O cantor pernambucano Johnny Hooker - fonte: Google Imagens. |
Acabando nós todos cegos, como parece ir suceder, para que
queremos a estética? – José Saramago[1]
Se contada nos dias de hoje, a lenda de
Hércules teria não doze, mas treze trabalhos heroicos.
Acreditando ser possível a insanidade de reinventar o mito em nosso tempo, o
semi-deus estaria a mando não de um Euristeu, rei covarde e fraco, mas de um
novo rei sem rosto, hipócrita e mimado que age no invisível, nos limites entre
a realidade humana e o mundo imaterial dos bytes,
porém que a tudo controla e vigia: o Facebook. Para o filho de Zeus, protegido
de Palas Atena, não seriam mais necessárias uma força sobre-humana ante os
obstáculos, um destemor impávido frente às manifestações bestiais dos caprichos
dos deuses e uma bravura rutilante de se embrenhar nos além-mundo dos homens.
Tudo isso seria inútil, vão. A ele não seria exigido mais que uma paciência
interminável e uma consciência profunda do gritante despropósito de suas
tarefas.
Em meu delírio, exercício deliberado do
anacronismo e das atribuições errôneas, imagino que, logo após enfrentar a
hidra, aquela besta do mundo subterrâneo, de corpo disforme, com inúmeras
cabeças mesmerizadas a esconder uma outra de contornos mais definidos, tez avermelhada
e dona de um raciocínio cinicamente partidarizado dissimulado em gritos de
fúria retórica, a qual ocupa os armazéns do Cais José Estelita avocando para si
a exclusividade em proteger a joia do Estelita; deveria nosso Hércules
contemporâneo encarar o trabalho extra que lhe imputou seu novo suserano: ir a
um vernissage cult e descolado no lounge do
novo Roof Tebas embalado ao som do disco de estreia do cantor pernambucano
Johnny Hooker, “Eu Vou Fazer Uma Macumba pra Te Amarrar, Maldito!”. Pois, só na
condição de semi-deus para suportar uma audição a sério desse trabalho (e por
“a sério” entenda-se “de forma concentrada, minuciosa”, partindo do pressuposto
que há nele algum valor estético).
Em seu disco, Hooker faz da canção a
plataforma do escracho e da dor de cotovelo brega
cult de maneira muito sagaz - obviamente não do ponto de vista musical ou
poético -, pois, sendo a persona que incorpora um gay libertino, coloca seu trabalho artístico num campo minado moral
patrulhado tanto pela sociedade descentrada da pós-modernidade quanto pelas
minorias ativistas e seus seguidores. E ao fazer isso, o cantor assenta seu
trabalho (e ele sabe disso, imagino) num território inacessível à crítica, a
qual, sem o menor trabalho (especialmente a local, bairrista ao extremo), logo
arruma meios para enaltecer o viés “performático, provocador e iconoclasta” do
artista pernambucano em textos marcados pelo oba-oba laudatório, de brodagem clientelista, endossando,
assim, o elogio mútuo de uma forma que só uma dispendiosa assessoria de
imprensa poderia proporcionar. Jornalismo cultural domesticado que, deixando-se
levar pelo complacente espírito do clubismo e pela lógica passageira das
tendências, substitui a reflexão estética pela chancela de valor das estrelas
de sempre e dos “queridinhos” do momento. Negócios, enfim.
Qualquer análise mais a fundo que
exponha a fragilidade da condição artística do cantor periga ser desqualificada
pelas armadilhas das questões minoritárias de gênero - neste caso a tag “homofóbico” logo me vem à tona - e
seu autor, de ser vilipendiado publicamente nas infinitas terras do rei de hoje.
Sei disso. Mas, ousarei aqui correr o risco, pois parto de um pressuposto
humanista muito elementar: todo ser humano tem alma, independente de cor,
credo, nacionalidade, classe sócio-econômica e opção sexual. E é essa essência
que sente, chora, ri, essa coisa sem nome, única, que trazemos dentro de nós
que me interessa, não o papel social que seu invólucro desempenha. O mais é
puro supérfluo, e eu não cometerei o erro generalizado de substituir a essência
pela carapaça. Outra coisa: até onde me consta, sou livre para pensar, e na
condição de crítico musical tenho a obrigação de problematizar uma obra, gostando
ou não dela, e de lançar um olhar independente que, além de qualificá-la, perceba
suas relações com a realidade que a circunda.
Previamente esclarecidas algumas
questões para uma eventual patrulha dos moralistas inveterados da
contemporaneidade e da cavalaria da Verdade Comportamental do rei Facebook, e mirando
no que importa, resta dizer que o disco de Johnny Hooker é musicalmente fraco, porque
se baseia no cansativo lugar-comum da estética brega-cabeça da classe média
recifense, releitura higienista da periferia apesar de se dizer o contrário, que
elevada à categoria de arte tomou conta da produção musical desta pequena vila.
