Em 1976, o Partido Comunista Italiano elegeu Giulio Carlo Argan para o
cargo de prefeito da influente cidade de Roma. Porém, de modo curioso, o novo
prefeito não era um político oriundo das bases sindicais ou da burocracia, mas era
um dos acadêmicos e historiadores da arte mais influentes da Europa. Ao longo
de sua vida, Argan colecionou aulas e textos que situaram pesquisadores durante
os séculos XX / XXI, além de estudos que tratam de temas importantes para a
Estética.
Dentre os escritos de Argan, suas análises sobre
o Iluminismo inglês articulam habilmente as formas da arte com os conteúdos e
argumentos defendidos pelos próprios artistas daquele período. Durante os
séculos XVI-XVII, a Inglaterra teve uma escola filosófica e literária mais
expressiva do que sua pintura. Se comparadas às da Holanda, França e Itália, as
telas inglesas não preenchiam os espaços artísticos com tanto impacto; e além
de importar as suas pinturas, os ingleses não prestigiavam tanto o ofício do
pintor quanto os holandeses, franceses e italianos. Aliás, mais nobre e digno
para uma inglês era consumir ou comprar, em vez de criar, uma pintura. Segundo Argan, tal realidade só começou a mudar
no século XVIII, quando o norte da cultura artística passou das mãos da
aristocracia para a burguesia. Em outros termos, pode-se dizer que os burgueses
não tinham receio de “sujar as mãos” para fazer arte, como também não tiveram
cerimônias em valorizar o estudo da arte em vez de apenas comprá-la. Portanto,
a pintura iluminista também abriu as portas para a figura do “conhecedor” em
vez de apenas prestigiar um mero “comprador” de um quadro.
O Iluminismo inglês reconheceu a importância dos
cânones italianos para a composição da arte, ao mesmo tempo em que destacou os
mestres holandeses e os seus temas burgueses / não religiosos na composição de
seus quadros. Neste ponto, era importante imitar
os mestres, mas imitar não era necessariamente copiar:
À esquerda temos a estátua em mármore de Apolo Belvedere, finalizada em 1511, e pertencente
ao Museu do Vaticano – enquanto à direita, encontramos o Honorável Capitão Augustus Keppel; pintado por Joshua Reynolds, em
1753. Vários artistas ingleses começaram a escrever tratados sobre a arte influenciados
por temas filosóficos. Reynolds argumentava que a criação artística não resultaria
de uma inspiração sobrenatural, como também sustentava que o próprio exercício
da crítica de arte levaria o ser humano à ação artística. Segundo esta
perspectiva, embora a figura do gênio ainda existisse, as suas condições de
existência pareciam bem diferentes, pois a arte se tornou um espaço tanto para
gênios quanto para diletantes
formados pelo gosto:
“A arte
é e permanece invenção; mas, se ela não nasce do nada, é inútil tentar inventar
sem antes ter recolhido uma grande quantidade de material. É verdade que a arte
é produto do gênio; mas o gênio não é distinto do gosto senão por ser
relacionado ao fazer, e não ao julgar; e se o gosto não tem origem sobrenatural,
mas é formado pela educação, o gênio também se forma e amadurece na experiência
(...). O gênio-gosto não pertence apenas ao artista, mas a todos que receberam
uma determinada educação: se essa faculdade, quando assume o nome de gênio,
estimula a fazer arte, não se entende por que essa permaneceria inerte quando
assume o nome de gosto” (ARGAN, 2010, p. 24-34).
Muito antes do conceito de sublime, tão caro ao Romantismo e Idealismo alemão, a pintura
iluminista da Inglaterra já se valera da noção de pictórico, combinada com a definição de argúcia (wit). E mesmo
antes que artistas como William Hogarth e William Blake movessem esses termos
em seus discursos, a ideia de argúcia já surgira na própria filosofia
britânica, quando Thomas Hobbes, John Locke, George Berkeley e David Hume já a
definiam como a “velocidade da imaginação”; e a “sequência rápida de uma ideia
à outra”. O que a poética inglesa fez foi reconhecer a beleza dispersa na Natureza, nas paisagens, nos cenários da vida social. E neste
sentido, a tarefa do artista seria a de organizar essas belezas em sua tela,
mais uma vez as imitando, e não as copiando.
A tela de William Hogarth, O Pintor e Seu Pug (1745) obviamente imita algo da Natureza, mas o
traço do pintor é intencionalmente embaçado, pois a pintura não significaria
mais o antigo esforço em ser fidedigna aos objetos contemplados pelo artista.
Analogamente, o cão está borrado na tela. A paleta do pintor contém a inscrição
The Line of Beauty; mas de maneira
irônica, a Linha da Beleza é uma
curva. O pintor se pinta diante do espelho, e traz consigo seu traje, tão
composto de curvas quanto a Linha da Beleza. Tão curioso quanto isso, é saber que
as criações de Hogarth foram lançadas muito antes dos quadros impressionistas
da França!
Argan demonstrou que no século XIX, a pintura
iluminista da Inglaterra começou a declinar, na medida em que os Pré-Rafaelitas
surgiam, advogando um retorno à pureza da vida e temas religiosos. Mesmo assim,
vários artistas importantíssimos e posteriores beberiam de fontes dos
iluministas ingleses: Goya teve contato com a pintura de Gainsborough;
Delacroix conheceu os trabalhos de Bonington. Não menos importante, os ingleses
contribuíram bastante para a renovação da estética francesa, até então bastante
marcada pela influência das formas e temas de Grécia e Roma Antigas, além do Neoclássico.
Um grande poeta francês como Charles Baudelaire, formou boa parte de seu
repertório artístico sob a influência da pintura iluminista inglesa. Se a noção
de pitoresco na Inglaterra foi capaz de aliar a beleza natural com a argúcia do
pintor e o seu entorno; posteriormente a tudo isso, Baudelaire definiria a Modernidade como “o transitório, o
efêmero, o contingente” (2007) – e onde o artista moderno deveria ser capaz de
pintar e captar essa transitoriedade,
efemeridade, contingência; imprimindo sobre ela o seu ar de eternidade.
REFERÊNCIAS
ARGAN,
G. C. A arte moderna na Europa: de
Hogarth a Picasso. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade: o pintor da vida moderna. São Paulo: Paz e
Terra, 2007.