Tudo bem que os arranjos de metais são surpreendentemente bem feitos e bem executados,
e que Hooker sabe, ao menos, projetar sua voz com algum cuidado nos timbres e
na afinação. Algo por si só raro dentre os cantores da “cena” recifense, supondo
logicamente que não esteja o Pro Tools
e outras maquiagens eletrônicas a nos fazer de tolo. No entanto, é muito pouco
para salvar o disco de uma banalidade sonora que remete a uma quase modorra.
Além disso, o álbum é poeticamente
vulgar - para muito além das questões de gênero - pelo simples fato de ser mal
escrito e chulo, denotando um amor caricato entre indivíduos desprovido de
qualquer dimensão metafísica, romântica, digamos assim, que no final reduz os amantes
a uma condição animalesca de pura carne na qual se relacionam tão somente por
instinto, numa espécie de fauna selvagem e exótica em eterno cio. Como fica
evidente, por exemplo, na balada à trilha sonora de Tarantino Volta - “É impossível ter de escolher
entre teu cheiro e nada mais” -, na “sofrência” com toques de guitarra surf music de Alma Sebosa – “Não responde meus recados, me trata feito lixo / Se
não me quiser, não me procure nem mais pra foder”, na construção de óbvio duplo
sentido do ska dançante Chega de Lágrimas
– “Chega de lágrimas, eu vou meter... / O pé na estrada / Me livrar de
você”, no carimbó Boato – “Bebo o
leite quente do amor da gente / Nada me satisfaz”, no pop brega Você Ainda Pensa? –
“Você ainda pensa em mim quando fode com ele?”, no pastiche de frevo canção Desbunde Geral – “A gente se pega, se
bole e se morde no chão de estrelas / Que meu corpo receba o desbunde geral”. E
fica nisso.
“Mas Bruno, você tem de entender que só
o fato de um artista debochado como Johnny Hooker existir já é, por si só, um
ato de coragem, e não reconhecer isso é, no mínimo, preconceituoso sim!”,
pareço estar ouvindo a repreensão de Sua Majestade Rede Social. Aí, alteza, com
toda a humildade devo dizer que discordo duplamente. Embora que não considere
aqui primordial a questão de gênero, como já disse antes, claro que enxergo que
o lugar da fala tem sua relevância para entendermos as questões do discurso.
Bourdieu e tantos outros já discorreram sobre isso em inúmeros trabalhos. Porém,
não importa aqui a sexualidade do interlocutor do discurso poético, ou seja, de
onde vêm os enunciados, pois qualquer que seja ela não salva a baixeza da
mensagem em si. Eis a primeira discordância.
Já em meu segundo desacordo digo que, se
olharmos com cuidado para o álbum do cantor recifense como um todo, veremos que
ele mais parece se situar numa butique de luxo de um estilista qualquer ou num apartamento bacana nas áreas mais exclusivas da cidade com o simples intuito da
controvérsia efêmera, do que nas trincheiras cotidianas da luta da comunidade
LGBT na batalha pelo respeito, dignidade e reconhecimento a que tanto faz jus.
“Ah, mas é uma performance artística, Bruno! Por favor...”, grita impaciente o
rei. De fato, Majestade. Mas, o que fica dela? Um choque gratuito? Uma polêmica
midiática vã? Uma sedição mercantilizada? É para isso que serve a música? É
esse o grande mérito artístico de Johnny Hooker? Se for, acho muito pouco. E se
é para dar um exemplo de uma notável produção artística de gênero, prefiro
muito mais, em termos de realização cultural e repercussão na sociedade, um
filme como “O Segredo de Brokeback Mountain”: uma obra de arte com incomparável
beleza plástica, conteúdo emotivo, críticas contundentes a modos e costumes
arraigados na tessitura social e reflexões bastante pertinentes e fundamentais
sobre o amor entre pessoas do mesmo sexo. O lugar da fala e o conteúdo da fala
estabelecendo entre si um forte vínculo através de um trabalho de vasta
densidade estética, cultural e artística.
Por
estas razões, vejo em todo o frenesi promovido pela imprensa e público em torno
da figura artística de Johnny Hooker como uma declaração contumaz de que
estamos mal, mas muito mal mesmo, em termos de Cultura, e que “Eu Vou Fazer Uma
Macumba pra Te Amarrar, Maldito!” é apenas mais um dentre tantos outros álbuns
desnecessários provavelmente fadado a, dentro de mais alguns meses, cair no
total esquecimento, substituído por um novo e lucrativo modismo transgressor de
ocasião.
[i]
SARAMAGO, José; “Ensaio Sobre a Cegueira”, Companhia das Letras, São Paulo,
2014, pág. 128.